Por Vivian Jorge, jornalista – RS
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Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista
Editora de conteúdo – Site MJ: Beatriz Azevedo, Jornalista

Alteração de registro civil, cumprimento de medida socioeducativa e direitos relacionados à identidade de gênero

O que é um nome? Qual o seu nome? Seu nome te define? Alusivo ao Dia Internacional da Memória Transgênero, o mês de novembro, em especial dia 20, nos traz reflexão acerca de todos os mortos por transfobia no mundo. 

Ano passado, o Brasil seguiu no ranking dos países que mais assassinaram pessoas trans no mundo, conforme dados internacionais da Transrespect versus Transphobia World Wilde (TvT), publicados em um dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Entre as vítimas, mulheres trans, entre 15 e 31 anos idade. 

Conforme o gráfico abaixo, os países com maior assassinatos são Brasil, México e Estados Unidos.

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*imagem retirada do Dossiê Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020. Elaborado por: BENEVIDES, Bruna, 2021. Disponível em ANTRA: www.antrabrasil.org

A violência e o bullying às pessoas que não se reconhecem com sua identidade de gênero iniciam cedo, muitas vezes em casa, com agressões físicas e preconceito, levando o indivíduo à vulnerabilidade e marginalizados com pouca ou quase sem oportunidades socais e profissionais. Muitos buscam alterar/retificar seu registro civil, no alento de serem aceitos com a personalidade individual em que se reconhecem, com respeito e os direitos que condizem com o estado pessoal e social de cada um.

Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, que diz respeito à proteção dos direitos das pessoas transgêneras, contemplou a alteração do prenome e do gênero no Registro de Nascimento de forma administrativa e sem a necessidade de ação judicial. Logo, em 2018, o Conselho Nacional de Justiça publicou o Provimento nº 73/2018 regulamentando devida adequação.

Segundo informações da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul (ARPEN-RS), via o Alicerce de Dados da Central Nacional de Informações do Registro Civil – Plataforma ALICE (portal de transparência lançado para ser dados do Registro Civil Brasileiro), de 2019 até o momento, cerca de 5 mil pessoas alteraram seu nome e gênero no país. Somente no Rio Grande do Sul (RS), foram mais de 270 casos extrajudiciais.

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Imagem: Vivian Jorge

Mas o que é identidade de gênero? De acordo com a professora mestra em Educação e atual diretora do Departamento de Políticas LGBT, População de Rua, Imigrantes e Refugiados do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), Marina Reidel, identidade de gênero se refere ao gênero com o qual a pessoa se identifica que, pode ou não, concordar com o gênero que foi atribuído ao seu nascimento. Nesta perspectiva, hoje, existem três tipos de identidades de gênero: transgêneros (travestilidade e transexualidade), cisgêneros e não binários.  

Transgênero é o indivíduo que não se identifica com o gênero imposto ao nascimento: seja uma pessoa do gênero feminino que se reconhece como masculino ou do gênero masculino que se identifica com o feminino.

Conforme informações publicadas pela ANTRA, travestis são pessoas que vivem uma construção de gênero feminino, oposta à designação de sexo atribuída no nascimento, seguida de uma construção física, de caráter permanente, que se identifica na vida social, familiar, cultural e interpessoal, através dessa identidade. Diferentemente dos transexuais, que são pessoas que apresentam uma identidade de gênero diferente da que foi designada no nascimento.

Já os cisgêneros são os indivíduos que se identificam com o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento: homem ou mulher. Por fim, não binários são as pessoas que não se identificam a um gênero exclusivamente, ou seja, a pessoa que não se encaixa em nenhum dos dois gêneros socialmente aceitos: masculino e feminino. 

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Imagem: Vivian Jorge

Apesar de não haver dados concretos e governamentais, em 2020, a Associação Nacional publicou um dossiê que estima em cerca de 2% a população trans no Brasil.

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“Hoje me sinto realizada e confiante”, diz Evelyn Mendes. Foto: Arquivo Pessoal/Evelyn Mendes

Evelyn Mendes, de 47 anos, foi o primeiro caso extrajudicial transgênero a retificar o nome e o gênero após a decisão do STF, em 2018, no Rio Grande do Sul. Segundo a engenheira de software, na ocasião, a Defensoria Pública auxiliou com os documentos que ela deveria levar ao cartório, de forma que Evelyn não saísse com uma negativa apenas oral, mas sim com toda documentação e apoio necessário para que todo o processo ocorresse da melhor forma possível.

De acordo com o presidente da Associação das Defensoras e dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul (ADPERGS), Mário Rheingantz, – que atuou no caso de Evelyn -, há época, baseado na decisão e nas resoluções, foi realizada uma solicitação ao registro civil para que se fizesse uma alteração nos termos que foi solicitado pela pessoa, sem necessidade de ajuizamento de ação. “Essa decisão veio para mostrar que ter esse direito garantido é um momento de esperança em dias melhores. Foi um momento marcante e de satisfação com o resultado do trabalho”, relembra Rheingantz.

