Por Regina Fiore, Jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista

 

A capital de São Paulo não para de nos surpreender. Dessa vez a surpresa veio em forma de abaixo-assinado contra a construção de moradias populares. Eu sempre odiei surpresas.

 

Manuel Bandeira escreveu, em 1947, o poema O Bicho:

 

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

 

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

 

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

 

O bicho, meu Deus, era um homem.

 

O jornal Folha de São Paulo publicou uma matéria sobre um abaixo-assinado que foi feito pelos moradores do bairro Bom Retiro centro de SP)  para que a Prefeitura desistisse de construir moradias populares para pessoas em situação de rua em um terreno abandonado, que antes era ocupado pelo Detran. O documento tem mais de mil assinaturas e se dirige diretamente ao prefeito Ricardo Nunes (MDB).

 

Já peço desculpas pelo bairrismo, mas o primeiro pensamento que me ocorre é: o que poderia levar moradores de uma região a serem contra um projeto que pretende emprestar moradia para 1.200 pessoas (emprestar, porque a moradia seria concedida às famílias pelo tempo de, no máximo, 18 meses) que não têm onde morar? Que espécie de monstro poderia ser contra colocar um teto sobre a cabeça de pessoas que estão, literalmente, congelando de frio? A resposta é simples: meus vizinhos!

 

Morar no Centro de São Paulo é uma experiência única (e não muito bonita). Eu me afeiçoei ao meu apê de 35 metros quadrados, pertinho do metrô e do lado de vários lugares que eu adoro frequentar. Mas a região é abandonada pelo poder público: muitas pessoas ocupando as calçadas, muitos relatos de violência (eu mesma já fui roubada por ali) e cada vez mais pessoas pedindo dinheiro ou comida ou bebida para tentar sobreviver. Morar naquela região me obriga a olhar para essas pessoas que, muitas vezes, são invisíveis aos nossos olhos, ocupados demais com nossos próprios problemas. E dói. Dói muito ver pessoas passando por extrema dificuldade, procurando comida no lixo, bebendo para esquecer o frio, a fome e o abandono. 

 

Ouvi no podcast Calcinha Larga esses dias que até o Padre Júlio Lancelotti tem haters. É como odiar um cara que faz parte do Médicos Sem Fronteiras ou uma daquelas senhoras que distribuem sopa à noite para as pessoas que estão com fome. Sabe aquela expressão “não é nem gente, é anjo”? Essas pessoas são uma prova de que, realmente, alguém nesse universo sente compaixão por nós. Esses haters são os mesmos que fazem um abaixo assinado para tentar convencer a prefeitura a não construir moradia para pessoas que não têm onde morar e enfrentam toda sorte (ou azar) de violência, frio, fome, desamparo e discriminação. 

 

Os alecrins dourados ainda se justificam: “meu imóvel, que valia R$ 600 mil reais, vai se desvalorizar ainda mais”. Obviamente a situação caótica que o país vem vivendo não tem nada a ver com isso. A responsabilidade é mesmo das pessoas em situação de rua que não têm para onde ir. Essa síndrome que nos entrega uma mistura morfética de superioridade com ignorância é forte aqui no Brasil: esconda-os em algum lugar longe de nossas vistas, minha propriedade é mais importante do que a sobrevivência de 1.200 pessoas. 

 

Ainda tem mais: “a violência vai aumentar, vai haver mais tráfico de drogas, mais roubos, mais insegurança”. O discurso dos signatários do documento é carregado de preconceito de classe e de racismo, porque sabemos que a maioria das pessoas em situação de rua é negra. São idosos, mulheres, crianças, homens com a saúde mental extremamente afetada por não terem a segurança de uma casa. 

