Por Ana Joulie, Psicóloga especializada em patologias graves, fundadora e diretora clínica da Rede Internacional de Acompanhamento Terapêutico (RIAT)

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Chefe de Reportagem: Juliana Monaco, jornalista

Editora Chefe: Letícia Fagundes, Jornalista

Essa semana, quero falar sobre um assunto de extrema importância e muito significativo em saúde mental: a luta antimanicomial. Um acontecimento do século passado que até hoje é atual, pois seguimos lutando por essas questões em nosso tempo. Para tratar sobre esse tema, vou fazer um mix de três conceitos que envolvem essa luta: loucuramanicômio e saúde mental.

loucura é um conceito amplo no sentido contextual, complexo no aspecto técnico e singular em cada sujeito que a possui. Quando falamos em saúde mental, também falamos em loucura, uma condição pouco compreendida pela sociedade e que traz consequências diretas e indiretas em nossas vidas, mesmo com tantos avanços científicos.

Atualmente, milhares de pessoas em todo o mundo não sabem o que é um manicômio. Você é uma delas? Esse desconhecimento é excelente quando percebemos que essa estrutura manicomial já não é realidade de muitos (vibro de alegria!!!). Por outro lado, precisamos conhecer o passado para compreender a história de nossa evolução em saúde mental, só assim vamos poder apreciar nossa condição atual e reivindicar pelas carências de nosso tempo.

Manicômio é o nome dado a uma estrutura física, que atendia pessoas tidas como doentes mentais, em qualquer grau. No passado, ficou conhecido por suas violências e torturas, pois continham métodos de tratamentos perversos e peculiares, como lobotomia, eletrochoques, agressões físicas e experiencias humanas (utilizavam pessoas para procedimentos de investigação cientifica). Os pacientes ficavam muitas vezes nus, independente da condição climática. Também viviam isolados do contexto social, em condições de superlotação. Eram presos e amarrados em “jaulas” quando tinham crises e, devido a toda essa vulnerabilidade, morriam precocemente. Os manicômios eram como depósitos de pessoas, e nem todas padeciam de questões patológicas; a maioria era expulsa da sociedade. E todos que iam parar em um se tornavam esquecidos. Crueldade social. Vimos muito isso relatado em filmes e aplicado em guerras.

Foto: Pixabay/divulgação RIAT

Quando se fala em saúde mental, o que você pensa? O que entende sobre isso? Que experiência possui? É um conceito que advém de diversas fontes, culturas, discursos, saberes e recursos, e que, para regular o conceito, a Organização Mundial de Saúde (OMS) define como “um bem-estar no qual o indivíduo desenvolve suas habilidades pessoais, consegue lidar com os estresses da vida, trabalha de forma produtiva e se encontra apto a dar sua contribuição para a comunidade”.

Em saúde mental, o discurso que ainda prevalece e determina é o da psiquiatria. São os médicos psiquiatras que comumente produzem diagnósticos e prognósticos às pessoas acometidas por transtornos ou doenças mentais. E é através da psiquiatria que iniciamos a história da luta antimanicomial, com a reforma psiquiátrica.

No século XX, após a Segunda Guerra Mundial, os soldados, os heróis daquela época, passaram a sentir o que hoje chamamos de TEPT (Transtorno do Estresse Pós-traumático), já que eles estavam pressionados, confusos e com sequelas de diversas ordens, e necessitavam de atenção especial. Então, a sociedade passou a criar práticas de intervenções para acolher os veteranos da guerra.

O movimento de reforma psiquiátrica já havia começado antes, porém, com a condição exposta daqueles soldados, que se tornaram heróis, o movimento foi acelerado no mundo todo, principalmente nos países europeus.

Enquanto discussões eram realizadas em distintos países, com diversas abordagens teóricas, na Itália, nos anos 60, o psiquiatra Franco Basaglia propôs uma reformulação importantíssima no conceito de loucura, mudando o foco da doença e expandindo-a com questões de cidadania e inclusão social. Foi a partir desse grande movimento de Basaglia, que muitos adeptos ascenderam ao movimento. E foi através dele que um grupo de trabalhadores em saúde mental, no Brasil, iniciou a Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Foi a partir dela que, na década de 70, deu-se início, indiretamente, à luta antimanicomial por aqui. No dia 18 de maio de 1987, cerca de 300 profissionais de saúde mental se reuniram na cidade de Bauru (SP) para debater e tratar sobre novos caminhos e métodos no sistema de saúde mental do país. Como resultado positivo deste movimento, surge a Lei 10.216 de 2001, mudando os métodos de intervenção, excluindo hospitalização e incluindo abordagem psicossocial, com serviços abertos.

Se por um lado a psiquiatria trata a saúde mental, focando na patologia e suas manifestações, sendo a loucura seu principal objeto de estudo, por outro lado, a complexidade dos transtornos e doenças mentais abarcam variados aspectos, como cultural, social, ambiental, econômico etc, o que nos leva a pensar e refletir que a loucura sobrepassa um diagnóstico psiquiátrico, pois pessoas acometidas por transtorno mental podem ter direitos e deveres, qualidade de vida, relacionamentos interpessoais, podem estudar, trabalhar, assumir papel significativo em seu contexto familiar, podem amar, desejar, desenvolver seus potenciais, ensinar etc. Diante da luta antimanicomial, temos a oportunidade de pensar se a loucura pode ser “naturalizada”, aceita, compreendida. Já pensou?

Dito isso, vamos pensar em nossa situação atual e refletir sobre saúde mental? Em nosso tempo, o que nos afeta? Como nos sentimos? O que questionamos? De que sentimos falta? Quais são nossas necessidades básicas e complexas? Estamos bem assistidos, amparados, se porventura tivermos algum tipo de transtorno ou doença mental? Corremos o risco de sermos chamados de loucos? Podemos enlouquecer?

Estamos vivenciando, desde o ano passado, por sugestão das autoridades em saúde mundial, o isolamento social, devido à covid-19. Com essa situação, inusitada e de grande impacto mundial, entramos numa condição de impotência e nos tornamos reféns da vulnerabilidade, que consequentemente nos expõe a mudanças radicais, nos mantendo isolados de contato físico. Está constatado que o isolamento social pode gerar desordens emocionais e psíquicas, desenvolvendo uma série de traumas, em meio ao estresse, medo e crises de ansiedades.

Foto: Pixabay/divulgação RIAT

Se ficar isolado, mesmo que seja em condição privilegiada, com recursos saudáveis em variados aspectos, com aparatos tecnológicos, podendo ter acesso social através de dispositivos virtuais, gera desordem, imagine ficar isolado em condição de cárcere, totalmente afastado da sociedade e sem nenhuma perspectiva de alta? É chocante e triste. Por isso, hoje em dia temos que reconhecer a trajetória que nos trouxe a possibilidade expressar nossos aspectos psíquicos, nossos males, dores, frustrações, debilidades e traumas.

Já pensou na diferença de nosso tempo, para o tempo dos séculos passados? Essa reflexão serve para criar consciência, empatia e seguir lutando por melhores tratamentos em saúde mental.

“Pássaros criados em gaiolas acreditam que voar é doença” é uma frase de Alejandro Jodorowsky, poeta chileno, que se tornou muito conhecida por todos que são conscientes da Luta Antimanicomial, porque salienta que, para cuidar, não precisa trancar. Desejo que a sociedade seja mais consciente e empática com todos os portadores de transtornos mentais, afinal de contas, “de perto ninguém é normal”. E se você precisa de ajuda, lembre-se de que não está só. Estamos aqui para ajudar e orientar também.