Por Mariana Mendes, Jornalista –SP
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Mesmo com machismo e violência em voga, as mulheres conquistam os espaços como árbitras de futebol

No começo de outubro, em partida entre Guarani e São Paulo do Rio Grande pela segunda divisão do Campeonato Gaúcho, um jogador do time do São Paulo agrediu fisicamente o árbitro da partida, Rodrigo Crivellaro. Em uma cena violenta que chocou a internet e os veículos de comunicação, é possível ver Willian Ribeiro chutando a cabeça do profissional até ficar inconsciente. 

Este ato extremo de agressão não foi o primeiro e, com certeza, não será o último na cena do futebol. A realidade é que os assédios contra a arbitragem são muito comuns, vindos de jogadores, treinadores ou da torcida, mesmo com os protestos da comunidade na semana após o acontecimento.

Entretanto, com o machismo intrínseco no esporte, a luta das árbitras mulheres do futebol brasileiro acaba invisibilizada. Assim como a narração, a arbitragem é outro espaço em que as mulheres avançaram na conquista nos últimos anos. Em jogos do futebol feminino, a maioria dos jogos são apitados por mulheres, mas não em jogos masculinos. Para se ter uma noção da evolução do cenário, em 2017, a CBF não escalou nenhuma mulher nas 35 vagas de arbitragem.

Uma das pioneiras do futebol foi Edina Alves, de 41 anos. Árbitra da FIFA desde 2016, Alves se tornou a primeira mulher em 15 anos a apitar uma partida da primeira divisão do futebol masculino em 2019. O jogo entre CSA x Goiás abriu caminhos e ela foi a única árbitra central brasileira a ser escalada para a Copa do Mundo de Futebol Feminino na França. 

No Mundial de Clubes de 2020, ela foi a primeira mulher a ser árbitra de um jogo masculino profissional da FIFA. Junto com a auxiliar brasileira Neuza Back e a argentina Mariana de Almeida, a partida entre Al Duhail e Ulsan Hyundai FC foi histórica ao apresentar as três na arbitragem. Antes, o cenário internacional da FIFA apenas apresentava mulheres na arbitragem em jogos masculinos da base. Hoje, ela é um dos grandes nomes brasileiros que compõem a arbitragem da maior instituição do futebol.

Edina teve seu primeiro contato com esta função quando ainda estava em Goioerê, cidade em que nasceu, no estado do Paraná. Em 1999, o pai de uma amiga, chamado Osvaldo Miro Mengue, a convidou para trabalhar em uma partida da liga de futebol local. Desde então, não saiu do meio. “O que mais me chamou a atenção foi a adrenalina que envolve a arbitragem no futebol”, comenta.

Com sonhos grandes e hoje alcançados, Edina diz que seu maior desafio foi não desistir da posição de árbitra central. Sem grande regulamentação da profissão, os árbitros e auxiliares são contratados e pagos pelo jogo único de futebol que participam. E com a pandemia e jogos cancelados no ano de 2020, a situação complicou para muitos. 

“A nossa situação não foi tão boa porque parou todas as competições, ainda mais árbitros como eu e a Neuza (Back), que vivem somente com a arbitragem. Estamos a nível internacional e temos que treinar e prestar serviço a federações, CBF, Conmebol e FIFA, com uma carga de treinamento muito grande, análise de vídeo e outras”, ressaltou. Durante o período, a CBF forneceu uma taxa do Campeonato Brasileiro para ajudar os árbitros enquanto os jogos não retomavam. 

Após o retorno das partidas, houve uma outra mudança no cenário. A falta de torcida. E esta foi uma das maiores diferenças para Daiane Muniz, de 33 anos. “O jogo de futebol precisa da torcida. O futebol é um espetáculo que precisa de plateia e a torcida é a nossa plateia. É muito sem graça o jogo sem torcida, parecia que todas as partidas eram iguais. Agora que eles estão no campo, a gente viu o quanto eles fazem falta, apesar de não nos amar tanto assim. A pandemia também foi ruim por conta do treinamento, muitos ficaram sem local pra treinar”, aponta.

Com uma grande paixão pela profissão, Daiane conta como começou. 

“Eu sempre fui muito apaixonada por futebol. Jogava, assistia, torcia, sempre muito envolvida com a modalidade. Quando me apresentaram à arbitragem, eu enxerguei uma oportunidade de continuar próxima (dentro) do campo. Todos os jogos são marcantes. Cada um com sua característica. A energia da torcida é algo que não se descreve. Acontecem situações de todos os tipos em uma partida. Boas e ruins também, devemos estar preparados para não ser surpreendidos”, conta. 

Os vilões do jogo

    A vilania dos árbitros é um dos assuntos mais falados do mundo futebolístico. Os erros são discutidos por horas em programas de TV, rádio e na internet. A torcida não perde tempo de usar palavras de baixo escalão para reclamar. Edna conta como é essa sensação de pressão dentro de campo. As pessoas simplesmente crucificam o árbitro por causa de um erro. Só que, durante a partida, são 90 minutos, mais ou menos, e ali são frações de segundos em que o árbitro tem que analisar as situações dentro dos conceitos, se é falta ou não.”

    “E dentro da partida também pro jogador é a mesma coisa. Quantas vezes o jogador erra um passe, chuta o gol e não consegue finalizar e tudo isso é tolerável. A única coisa que não é tolerável é um erro do árbitro. Eu acho que as pessoas têm que pensar que o árbitro é um ser humano comum lá dentro do campo de jogo e está passivo a erro como um jogador, como qualquer outro ser humano que erra no seu trabalho” complementa Edina. 

