Por: Silvana Cardoso, jornalista
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Chefe de reportagem: Juliana Monaco
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes

Na semana que se comemora os direitos LGBTQI+ no país, quando milhares de pessoas foram às ruas para falar de liberdade, um documentário que conversa com o tema está em fase de finalização. E se ruas da capital paulista ficaram lotadas pelo Orgulho Gay no último domingo, muitos lutaram para se chegar até aqui, para a conquista de reconhecimento, segurança, menos preconceito da sociedade, dentre tantas outras  questões. “Sou Point 44, amor um arco-íris multicor”, do sociólogo e cineasta Márcio Paixão, retrata um cenário bem distante do atual, quando em 1995, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro, litoral de praias paradisíacas, no pequeno município de Cabo Frio, David Araújo transformou com sua trajetória, marcada por afetos, lutas, carnavais e revoluções.

Década de 1990, aniversário David Araújo no Point 44/Imagem: Arquivo Pessoal Peteca

David dos Santos Araújo nasceu em Cabo Frio e como pessoa LGBTQIA+ encontrou muitas dificuldades para se expressar em sociedade. E foi a partir desta inquietação por acolhimento que David decide construir o Point 44, o primeiro bar e boate gay da cidade. Além das festas, quem passava pela casa também se organizava politicamente, onde havia palestras e debates sobre questões de gênero e sexualidade. Ao transformar o Point 44 em bloco e escola de samba, seu criador ganhou mais visibilidade, por sua resistência e pioneirismo. Ficou exposto. Ganhou desafetos. E 14 anos após o início da revolução que criou, David Araújo foi assassinado dentro da boate. O caso foi arquivado em 2017, sem a identificação da autoria do crime.

Perguntei ao Márcio se ele havia conhecido o David ainda vivo, e conversamos sobre a importância dessas pessoas invisíveis ganharem destaque. O diretor me respondeu: “Não conheci o David, só ouvi falar dele através dos moradores da cidade e sempre num tom pejorativo, por se tratar de uma ativista LGBTQIA+”. Estas e outras perguntas foram respondidas com uma sinceridade cortante pelo sociólogo, que conversou com pessoas próximas do David, como Raquel Glamurosa, Peteca e Nilma de Oliveira, amigas pessoais que ajudaram a construir todo esse movimento LGBTQIA+ em Cabo Frio, além de João Félix e Leandro Corrêa, ativistas do samba Cabofriense. 

MJ: A sinopse de “Sou Point 44 amor, um arco-íris multicor” fala que, em 1995, numa pequena cidade do litoral do estado do Rio de Janeiro, David Araújo inicia uma trajetória histórica, marcada por afetos, lutas, carnavais e revoluções. Me conta quem é David Araújo e como surgiu a sua vontade de transforma o Point 44 em filme, em documento?

Márcio Paixão: O David dos Santos Araújo é natural de Cabo Frio, viveu nos bairros do Jardim Caiçara e Guarani. Assim como toda pessoa LGBTQIA+, encontrou muitas dificuldades em expressar sua existência na vida em sociedade, porém, quando decide construir o bar Point 44, ele inicia uma trajetória histórica, pois esse espaço foi o primeiro bar/boate para pessoas como nós na cidade. Lá, além das festas, eles se organizavam politicamente oferecendo palestras e debates sobre questões de gênero e sexualidade, ou seja era um lugar de resistência e pioneirismo. Depois ao transformar o Point 44 em bloco e escola de samba, ele trouxe ainda mais força para nos tornar visíveis diante uma sociedade que persiste em nos desumanizar. Sem dúvidas, eu posso afirmar que David Araújo deu início ao movimento LGBTQIA+ na cidade de Cabo Frio.

Esse filme tem a sua matriz impressa nas minhas memórias enquanto pré-adolescente, lembro de assistir o desfile de 2002 do Point 44 na TV local e ver comentários homofóbicos e risadas jocosas entre amigos e familiares que estavam comigo na sala de casa. Eu não entendia o motivo daqueles comentários me afetarem tanto, só mais pra frente fui entender que isso me afetava justamente pelo fato de eu também ser uma pessoa LGBTQIA+. Então, no momento que surgiu a oportunidade de produzir um projeto com algum recurso financeiro, me veio à cabeça a história do David Araújo e do Point 44. Foi a forma que encontrei de dar visibilidade e reconhecimento aos meus pares.

MJ: Como sociólogo, quais ganhos você percebe ao longo destes quase 30 anos desde o movimento liderado pelo bar em Cabo Frio, para hoje, as conquistas e as angústias dos movimentos atuais LGBTQIA+?

