Por Regina Fiore, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes

Com apoio irrestrito dos Estados Unidos, Israel estabeleceu o próprio país, o próprio significado do que é Estado militarizado e a própria narrativa sobre o território da Palestina

No dia 6 de outubro de 2023, aniversário de 50 anos da Guerra do Yom Kippur, Israel acordou sob o ataque de milhares de mísseis do Hamas, grupo extremista que existe há 30 anos. O último grande ataque do Hamas contra terras israelenses havia sido em 2021 e, há alguns meses, existia um consenso entre os articuladores políticos do Oriente Médio de que o grupo estava adotando um tom mais racional e moderado em relação aos conflitos entre Palestina e Israel, ao mesmo tempo em que se aproximava do Irã. 

As primeiras informações foram de que 700 israelenses foram mortos em 6 de outubro e mais de 50 pessoas foram sequestradas – parece que a adoção do tom moderado era, na verdade, cortina de fumaça para o que viria a ser o segundo maior ataque terrorista do século XXI (até agora). Correndo o risco de parecer injusta, se uma coisa barulhenta está quieta demais, é porque alguma coisa ela está tramando – vem aí. Como explicar o tamanho da falha da inteligência militar de Israel? 

Israel dormindo com o inimigo debaixo do assoalho

Jeusalém, cidade localizada em Israel e considerada sagrada por árabes muçulmanos, judeus e cristãos | Imagem: Pixabay

Sendo uma grande entusiasta de histórias de terror e suspense, consumo conteúdos dos mais diversos, desde o sobrenatural (meus preferidos) até histórias de crimes reais, perfilagem de serial killers, crianças que cometeram crimes considerados tão hediondos que foram julgadas como adultos em décadas passadas, nobres que se envolveram com práticas ocultas para se manterem jovens – a verdadeira espetacularização da violência que vem sendo retomada pelos podcasts de True Crime e as produções dos streamings. 

Existe, no entanto, um tipo de história que me deixa mais apavorada e angustiada do que qualquer uma dessas e ficou famosa em 2019, mas parece que acontece com muito mais frequência do que é divulgado: uma jovem brasileira, que morava em Londres, alugou um apartamento e aceitou receber um hóspede australiano em casa. Colocou o moço para dormir num colchão, no chão do lado da sua cama e, em uma madrugada, o australiano acorda a brasileira e insiste para que ela saia com ele para comprar comida, dizendo que está passando mal. 

Quando os dois saem da casa, ela muito irritada por ter sido acordada no meio da noite e sair no frio para comprar comida, o australiano desesperado diz para chamarem a polícia porque viu, embaixo da cama dela, a cabeça de um homem. A polícia chega e descobre que havia um homem morando embaixo do assoalho da menina há meses, planejando matá-la – e ainda confirma que episódios assim são bastante comuns, pessoas morando em sótãos, se escondendo embaixo de camas, se esgueirando na casa de outra pessoa, sem que os donos saibam e sequer percebam. 

Atualmente, o conflito que dura pouco mais de duas semanas já deixou mais de seis mil mortos, mais da metade deles são Palestinos | Imagem: Pixabay

No mesmo ano, o filme sulcoreano Parasita – merecidamente premiadíssimo – foi lançado e um dos momentos mais intensos do filme é a descoberta de que a família da mulher, que antigamente fazia os serviços domésticos para os donos milionários da casa onde (quase) tudo acontece, morava no porão da mansão. Ficção, realidade, mais relatos sobre o assunto e esse virou um dos meus maiores pânicos. 

O que me consola muito: eu vivo em um apartamento de 35 m², praticamente sem divisórias, com cama-baú e um guarda-roupas que mal cabe minhas coisas. Seria impossível alguém, além de mim, morar ali e passar despercebido por 20 segundos que fossem. E tenho uma gata, que funciona como um drone e, ao menor sinal de movimento, é capaz de me avisar se algo ou alguém está circulando pela casa (geralmente uma mariposa ou o robô aspirador preso em alguma cadeira). 