Porém, os erros cometidos por um árbitro podem atrapalhar o seu sustento, já que eles precisam ser escalados para os jogos e são pagos pela partida. “Nós vivemos de resultados e, se o nosso resultado dentro de campo não for bom, isso vai nos tirar a escala. Então, as pessoas teriam que ver de outra maneira porque sempre queremos dar o nosso melhor”, finaliza.

    Daiane destaca o profissionalismo que os árbitros buscam. “Tratamos os atletas e as equipes como profissionais. Somos sempre os vilões dos jogos, não importa quem ganhar, alguém vai ficar insatisfeito com a arbitragem. Somos bem preparados para lidar com isso,  para que isso não interfira na nossa atuação em campo”. 

    Em relação à violência e aos xingamentos direcionados aos seus colegas, Edina e Daiane concordam que é um problema universal. “Todos nós temos que ter essa campanha contra essas coisas que estão acontecendo, que são horríveis e isso caminha junto com o futebol. Isso não é futebol. Isso aí são pessoas que não estão ali no meio e causam essas situações horríveis dentro do futebol que tanto amamos. E o futebol tem que ter pessoas do bem. Temos que respeitar mais o nosso próximo e agir como se você não gostaria que aquilo acontecesse com você”, ressalta Alves.

    “Eu acredito que não só na arbitragem, mas todos nós precisamos ser resilientes”, afirma Daiane. “O nosso erro dentro de campo tem uma visibilidade muito grande, um questionamento muito grande, como se nós não tivéssemos o direito de errar.  Essas situações fazem com que a gente se cobre muito de nós mesmos. E isso acaba interferindo no nosso dia a dia.” O treinamento mental também é algo importante em relação ao machismo sofrido pelas árbitras femininas, de acordo com Edina. “É necessário união e luta, principalmente para manter um pilar físico, mental e técnico em dia.”

    Ainda sobre a violência que ainda atinge seriamente os profissionais, Daiane aponta uma necessidade de melhoria nas ações das instituições. “É necessário que haja punição. Cada liga, cada instituição, seja ela amadora ou não, tem o seu regulamento e nós somos protegidos pelo pelo Tribunal Superior de Justiça Desportiva.  Então, existem sim as punições. Porém, acredito que pode ser melhorada.”

A evolução da profissão

    Como destacado, Edina Alves foi uma das precursoras em diversos ambientes da arbitragem do futebol. O trio 100% feminino no Mundial de Clubes foi uma conquista traçada por diversas mulheres ao redor do mundo. Árbitras mulheres dentro de campeonatos femininos e masculinos expandem a noção de gênero dentro do cenário. E as brasileiras se destacam por quebrar barreiras. 

    Em 1971, Asaléa de Campos Fornero Medina, ou apenas Léa Campos, foi a primeira mulher árbitra reconhecida pela FIFA, fazendo parte do quadro até 1974. Ela foi convidada a apitar uma partida amistosa de futebol feminino no México. Léa se tornou árbitra em um período em que, por lei, mulheres e esportes não eram bem vistos.

    O Decreto-Lei 3199, de 14 de abril de 1941, proibia a prática de modalidades pelas mulheres. Porém, entendendo que o artigo não especificava a função de árbitros, Léa desafiou a todos ao completar o curso na Escola de Árbitros do Departamento de Futebol Amador da Federação Mineira de Futebol em 1967. Seu caminho teve muitos obstáculos. Léa foi proibida de apitar jogos em diversos estados, como São Paulo e Rio de Janeiro, enquanto Minas Gerais e Rio Grande do Sul a apoiavam.

    Ela decidiu buscar apoio da presidência do país, em pleno período de ditadura militar. Porém, após o convite da FIFA, ela ganhou o destaque no continente americano e na Europa. Sua carreira, infelizmente, não durou muito. Após um grave acidente de ônibus e a presidência da FIFA assumida por João Havelange, que era fortemente contra as mulheres no ambiente da arbitragem, ela foi forçada a desistir do futebol. 

Muitos anos depois, Edina Alves, Neuza Back e Tatiane Sacilotti comandaram a semifinal da Copa do Mundo Feminina, que ocorreu em Paris em 2019. Este passo começou com Léa e continua com essas e outras árbitras que, em uma partida entre Inglaterra e Estados Unidos, potências do futebol feminino, chamaram a atenção para as profissionais brasileiras, mostrando como exemplos para meninas os espaços que podem, sim, ser conquistados. 

Back se tornou a primeira brasileira a ser bandeira de um jogo internacional fora do país, em 2020, com a Copa Sul-Americana. Ela é, inclusive, a mulher com mais jogos realizados no Campeonato Brasileiro Masculino, de acordo com uma reportagem da CBF. Outra mulher que precisa ser destacada é Janette Arcanjo. Hoje, comentarista de arbitragem do Grupo Globo, a ex-árbitra foi a única representante do país na Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2015, formando o time de assistentes no jogo entre Holanda e China. 

Edina ainda se tornou a primeira mulher a apitar um dos maiores clássicos de futebol do Brasil, Corinthians e Palmeiras, conhecido como Derby, em março deste ano. Sobre as diferenças de comandar um jogo masculino e feminino, Daiane Muniz diz que os jogos têm características diferentes. “Hoje, nós nos deparamos com um futebol feminino bastante forte, que vem evoluindo muito e ganhando visibilidade. Pode-se falar que é um jogo bastante técnico, bastante tático, diferente de como era a uns três, quatro, cinco anos atrás. É bastante gostoso apitar um jogo feminino hoje. O futebol masculino é bastante duro. Em campo, nós nos preocupamos em controlar a partida, em controlar o jogo, em controlar os ânimos dos atletas. E com as meninas a gente se preocupa sempre em estar mais próxima do lance, em estar preparada para questões técnicas que podem surgir durante o jogo.”