Márcio Paixão: Para pessoas como o David, Peteca e Raquel (suas amigas trans/travestis que participam do filme) com toda certeza houve algumas melhorias, eles/elas foram os/as mobilizadores/as desses avanços aqui na cidade. Sendo assim, também reconheço que, por conta das lutas travadas e caminhos abertos por esse grupo, eu pude me expressar com liberdade em uma das primeiras paradas gay de Cabo Frio, em 2005. Porém, ainda existe muita coisa a ser transformada, como a questão do Brasil ainda ser o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Portanto, o que me move é a indignação e o apreço pelos meus direitos sociais e políticos conquistados por aqueles que vieram antes de mim, e os que ainda serão conquistados, que o Estado insiste em negar.

MJ: Em um depoimento, você afirma que lá, no Point 44, além das festas, eles/elas se organizavam politicamente oferecendo palestras e debates sobre questões de gênero e sexualidade, ou seja, era um lugar de resistência e pioneirismo. Em ano de eleição e com uma onda de intolerâncias em todas as instâncias, como a comunidade LGBT da região dos lagos se articula atualmente?

Márcio Paixão/Imagem: Arquivo pessoal

Márcio Paixão: Infelizmente, a cidade encontra-se em um momento muito ruim politicamente falando. A cidade encontra-se estagnada, sem perspectivas de um desenvolvimento econômico, social, político e cultural que atenda às demandas da população. E isso não é diferente nos movimentos sociais, alguns dos representantes dos movimentos LGBTQIA+ de Cabo Frio estão atuando também como funcionários da prefeitura, o que acaba criando uma relação nada democrática, e que não  prioriza as demandas reais dessa população minoritária, pois as ações são sempre mediadas pela ideologia que rege a governabilidade da cidade. 

MJ: Você ainda é jovem diante do ineditismo do bar e boate Pont 44 para uma cidade ainda “conservadora”, em suas palavras. Quantos anos você tinha quando o bar foi inaugurado? Como David influenciou a sua vida em sociedade? E como o filme está sendo recebido no pequeno município da Região dos Lagos, litoral do Rio de Janeiro?

Márcio Paixão: Eu tinha 7 anos. O David com certeza contribuiu para que eu pudesse me expressar de maneira minimamente livre na cidade, claro. Como já disse anteriormente, existem muitas lutas que precisamos travar, mas não tenho dúvidas da expansão democrática implantada por ele para pessoas LGBTQIA+ como eu. Tivemos três sessões públicas do filme em espaços super importantes da cidade. Acabamos de realizar a sessão no Instituto Federal Fluminense – Campus Cabo Frio, dentro do evento do Dia Internacional de Combate a LGBTFOBIA, na Casa de Cultura José de Dhome – Charitas, e na praça do bairro de São Cristóvão. Foram sessões gratuitas seguidas de debates. Foram dias importantes para pensarmos de maneira crítica não só a importância do cinema na luta contra a lgbtfobia, mas também pensar sobre quais as políticas públicas que nós, LGBTQIA+, necessitamos. A recepção nos meios de comunicação virtuais que circulam pela cidade foi bem problemática, sofremos ataques homofóbicos,  transfóbicos, mas isso nos fez entender a importância e urgência de ter outros trabalhos que atualizem e visibilizem histórias como a do David e do Point 44. 

MJ: Com quatro documentários no currículo, dentre eles “O Rui Resiste” e “Uma Terra de Todos”, quando o sociólogo se descobriu cineasta? Ou o sociólogo veio depois do cineasta?

Márcio Paixão: Caminham juntos, não vejo distâncias entre um e outro, são complementares. O cinema e a sociologia possuem suas diferenças epistemológicas, mas nutrem um desejo comum de observar de maneira crítica o mundo nos entrelaces das relações sociais e suas produções simbólicas.

MJ: Um dos mais premiados documentaristas do país, o cineasta Silvio Tendler, acabou de lançar seu último filme no YouTube. Independente de prêmios em festivais, ter circuito para o cinema nacional é bem complexo, já que a janela de exibição ainda é dominada pelos blockbuster internacionais. Como você pretende apresentar para os brasileiros o seu documentário em curta-metragem?

Márcio Paixão: Já disponibilizo os meus filmes no YouTube através do meu site – www.paixaomarcio.com. Com esse trabalho não será diferente. Durante um ano vou inscrevê-lo em festivais, como parte desse percurso possível de quem faz filme sem o aporte de grandes produtoras. Tentando desta forma, fazer essa história alcançar o maior número de pessoas possíveis, em seguida, deixarei ele disponível no meu site também. Acredito que a nossa circulação, em festivais pelo país, vai trazer uma visibilidade importante para o filme dentro da cidade, pois assim chamamos a atenção do poder público para a inclusão dessa obra cultural como um material formativo para se pensar nas questões de gênero e sexualidade.

Para fortalecer ainda mais a tão necessária equidade de gênero, vale desejar sucesso nos festivais e aguardar a estreia de “Sou Point 44, amor um arco-íris multicor”.