Declarações de Bolsonaro e histórico do diretor-geral da Anvisa expõem a necessidade de
impedir o aparelhamento da agência reguladora

Criada em 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é um órgão de suma importância para o Brasil. Ela é responsável pelo controle sanitário, fiscalização e concessão de registro de uma miríade de produtos, que têm impacto direto na saúde da população. Entre os produtos, estão medicamentos, alimentos, bebidas, cosméticos e produtos de higiene.

Tais atribuições fazem da agência reguladora um órgão-chave para a política de saúde pública do país – especialmente em um contexto de pandemia. E foi exatamente por conta dessa importância que a Anvisa se viu, nesta semana, envolta em uma discussão sobre tentativas de politização do órgão. O imbróglio teve início após a Anvisa suspender os estudos clínicos da vacina CoronaVac, que é produzida pelo laboratório chinês Sinovac e vem sendo testada no Brasil pela Anvisa, com apoio do Instituto Butantan.

A interrupção dos estudos imediatamente gerou suspeitas de interferência do governo de Jair Bolsonaro na Anvisa – suspeitas essas que tinham como base as críticas do presidente à vacina chinesa. O diretor-geral da Anvisa, Antonio Barra Torres, negou as acusações. Ele destacou que a decisão foi tomada em caráter técnico, com base no regulamento da agência para ensaios clínicos. De fato, o protocolo apontado (RDC 9/2015) determina a suspensão de testes em casos de eventos adversos graves, e a retomada dos ensaios somente é autorizada após ser comprovado que o evento não teve qualquer relação com a substância em teste. Esse protocolo de segurança é comum e seguido por diversos laboratórios ao redor do mundo. Uma vez esclarecido que o evento não teve relação com o ensaio, os testes são liberados – os da CoronaVac foram retomados na quarta-feira, 11.

Ou seja, há mais fumaça do que fogo no imbróglio envolvendo a Anvisa, exceto por dois elementos. O primeiro envolve a reação de Bolsonaro diante da interrupção são dos ensaios. Em um comentário no Facebook, o presidente celebrou a suspensão dos testes como uma vitória pessoal. Em seguida, em discurso no Planalto, ao falar sobre a pandemia, ele disse que o Brasil precisa deixar de ser um “país de maricas”, chamou a imprensa de “urubuzada” e tornou a dizer que “todos vamos morrer um dia”. Impressiona desconexão com a realidade presente no argumento. Seria o mesmo que dizer a uma pessoa no meio de um tiroteio para não buscar abrigo, pois todos vamos morrer um dia. Mas Bolsonaro não estava se dirigindo à toda população. Sua fala mirava o núcleo duro de seu eleitorado. Prova disso é que os comentários repetem a mesma fórmula de sempre, quase como uma receita de bolo: exaltam a macheza, minimizam a pandemia e atacam a imprensa. Trata-se da mesma tática de criar um inimigo usada em julho, quando o presidente ergueu uma caixa de hidroxicloroquina diante de seus apoiadores. Na ocasião, os “inimigos” eram cientistas e estudos que informavam que o remédio não tinha eficiência contra a Covid-19. Agora, é a vacina chinesa que faz o papel de “inimigo”.

A sede do presidente em agradar apoiadores nos leva ao segundo – e mais preocupante – elemento: o diretor-geral da Anvisa, Antonio Barra Torres. Médico e militar, Torres foi alçado ao cargo por sua proximidade com Bolsonaro e já deu sinais de que compartilha da mentalidade do presidente em relação à pandemia. Em março, ele participou de um ato pró- Bolsonaro, sem utilizar máscara, contrariando a recomendação do Ministério da Saúde. No mesmo mês, Torres teve voz ativa nos pedidos para que Bolsonaro obrigasse o ministério na orientação dada a estados para restringir a saída de cruzeiros durante a pandemia.

Na ocasião, Torres se alinhou ao Ministério do Turismo contra a orientação do Ministério da Saúde. E a dúvida que fica é: não deveria o diretor-geral da Anvisa estar mais preocupado com a saúde do que com turismo? Além desse questionamento, há também o fato de que a ação de Torres contrariou a própria lei de criação da Anvisa), que determina que “as atividades de vigilância epidemiológica e de controle de vetores relativas a portos, aeroportos e fronteiras, serão executadas pela Agência, sob orientação técnica e normativa do Ministério da Saúde”.

O histórico de ações de Torres, somado à sua proximidade com Bolsonaro, é preocupante, pois pode torná-lo um fantoche do presidente a ser usado para o aparelhamento ideológico da Anvisa. Na última terça-feira, 10, ao ser questionado em uma coletiva sobre as declarações de Bolsonaro, Torres evitou tecer comentários. Ele afirmou que “tudo que o Brasil não precisa hoje é de uma Anvisa contaminada por guerra política”. Os brasileiros concordam. Resta ficar de olho para garantir que as futuras ações do diretor-geral sejam condizentes com a sua declaração.