Por Daniele Haller, Jornalista – Alemanha

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Editora Chefe: Letícia Fagundes, Jornalista

O que esses três fatores têm em comum? No ano de 2020, durante o início da pandemia e em meia a quarentenas, o número de pedidos no setor de gastronomia aumentou significativamente, os trabalhadores de aplicativos de entrega de comida tiveram que continuar trabalhando sob condições de exposição ao vírus e tendo que lidar com uma realidade controvérsia: entregar comida e não ter o que comer.

A pandemia acabou gerando mais trabalho para os profissionais da área de entrega, o que poderia ser visto de forma positiva dentro de condições adequadas, no entanto, essas pessoas precisaram lidar, no pico do vírus, com a exposição, não direito ao isolamento, baixa remuneração e, consequentemente, renda insuficiente para se manter ou manter suas famílias. Diante da situação, em julho do ano passado, os entregadores de aplicativo organizaram uma paralisação nacional buscando apoio da população pela melhoria nas condições de trabalho da categoria. Dentre as reivindicações estavam pedidos de auxílio-lanche, auxílio para oficina/borracharia, medidas de proteção em caso de roubo/acidente e remuneração adequada por quilometragem.

Apesar do aumento na demanda no trabalho, esses profissionais tiveram que custear gastos fora do seu orçamento, com produtos de desinfecção e máscaras, pesando ainda mais no bolso daqueles que não receberam auxílio de empresas. Em matéria divulgada pelo CanalTech, aplicativos como ifood, foodtech e o Rappi, alegaram ter concedido, a todos os entregadores cadastrados, kits com álcool em gel e máscaras, no entanto, segundo o depoimento de Edgar Francisco da Silva, presidente da AMABR(Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos), a entrega desses kits não ocorreu de forma frequente, sem reabastecimento, deixando por conta do entregador.

Segundo dados divulgados no site da SINDIMOTOSP(Sindicato dos mensageiros, motociclistas, ciclistas e mototaxistas intermunicipal do Estado de São Paulo), o número de mortes por acidentes envolvendo entregadores no exercício da profissão teve um aumento de 48% durante a pandemia. Esse resultado foi divulgado no relatório da INFOSIGA, que comparou os números de 2019 e 2020, no período de janeiro até setembro, mostrando que, somente na capital de São Paulo, o número de mortes subiu de 21 para 32, um aumento de 52% no número de casos.

Além das inúmeras diversidades as quais os profissionais de entrega têm lidado durante a crise da Covid-19, surgem novos obstáculos; inúmeras reclamações de clientes insatisfeitos após terem realizado o pagamento e não receberem a encomenda. Nas redes sociais dos aplicativos como Ifood, Uber eats e Rappi, são inúmeros os comentários de pessoas que sofreram o que foi batizado como “Golpe dos 10 minutos”. Como funciona? Segundo esses aplicativos, caso o pedido chegue ao local de entrega e o entregador tenha esperado e o cliente não apareceu ou o entregador não encontrou o endereço, ele poderá ativar o procedimento padrão para entregas malsucedidas. Após ser ativado, se inicia uma contagem regressiva de 10 minutos, onde o entregador pode tentar entrar em contato com o cliente e, caso não tenha sucesso, a entrega poderá ser cancelada e sem direito ao reembolso. De acordo com os comentários e reclamações feitas pelos clientes, eles acusam os entregadores de utilizarem a manobra para ficarem com o pedido sem serem punidos, pois, segundo as regras do aplicativo, ele agiu corretamente, portanto, o cliente não poderá ser reembolsado.

A situação tem gerado revolta e discussão dentro da categoria, que se sente lesada pelas acusações, pois podem ser punidos pelas plataformas, perdendo suas contas ou sendo suspensos. Enquanto clientes reclamam sobre a não entrega de comida e não reembolso, os entregadores alegam que muitos clientes realizam o pedido, recebem a encomenda e depois cancelam, alegando não ter recebido nada. Segundo os trabalhadores de aplicativo, tais clientes tentam receber reembolso, mesmo que o pedido tenha sido entregue.

