Por: Haline Farias, jornalista
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Chefe de reportagem: Juliana Monaco
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes

Milhares de crianças e adolescentes em situação de rua vivem no Brasil uma realidade sem informação e acesso à saúde

Se deparar com a miséria de quem não tem moradia é algo habitual ao circularmos pelas cidades, que se normalizou a ponto de não nos incomodar. A sociedade e o Estado tornaram invisíveis aqueles em situação de rua. A estimativa é de aproximadamente 221.869 pessoas vivendo nas ruas de todo o Brasil, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em pesquisa publicada em março de 2020.

Um levantamento feito pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da UFMG aponta que essa população cresceu em 2022, no país. A pesquisa utilizou banco de dados do governo federal que é alimentado pelas prefeituras. Foram registradas no CadÚnico, cadastro do governo federal que dá acesso a benefícios sociais, mais de 26 mil novas pessoas em situação de rua, de janeiro a maio de 2022. Os números expressam o progresso da pobreza e a falta de políticas públicas no Brasil, quantificando uma realidade desanimadora e cruel.

As ruas abrigam idosos(as), homens e mulheres já adultos, assim como crianças e adolescentes. Segundo dados da ONG Visão Mundial, organização que atua no Brasil desde 1975, 70 mil crianças viviam em situação de rua no país, em 2020. Só na capital paulistana, há mais de 500 pontos com crianças e adolescentes nessa situação, de acordo com o último Censo da População de rua, divulgado pela prefeitura de São Paulo em janeiro.

Maria Baqui diz que a população infantojuvenil em situação de rua vive de uma maneira que não era para ser, que o Estado deveria garantir a ela todos os direitos básicos para se viver dignamente. Imagem: Reprodução/Arquivo pessoal de Maria Baqui.

Maria Baqui é jornalista e fundadora da Associação BSB Invisível, uma ONG que convida pessoas em situação de rua para contar suas histórias nas redes sociais, com intuito de motivar a sociedade a ter um olhar mais humano e sensível com essa população, além de arrecadar doações. Ela conta que as crianças em situação de rua precisam abdicar muito cedo da infância e dos “encantamentos infantis”, precisando amadurecer de forma brusca e dura sem a oportunidade de ser criança. “[…] ainda que tenham essência de uma criança para gostar de receber uma boneca, por exemplo, são indivíduos que precisaram trabalhar desde cedo e/ou manguear […]”. Maria acrescenta que, muitas vezes, essa é uma condição passada de geração para geração, já que os pais também não tiveram direito à infância.

O cotidiano revela as péssimas condições de vida a que estão submetidas quem precisa fazer da rua moradia, um ambiente de violação de direitos, grandes riscos e desamparo. Nela, a população infantojuvenil vive, e convive, com a falta de acesso a direitos básicos, como saúde, moradia, segurança e educação. Saúde é um direito universal garantido pela Constituição Federal de 1988, que afirma que todos têm direito a tratamentos adequados, fornecidos pelo poder público. Infelizmente, a realidade de jovens e crianças que vivem na rua é feita pela precarização, ou falta, da prevenção e recuperação da saúde, de hábitos saudáveis e de qualidade de vida. 

Saúde inexiste para os socialmente invisíveis 

O Estatuto da Criança e do Adolescente no Art. 7º traz: “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.

Mas, a realidade acontece diferente em um cenário bastante triste, que se agrava ainda mais com o acesso precário aos serviços de saúde e a falta de informação. As crianças em situação de rua não conseguem ter acesso nem às coisas básicas ligadas à saúde, como a vacinação. “Existe toda uma atenção primária, o nível mais primeiro de saúde que está para a situação mais básica, como a vacinação, que dificilmente recebe essa população”, afirma Katia Santos, coordenadora do Fórum Estadual de Saúde Mental de Crianças e Adolescentes do Rio de Janeiro.

Esses menores, para além da falta de acesso à saúde, são expostos a diversos fatores de riscos, os quais impactam diretamente na saúde e resultam em doenças, má nutrição, morte prematura, dependência química etc. Claudia Araújo, professora do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (COPPEAD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Centro de Estudos em Gestão de Serviços de Saúde (CES, do COPPEAD/UFRJ), explica que a saúde não acontece para essas crianças. “[…] quando falamos de falta de acesso à saúde, estamos falando de saúde física, dentária e mental. Cuidados de saúde pressupõem um lar, um ambiente seguro em que as crianças tenham acesso a água potável, saneamento, acesso à escola, com noções mínimas de higiene”.