 

Este ano é ano de eleição: a prefeitura está desesperada para entregar obras significativas para agariar votos, verdade. Mas é preciso reconhecer que o Estado, em todas as suas instâncias, é responsável por garantir moradia para todos os brasileiros. Quando desponta alguma iniciativa que tenta minimizar os efeitos da crise no país (onde mais de 30 milhões de pessoas passam fome), surgem também as pessoas que, em algum momento do seu dia a dia classe medi(ocre)a, esqueceram-se completamente de sua humanidade. 

 

O plano de implantação do projeto, chamado de “Vila Reencontro” está a todo vapor, com previsão de inauguração no segundo semestre. São 16 mil metros quadrados de construção que vai abrigar, além das moradias de 18 m2 para as famílias, serviços públicos para atender a população da Vila: serão implantados equipamentos de saúde, educação, assistência social, inclusão digital e produtiva para que, quem sabe, daqui a 18 meses essas pessoas possam buscar uma moradia um pouco maior e um emprego que lhes dêem condições mínimas de sobrevivência.

 

Fala imperdível de uma das entrevistadas: “Essas casas vão mesmo ajudar ou piorar a vida deles? O que eu entendo [é que] esse prefeito vai fazer para eles um campo de concentração”. Bem, você, que deu essa declaração infeliz, com certeza não sabe o que é ajuda e muito menos o que é um campo de concentração. Mas ela continua: “Daqui um ano nesse lugar pode estar morando 5 mil pessoas, 10 mil pessoas, porque vem trazendo a família e em cada casinha pode estar morando 20 pessoas dentro. Quem vai monitorar tudo isso? Quem vai olhar tudo isso? Como vai ficar tudo isso?”. 

 

Será que ela chegou no Brasil ontem? Inúmeras famílias, algumas delas com mais de dez pessoas, dormem em um único cômodo porque não têm acesso a outro lugar para morar. Esse problema já existe há muitos anos, inclusive nas penitenciárias brasileiras, mas com certeza a dona dessa frase não está nem aí para essa outra parcela da população brasileira marginalizada. Coloca em seu preconceito a máscara fajuta da preocupação. E ainda, literalmente, assina embaixo. 

É inacreditável que realmente existam pessoas que são contra projetos como esses. A Secretaria  Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social respondeu, em nota, que desconhece o abaixo-assinado e que, para o novo projeto, todas as medidas de controle de acesso estão sendo dimensionadas a fim de evitar qualquer transtorno para a região. 

 

A prefeitura está praticamente pedindo desculpas aos meus vizinhos por estar fazendo o mínimo do seu trabalho, que é acolher as pessoas em maior vulnerabilidade social. “Pedimos desculpas, Maria Antonieta da Avenida do Estado. Estamos fazendo o máximo para não incomodar seu dia a dia com demandas supérfluas da população, como ter uma casa para morar. Mas sabe como é, né. Infelizmente tem gente que nos elegeu para isso, não tem muito como escapar. Mas fica aqui nossos pedidos sinceros de desculpas, não foi nossa intenção incomodar”. 

 

A cidade é para todos, seja você uma pessoa em situação de rua, um usuário de drogas, o dono de uma cobertura na Vila Nova Conceição, um trabalhador de classe média que pega metrô todos os dias, um vendedor ambulante ou um signatário do preconceito. Mas eu me atreveria a dizer que a cidade é ainda mais das pessoas que precisam da administração pública para minimamente sobreviverem. É obrigação da prefeitura cuidar das pessoas que estão morando na rua. É nossa obrigação, como eleitores e cidadãos, cobrar da prefeitura que todas as pessoas sejam tratadas com dignidade e tenham, pelo menos, um teto sobre as suas cabeças. Deveria ser sua obrigação, signatário do abaixo-assinado higienista, recolher-se na sua insignificância. Mas, infelizmente, estamos todos cumprindo muito mal nossos papéis.

 

Quino, cartunista responsável pela criação da personagem Mafalda, publicou em 1990 esse diálogo entre ela e sua amiga, Susanita:

 

 

Temos uma nova (velha) síndrome que explica um pouco do Brasil: a Síndrome Susanita.

Boa sorte para nós.