Por um lado, clientes dizem não ter recebido o pedido, por outro, uma classe trabalhadora que se vê prejudicada pelas acusações e afirma que os próprios clientes criam o ocorrido. O que vemos aqui vai muito além de acusações sobre quem cometeu ou não o erro, mas o porquê desta situação está ocorrendo frequentemente dentro da pandemia. A atual circunstância tem provocado tais problemas?

De acordo com um estudo realizado pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir Trabalho) da Unicamp, a pandemia tornou o trabalho de entregadores por aplicativo ainda mais precário. A pesquisa buscou captar os impactos que a pandemia da Covid-19 tem causado na vida desses profissionais, onde contou com a participação de 298 trabalhadores de diferentes cidades do Brasil: “Os resultados revelados apontam para a manutenção de longos tempos de trabalho, associado à queda da remuneração desses trabalhadores que hoje arriscam sua saúde e a de suas famílias, no desempenho de um serviço essencial para a população brasileira, ao contribuírem para a implementação e a manutenção do isolamento social no contexto da pandemia. Em relação às medidas de proteção, os trabalhadores as vêm tomando e as custeando por conta própria. A grande maioria dos entrevistados afirmou adotar uma ou mais medidas de proteção na execução de seu trabalho, enquanto as medidas adotadas pelas empresas concentram-se na prestação de orientações”.

Delivery person cycling through city streets on his way to customer at night

Fatores sócioeconômicos têm contribuído cada vez mais para o “desespero” de trabalhadores que se colocam em situações de trabalho totalmente inadequadas para garantir o próprio sustento e o da família. Dados do IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, mostram que a situação da fome no Brasil tem se agravado desde o ano passado até o momento. Em setembro de 2020, o país contava com 10,3 milhões de pessoas sem acesso à alimentação básica e regular, o que tem piorado nos últimos meses. O IBGE também aponta o aumento de mais de 15% no preço dos alimentos, desde o começo da crise Covid-19, acompanhado da taxa de desemprego atual, que chegou a  14,2%, cerca de 14,3 milhões de desempregados.

 

O tão querido arroz e feijão no prato brasileiro está se tornando cada vez mais inacessível para uma parte da população brasileira. Pesquisa da  FGV Ibre mostra que aconteceu um aumento de 60% no preço dos dois itens, nos últimos doze meses. Com isso, aumenta a insegurança alimentar no país e o medo do avanço da violência, furtos e roubos, é o que aponta uma pesquisa realizada pela Rede de Pesquisa Solidária, sobre o Painel de monitoramento com lideranças comunitárias sobre os impactos do avanço da pandemia da Covid-19. Segundo os resultados elaborados a partir das respostas de líderes comunitários de diversas regiões do Brasil, entre os problemas vividos na comunidade as consequências da pandemia nas próximas semanas, a instabilidade com alimentação, expansão do vírus e aumento da violência estavam entre as respostas mais citadas.

A situação a qual os entregadores ou clientes têm relatado atualmente, elas vão além de acusações de aplicações de golpe,  engloba a questão social e econômica a qual o Brasil vive nesse momento, onde, sem respostas ao apelo da sociedade, sem o apoio necessário da parte do governo, as pessoas sentem-se cada vez mais desesperançadas, desamparadas e tentam buscar os próprios meios para resolverem situações que precisam de soluções imediatas e urgentes. Muitos estudos ainda estão sendo feitos para descobrir quais os efeitos e sequelas que a COVID-19 poderá deixar nos pacientes, mas, no contexto social, podemos ver que as consequências estão chegando e vão dizimando, assim como a doença, cada vez mais a população, não apenas pelo vírus, mas pelo medo do amanhã, medo da fome.