Por serem invisíveis para a sociedade e para o Estado, e estarem à margem da sociedade, sem acesso à higiene, saúde e educação, Claudia conta que as crianças que vivem nas ruas são vistas como um incômodo por muitos. Imagem: Reprodução/ Marcos Ferreira.

A jornalista Maria Baqui conta que o acesso à saúde pública já é difícil para qualquer pessoa, mas que é ainda mais complicado para os(as) pequenos(as) que vivem nas ruas. Então, por isso, diversas vezes, ela e sua equipe do BSB Invisível precisam conseguir a ajuda de um médico voluntário para que as crianças possam ter atendimento. 

“Se for depender exclusivamente do serviço público de saúde, é muito demorado, na maioria das vezes. Se for algum problema de saúde grave, por exemplo, talvez esperar na fila para conseguir atendimento possa piorar a situação. Vale destacar que isso acontece devido à alta demanda, pouca estrutura, pouco investimento do Estado para a saúde pública […]”.

Criado em 2011, o Consultório na Rua foi uma estratégia instituída pela Política Nacional de Atenção Básica que busca ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde, oferecendo atenção integral à saúde para esse grupo. Conta com equipes multiprofissionais que desenvolvem ações integrais de saúde diante das necessidades dessas pessoas, um trabalho apoiado por uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Existe uma divisão por território para que os profissionais possam atuar, conforme um mapa da situação de rua da cidade. Esse é o principal programa voltado à promoção da saúde para esse grupo social na capital paulista. 

Katia Santos explica um pouco mais sobre o Consultório na Rua: “São equipes volantes que conhecem o território e sua população em situação de rua, e ficam ali funcionando como um elo, é a saúde chegando até essas pessoas. Nas abordagens que fazem, procuram ver as demandas de saúde e algumas coisas conseguem solucionar ali mesmo, quando não, se direcionam até a Unidade de Saúde mais próxima. A equipe é composta por médico, enfermeiros, agentes, auxiliares de enfermagem […] são múltiplas, inclusive, às vezes, tem também alguns profissionais da área da saúde mental e professor(a) de educação física”.

Ruth Lima, pedagoga e gerente de Operações de Campo da ONG Visão Mundial, cita uma outra iniciativa, o Plano Operativo para Implementação de Ações em Saúde da População em Situação de Rua. “Entre os objetivos desse plano está a garantia do acesso das pessoas em situação de rua às ações e aos serviços de saúde”. Porém,  ela complementa que, devido às mudanças implementadas no atual governo, “e com as recentes consequências causadas pela crise sanitária da covid-19, é provável que a realidade da operacionalização dessas políticas esteja em algum descumprimento ou sob atendimento precário”.

Sabe-se, e é nítido, que essas crianças precisam de cuidados com a saúde física, porém a saúde mental, tão importante e negligenciada quanto a primeira, também necessita de atenção. Esses indivíduos são expostos aos mais diversos traumas, perigos e situações de crueldade, adoecendo psicologicamente e emocionalmente, carregando feridas por uma vida toda. Tudo isso sem nenhuma assistência do Estado. Claudia Araújo comenta que essa população vive suscetível a desenvolver doenças físicas e mentais em razão da violência sofrida nas ruas, do abandono emocional e da impossibilidade de manter a higiene necessária para se resguardar de doenças. “São crianças e adolescentes vulneráveis que se tornarão, os que sobreviverem, adultos sem saúde, sem empregabilidade, cada vez mais dependentes do Estado”.

Katia Santos conta que os profissionais e autoridades dentro da saúde mental levaram um tempo para entender que crianças e adolescentes em situação de rua também são alvos da política de atenção psicossocial dos centros de atenção. 

“No início, esses centros foram criados para poder atender na saúde, dar uma resposta de cuidado e tratamento para as crianças e adolescentes, a princípio para as que tinham algum transtorno mental […], mas foi um serviço pensado para todo tipo de complexidade e gravidade, e como não pensar que uma criança que está em situação de rua não tem um sofrimento psíquico grave? […] De um tempo para cá, é que tem sido mais comum que esses serviços possam pensar iniciativas para as crianças que estão nas ruas, pensando abordagens e ações”.

Isolamento social e cuidados básicos de higiene para quem?