Esse foi o tamanho da falha do departamento de inteligência militar de Israel diante do mais recente ataque do Hamas: com controle da área e vigilância aérea, marítima e terrestre, foi como se eu não percebesse que uma pessoa adulta indesejada está usando o meu banheiro há meses, em um apartamento menor do que a casa de bonecas da Chicago Kardashian, com apenas uma porta, cujo único acesso é atravessando meu quarto. Meia dúzia de pessoas mortas, já teria sido declarada a guerra. 

A Terra Prometida, de onde mana mel e sangue

De acordo com os dados oficiais mais recentes disponíveis, em 17 dias de conflito, mais de 6 mil pessoas morreram. Provavelmente, foram muito mais – incluindo civis. O Ministério da Saúde do Estado da Palestina informou que o conflito deixou 4.651 mortos e 14.245 feridos na Faixa de Gaza. Já é a guerra mais mortal em toda a história de Gaza e em 50 anos para Israel. O número de vítimas fatais em território palestino é quase o dobro do número de pessoas mortas em território israelense, segundo dados da ONU. As mortes devem aumentar exponencialmente, caso Israel siga com as ofensivas por terra. 

Imagem: Pixabay

Para calibrar as expectativas, minha sinopse para essa história seria muito melhor aceita pela Prime Video do que pela Netflix. A história toda do conflito entre Israel e Palestina vem de muito tempo atrás e tem ligação com um conflito ainda maior, entre os povos árabe e judeu. A região da Palestina, basicamente, era habitada por uma maioria árabe, mas também por muitos judeus – vale lembrar que, ao longo da história, os judeus passaram por muitas ondas de migração e perseguição. 

A região acabou sendo referenciada como “uma terra sem povo para um povo sem terra” – povo sem terra, tratando-se dos judeus, o que despertou a ira dos povos árabes, que também chamavam aquela terra de sua. Muita gente se meteu nesse meio, como foi bastante comum acontecer durante todo o século XX, o auge do período neocolonial imperialista – Inglaterra liderando e já ensinando os EUA a fazer guerra no território alheio, hasteando a bandeira do “eu sei o que é melhor para vocês, confia”. 

Eu tenho dificuldade de entender como funciona a partilha de bens em um divórcio, sou totalmente capaz de reconhecer minha incapacidade de explicar com detalhes todos os conflitos que ocorreram na região conhecida na Bíblia como Canaã e no Torá como Sião, depende de que versão dos conto de fadas você decide acreditar. A verdade é que a região ali sempre foi muito disputada, desde a Antiguidade, e já foi dominada por muitos impérios: egípcios, assírios, babilônios, persas, gregos, romanos, bizantinos, árabes, turcos, até chegar nos ingleses. 

O óbvio precisa ser dito – até para a ONU

Usufruindo da falta de profundidade dos tempos atuais, vamos dar um salto: a Segunda Guerra Mundial acabou em 1945 e um dos horrores descobertos com o fim da guerra foi o genocídio promovido pelos nazistas, que perseguiram e mataram religiosos, homossexuais, pessoas com deficiência, comunidades Roma e Santi, negros, prostitutas, ladrões e judeus – os bodes expiatórios do Terceiro Reich, estimados em mais de 6 milhões de vítimas. 

Três anos depois, a Europa ainda estava se reorganizando diante do pós-Segunda Guerra: EUA e União Soviética como novas potências mundiais, reflexos das bombas atômicas, criação e estabelecimento da ONU, fantasmas do fascismo, cidades destruídas, sobreviventes do Holocausto procurando entender o que fazer e para onde ir. Muitos deles, refugiados em várias partes da Europa. Os líderes europeus levaram o problema todo para a ONU, que facilmente poderia ter dito “como eu vim parar aqui, eu só tenho seis anos” diante de uma questão tão complexa. 

Imagem: Pixabay

O interessante, não só da ONU, mas de todas as organizações, grupos econômicos e cúpulas de governo, é que são um grupo de pessoas (geralmente, homens) reunidas em volta de uma mesa de mogno muito bem lustrada, consultando outras pessoas (geralmente, outros homens), com um mapa mundi gigante aberto, olhando para os territórios como se não passassem de linhas e formas em um papel amarelado, como se não se tratassem de pessoas reais vivenciando problemas reais, como se a solução para algumas questões fosse tão simples quanto o mapa mundi que elas encaram. 

