Decreto que poderia abrir margem para a privatização do SUS não foi uma ação isolada em direção ao desmantelamento do sistema público de saúde

Comentarista Melissa Rocha- RJ
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Diz a Constituição brasileira que a “saúde é um direito de todos e um dever do Estado”. Porém, a cada ano que passa, essa determinação fica mais longe da realidade. E esta semana se afastou um pouco mais, diante de uma tentativa do governo federal de incluir a iniciativa privada na atuação das Unidades Básicas de Saúde (UBS). 

A questão envolveu um controverso decreto que solicitava estudos para inclusão das UBS no Programa de Parceria e Investimentos (PPI), que celebra contratos entre o Estado e a iniciativa privada e promove medidas de desestatização. As UBS são consideradas a porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS) e são dedicadas a atendimentos primários, como curativos, aplicação de vacinas, entrega de medicamentos e inalações. Elas ajudam a desafogar o sistema público de saúde, evitando que casos de menor gravidade sejam encaminhados a hospitais e emergências. O governo estima que as UBS solucionam 80% dos problemas de saúde da população que depende do sistema público. 

Foi exatamente por conta da importância das UBS que o decreto gerou grande repercussão. Pesquisadores da área da saúde apontaram que o documento seria o primeiro passo para a privatização do SUS. O presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto, o classificou como uma arbitrariedade de Jair Bolsonaro. Diante da repercussão negativa e da pressão da opinião pública, mobilizada através da campanha “Defenda o SUS”, o governo decidiu recuar e revogou o decreto na quarta-feira, 28, apenas dois dias após a publicação. 

O recuo do governo, no entanto, não dissipou a incerteza em torno do futuro do acesso à saúde no Brasil. Isso porque o decreto não foi um fato isolado. Ele vem na esteira de outras ações tomadas na última década que miram tanto a saúde pública quanto a privada. Em 2013, na gestão Dilma Rousseff, operadoras deixaram de vender planos individuais para se concentrar em planos coletivos e empresariais – que são muito mais rentosos. Em 2016, na gestão Michel Temer, os reajustes de planos de saúde passaram a ficar cada vez mais abusivos. Naquele ano, por exemplo, o reajuste autorizado para os planos foi de 13,57%, ficando acima da inflação. O fim dos planos individuais somado aos reajustes abusivos gerou uma debandada de clientes. De 2014 a 2019, a queda no número de beneficiários de planos de saúde foi de cerca de três milhões. Essa queda se manteve mesmo durante a pandemia, pois num cenário de desemprego e aumento da informalidade poucos são os que têm acesso à modalidade empresarial.  

Também foi na gestão Temer que foi dado o pontapé para o desmantelamento do SUS. Em 2018, foi promovido em Brasília o “1º Fórum Brasil – Agenda Saúde: a ousadia de propor um Novo Sistema de Saúde”. Diga-se de passagem, ousadia houve de sobra. Organizado pela Federação Brasileira de Planos de Saúde, o evento contou com a participação do Ministério da Saúde, deputados e senadores, e debateu medidas como a transferência de recursos do SUS para planos de saúde para financiar procedimentos de alta complexidade. Na época, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) divulgou uma nota de repúdio à proposta. A nota foi apoiada pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj).

Na gestão Bolsonaro, o desmonte na saúde ganhou novo ritmo. Após desmantelar o programa Mais Médicos por questões ideológicas, o presidente costurou aliança com a bancada da saúde do Congresso (leia-se bancada dos planos de saúde). Cabe lembrar que o ex-ministro Henrique Mandetta – que recebeu R$ 100 mil da Amil para sua campanha para a Câmara em 2014 – foi alçado ao posto com respaldo da bancada da saúde. E, por fim, o controverso decreto revogado por Bolsonaro nesta semana, na realidade, responde à Resolução 95º, publicada em novembro do ano passado, que solicitava ao presidente a deliberação sobre a permissão de estudos para a inclusão da iniciativa privada nas operações das UBS. 

Como dito no início deste artigo, a Constituição prevê que o acesso à saúde é um direito de todos e um dever do Estado. E a mesma Constituição delega ao Estado o dever de garantir o acesso universal e igualitário à saúde. Mas a realidade é que no Brasil a saúde se tornou um grande modelo de negócios, no qual só têm acesso aqueles que podem pagar. 

E para reverter esse cenário é preciso mobilização e engajamento político. Este ano é ano de eleições municipais, que devem traçar as bases para as eleições gerais de 2022. Certifique-se de que seu candidato defende a manutenção do SUS e propostas para fortalecer o sistema público de saúde, ampliar seu acesso e combater práticas abusivas por parte das operadoras de saúde.