Com a chegada da pandemia da covid-19, a desigualdade social e a situação precária da saúde de quem vive em situação de rua ficou ainda pior e mais escancarada. Os já isolados socialmente precisavam agora “ficar em casa”, mas que casa? E como ter os cuidados básicos? Como utilizar máscaras sem local para lavá-las ou condições de comprá-las? Como lavar as mãos sem ter acesso ao mínimo de higiene?

Claudia Araújo explica que o isolamento social e os cuidados necessários não foram uma possibilidade para aqueles que não têm uma moradia. “[…] o isolamento social pressupõe um lar, um lugar para ficar, e as medidas de higiene, como lavar as mãos e usar máscara, pressupõem condições mínimas de higiene e moradia. […] Lamentavelmente, não houve políticas públicas direcionadas para a população de rua”.

A informação nem sempre alcança quem vive nas ruas. Já postos à margem de tudo, essas pessoas vivem desinformadas sobre diversos aspectos, e esse foi um dos problemas na pandemia para esse grupo, segundo Maria Baqui. 

“[…] Nós, que estamos em situação de privilégio, fomos bombardeado de notícias e informações sobre a pandemia […], mas até surgir o assunto das vacinas, muitas pessoas em situação de rua não sabiam o que estava acontecendo. Então, desde o início o BSB Invisível tentou fazer uma campanha de conscientização, para levar informações para essas pessoas, e também de assistência, apoio e acolhimento”. 

A jornalista acrescenta que, mesmo com todas as explicações, conversas e entrega de kit de higiene, diversas pessoas não acreditavam. “A informação não chega em todos os lugares, o que pra muita gente é óbvio, para outras, não. Quando as pessoas em situação de rua começaram a ter informação, as que estavam doentes perceberam que estavam com covid. […] a gente não tem tantos dados, sem subnotificação de quantas pessoas em situação de rua chegaram a precisar de leito de UTI ou morreram em decorrência da doença, pois mais uma vez são pessoas invisibilizadas, que ‘não merecem atenção dessa forma’ ”.

Em relação à vacinação contra a covid-19, Maria Baqui relembra que, em Brasília, antes de liberar para a população em geral, a vacina de dose única foi liberada para a população em situação de rua, e foi realizada por meio de equipes volantes e de saúde familiar. Em São Paulo, a estrutura dos Consultórios na Rua são utilizadas para garantir a imunização contra a covid-19 para essa população.

Toda vida vale a pena

As consequências imediatas e a longo prazo dessa saúde precarizada e sem amparo são cruéis para essas vidas tão jovens, resultando em cicatrizes e doenças físicas e psíquicas, muitas vezes, irreparáveis. A pedagoga Ruth Lima diz que de imediato temos o aumento no risco da vulnerabilidade social, “alcançando mais camadas do estrato social, especialmente porque o Brasil é um país cuja desigualdade social é naturalizada”.

Já para a sociedade como um todo e para o Governo, a professora Claudia Araújo explica:  “Essa situação pressiona o sistema público, já que crianças e adolescentes em situação de rua, sem acesso à saúde e condições mínimas de higiene, serão adultos com pouca saúde, que precisarão bastante do sistema público de saúde – internações, medicamentos – para tratar doenças e complicações que poderiam ser evitadas de forma simples, com um mínimo de acesso à cidadania. Além de pressionarem o sistema de saúde, essas pessoas dificilmente terão empregabilidade, impossibilitando que gerem recursos para se manter e se cuidar. Com isso, dependerão do Estado ao longo de toda a vida. Como o Estado não dá conta dessa população, estamos falando de adultos e novas gerações já nascendo na rua, sem qualquer perspectiva de sair dessa situação. Miséria e falta de acesso fomentam a violência, tornando-os ainda mais marginalizados e excluídos da sociedade. Um ciclo terrível”.

São diversas as particularidades e complexidades na vida e vivência daqueles que estão em situação de rua. Para Katia Santos é importante que primeiramente um vínculo seja criado com essa população, ir se aproximando e construindo soluções “a partir da vida e singularidade dessas crianças, construindo junto com elas alternativas para o que elas necessitam e querem”.

Segundo Katia Santos, é necessário pensar junto às crianças e adolescentes em situação de rua as iniciativas e políticas públicas que irão trazer condições de vida diferentes e dignas para eles. Imagem: Reprodução/ Arquivo pessoal de Katia Santos.

É essencial que esses jovens e crianças sejam agentes ativos nas decisões das suas vidas, e possam participar tanto da construção, quanto da execução dos projetos e propostas. A criação de espaços de participação e decisão é importante para que esses indivíduos possam se expressar e falar do que precisam. Assim, eles têm a oportunidade de exercitar sua cidadania e a reinserção social.