A proposta feita por todos aqueles líderes foi que a região (onde hoje está Israel, a Faixa da Gaza e mais alguns territórios) fosse dividida entre judeus e palestinos – já diria Rei Salomão: “corte a criança ao meio e dê metade para cada mulher”. O problema: a maioria da população da região era palestina (o dobro da população de judeus) e a maioria do território seria designada ao povo judeu (65%). Obviamente, os palestinos não aceitaram a proposta. Ninguém aceitaria essa proposta. Inclusive, se a ideia da ONU era compensar o povo judeu pelo Holocausto, por outro lado parece uma provocação contra o povo árabe. 

Mal a reunião da tal proposta completamente descabida terminou, Isreal declarou independência, demarcou seu próprio país, que ocupava 78% de todo o território palestino, e as potências do pós-guerra, EUA e URSS reconheceram rapidamente o novo Estado, afinal eles tinham o resto do mundo todo para dividir entre si. No dia seguinte, os palestinos já estavam prontos para atacar Israel e estamos aqui até hoje. De 1948 até hoje. 

Caixinha de dúvidas – e sugestões (Taylor’s Version)

Não existem muitas conclusões possíveis para esse texto. A guerra entre Israel e Hamas ainda está em andamento – é importante lembrar que o Hamas não representa a Palestina nem todos os palestinos, eles são um grupo extremista. Se a Palestina fosse a Taylor Swift, as 50 mil pessoas que vão ao show seriam os palestinos e o Hamas seriam apenas as 2 mil que tiveram pneumonia meses antes na fila de venda dos ingressos e saíram no tapa com os cambistas para ficar na área Super VIP.

Tenho, no entanto, algumas dúvidas, reflexões, sugestões e pensamentos que me ocorrem sobre o tema:

1. No filme Guerra Mundial Z (que nada tem a ver com o assunto, apesar de ser um dos melhores filmes de zumbis já feitos), o roteirista foi genial: colocou o Brad Pitt em Jerusalém, cidade sagrada para muçulmanos (maioria dos palestinos), judeus e cristãos. Diante do apocalipse zumbi – iminente – milhares de pessoas se reúnem entre os muros da Cidade Antiga e começam a rezar, entoar rezas e canções, pedindo proteção ao deus que lhes convêm. Acaba virando uma disputa entre quem reza mais alto: judeus, cristãos, muçulmanos ou os comandos dos militares. Os zumbis, que até então estavam sendo contidos pelos muros, se empilham uns sobre os outros, ultrapassam as barreiras – de concreto, militares, da fé, de quem acredita no que – e atacam cristãos, mulçumanos e judeus. Os militares, como sempre, não dão conta da confusão. Os que sobrevivem, invisíveis para os zumbis, são os doentes terminais – esquecidos por deus, seja ele qual for. A beleza da ironia!

2. Por que existe um país para os seguidores de uma religião se não existe para os seguidores das outras religiões ou para os não-religiosos? Judeus, sejam bem-vindos a todos os lugares do mundo.

3. A criação de Israel foi uma reparação histórica? Se sim, como será possível fazer todas as reparações históricas necessárias com todos os povos que foram, de alguma forma, perseguidos?

4. Seria a pessoa que propôs a divisão de território entre Palestina e Israel em 1948 um irmão injustiçado, que sempre ficava com a fatia menor do bolo?

5. Como será que o Hamas fez para burlar a inteligência militar de Israel? Será que a ajuda do Irã no quesito “burlar inteligência militar” foi decisiva?

6. Será que Biden, presidente dos EUA, está bem quietinho para evitar colocar mais petróleo nesse fogaréu (se fosse para retirar petróleo, ele já estaria a postos) ou por que os efeitos do botox estão dificultando a comunicação verbal?

7. Seria uma alternativa para a paz trazer o pessoal mais envolvido com as decisões da guerra para São Paulo, em um tour gastronômico pelos melhores restaurantes árabes e judeus da região?

8. Os navios que levaram os judeus da Europa até Israel chamavam-se Êxodo. Só curiosidade mesmo. A ONU é boa nisso: batizar navios.