A falta de sensibilidade e tato para se construir um vínculo com essa população, que muitas vezes as autoridades manifestam, dificulta ainda mais o contato e afasta as crianças, como explica Katia. 

“Quando o poder público aparece, se aparece, é para expulsar essas crianças do lugar onde já conseguiram ter uma rede mínima de apoio, ou de forma truculenta, sem a construção de vínculo. As levam para um lugar que não querem ir e assim as crianças vão indo cada vez mais para locais onde as abordagens não chegam. O agente do estado é visto como alguém que produz mais violência e que aprofunda a situação dela de desamparo, risco e vulnerabilidade”.

É necessário fazer muito mais, mas isso com escuta, diálogo e acolhimento, em conjunto, entendendo e percebendo o que essa população carece. É preciso olhar com atenção e cuidado, “[…] são sujeitos que tem o que dizer sobre si e vão nos orientar sobre quais são as principais demandas, e assim conseguimos proteger um pouco melhor e criar uma rede de proteção que minimize riscos”, acrescenta Katia Santos.

Trazer a situação à tona e colocá-la como uma demanda urgente a ser discutida e solucionada é fundamental. Maria Baqui afirma que é necessário que o assunto seja debatido, “trazer pautas, falar sobre, tirar a invisibilidade […] é preciso tratar sobre o tema, pois é uma agenda urgente que não se fala muito e nem se faz muito, pois não afeta diretamente ninguém”. Ela completa dizendo que a criação e implementação de políticas públicas são fundamentais.

“Não adianta nada só estar no papel […] não adianta ter serviço de abordagem social, não adianta ter diversos coletivos e associações se não existe políticas públicas, acolhimento […] casas de passagem não são efetivas, não acolhe todo mundo, casa de passagem não é moradia, o Estado precisa garantir os direitos dessas pessoas”.

A pedagoga Ruth Lima afirma que “continuar com ações para a mitigação do risco é um caminho, e apostar na sensibilização de indivíduos e organizações da sociedade civil organizada ainda será necessário por um longo tempo”. Imagem: Reprodução/Youtube/ Canal Papo de Mãe

Ruth acredita que já seria um passo para o progresso se houvesse aprimoramento, efetivação e monitoramento dos programas sociais e das poucas políticas públicas já existentes. Ela diz que não se pode esquecer de mencionar o trabalho já realizado pelas Organizações Não Governamentais (ONGs) e as instituições religiosas, tão fundamental em um contexto que pouco se é feito pelo Estado.

“Isso ajuda a minimizar as questões relativas à saúde, porém é igualmente claro que eles não são suficientes para suprir as necessidades de um tipo de população que aumentou por demais nos últimos três anos, inclusive na perspectiva das consequências acarretadas pela pandemia. Isso evidencia que os próximos governantes, sobretudo nos níveis Federal e Estadual que serão eleitos esse ano, precisam urgentemente considerar as pesquisas desse tema e considerá-las em suas plataformas de governo, visto que, além de lidar com a necessidade de se garantir os direitos dessa população em situação de rua atual, precisam, anteriormente ou talvez ao mesmo tempo, evitar o aumento do crescimento dessa população”.

Uma outra estratégia citada por Katia, e também já falada por alguns outros profissionais e especialistas na questão, é a criação centros de convivência, um projeto que também está no nível da atenção primária em saúde, mas que faz parte da rede de atenção psicossocial. “São centros onde você tem para toda a população oficinas, artesãos, a possibilidade de conviver com pequenos grupos diferentes, têm propostas de arte, de geração de renda, cultura, lazer, esporte […]”. Ela afirma que esses já seriam pólos de acesso a diversas oportunidades e de formação de vínculos, sendo mais um dispositivo de proteção para essas crianças, “quando elas estão participando de atividades nos centros, elas não estão nas ruas suscetíveis a riscos, a mercê de violência”.

Vivemos uma situação dramática que se agrava a cada dia e transforma a realidade das crianças em situação de rua em uma completa tragédia social. Não é cabível e nem justo que crianças passem suas vidas tentando sobreviver e (r)existir, construindo uma resiliência em um caminho dolorido e batalhando em vão, já que a sociedade as ignoram e as marginalizam. Katia questiona: “Institucionalmente o que está se dizendo é que essas são pessoas que não valem a pena, é isso? E compactuamos com isso?”. Continuaremos a compactuar? Toda vida vale a pena, vale a vida.