Entretanto, anterior a 2018, a Defensoria sempre prestou assistência em inúmeros casos com ajuizamento civil na mudança do registro civil, desde o acolhimento das pessoas com a tentativa de ações extrajudiciais e, quando necessário, o ajuizamento judicial. Para Mário, a Defensoria Pública é a instituição que, além da missão, tem a vocação para a defesa dos direitos humanos. “Ter que ajuizar uma ação para conseguir um direito, um direito que é da pessoa, é um desgaste, pois gera sofrimento e angústia. Ter esse direito garantido a partir de uma solicitação diretamente no registro civil é muito importante em termos de resguardo de direitos”. 

Além disso, recentemente, em decisão inédita, a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE/RS) que atua na assistência jurídica, integral e gratuita das pessoas e, também, na defesa dos direitos humanos, garantiu pedido de retificação de registro civil para pessoa não-binária.

O caso encaminhado ao Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos ajuizou ação de alteração do nome e gênero, passando a constar como não-binário. Conforme a Defensora Pública Dirigente do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos e Coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos, Aline Palermo Guimarães, a pessoa não havia conseguido realizar a retificação de seu registro civil de forma administrativa, necessitando de ajuizamento de uma ação. “Neste caso, a pessoa já possuía todos os documentos, que foram encaminhados por e-mail à Defensoria Pública viabilizando uma atuação bastante célere da Defensoria Pública. Apesar de não citar expressamente as pessoas não-binárias, a decisão do STF não as excluiu, motivo pelo qual se entendeu que elas estariam também contempladas na decisão”, comenta.

Não obstante, a Defensoria Pública gaúcha, no exercício de sua atribuição, prestou auxílio também a casos de adolescentes trans em medida socioeducativa, em Porto Alegre, garantindo seu direito de cumprirem medida junto à unidade correspondente à sua identidade de gênero, sem que sofram qualquer forma de descriminação.

Mas por que a atuação dos defensores e defensoras públicas é tão importante neste tema?

Identidade de gênero, discriminação e vulnerabilidade social

Historicamente, em nossa cultura ocidental, o gênero é visto como um dispositivo binário e a identidade de gênero é percebida como masculino ou feminino. Por muito tempo, pessoas que não se enquadravam ao padrão macho ou fêmea eram, inclusive, atribuídas como transtorno de identidade sexual ou transtorno de identidade de gênero.

Em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou o termo Transexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID), que era reconhecida como transtorno mental. De acordo com a Organização, a nova classificação passou a ser “incongruência de gênero”, ou seja, uma incompatibilidade entre o gênero de nascimento e o gênero experimentado pelo indivíduo.

 “A identidade de gênero é como eu me identifico com meu corpo. Como você se identifica com seu corpo enquanto sujeito, diferente da orientação sexual, que é como eu me relaciono com outras pessoas. Como você se relaciona. São dois temas diferentes que, por vezes, existe um atravessamento. Identidade de gênero é como você se identifica, já a orientação sexual é como você se relaciona com outras pessoas”, explica Marina. 

Já o ANTRA descreve a identidade de gênero como uma “profunda e sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos”, a partir dos princípios de Yogyakarta, publica a Associação.

Para a Coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos, a temática da retificação do registro civil de pessoas trans é extremamente sensível, já que pessoas trans são, muitas vezes, alvo de discriminação, situação que é agravada nos casos de inadequação do prenome e do gênero constante da documentação civil. 

Conforme Evelyn, uma das decisões que a levou à retificação do registro foi o preconceito na parte profissional.  “Por um bom tempo, não conseguia emprego, o nome também era um problema. Lembro que muitas empresas, ao lerem meu currículo, me julgavam muito qualificada para a vaga, mas ao me conhecerem isso mudava completamente. Se não fosse a ajuda de pessoas amigas eu provavelmente teria tido muito mais dificuldade, pois fiquei quase um ano desempregada”, lembra. 

Neste intuito, a ANTRA também traz em seu dossiê um parâmetro do desemprego da população trans com a chegada da pandemia, bem como estima-se que cerca de 70% da população trans não tenha tido acesso às medidas emergenciais nesta crise. 

O gráfico abaixo que se encontra no Dossiê da ANTRA mostra que 90% da população trans tem a prostituição como fonte de renda. Com um índice, mínimo, 4% da população trans feminina se encontra em empregos formais e outros 6% estão em atividades informais e subempregos. 

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*imagem retirada do Dossiê Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020. Elaborado por: BENEVIDES, Bruna, 2021. Disponível em ANTRA: www.antrabrasil.org

O documento também denota que, no caso de homens trans e pessoas transmasculinas, houve dificuldade de realizar o levantamento de dados. 

Ao contrário do que muitos pensam, não é o sexo biológico que define o gênero com o qual a pessoa se identifica, pois o gênero vai além. O direito a identidade de gênero é o direito de cada um ser reconhecido como realmente é. E é nessa atuação, de garantir os direitos da população, em especial, em casos de vulnerabilidade social, em que o indivíduo está exposto a riscos produzidos por nosso contexto-social, que a atuação da DPE é de extrema importância, pois visa o respeito ao indivíduo à sua própria imagem real. 

Reidel observa que, hoje, seu trabalho é fazer a construção de políticas macro no tema da diversidade sexual e do gênero, através de pautas de políticas LGBT e Direitos Humanos. “Junto à Defensoria da União, atuamos na discussão do provimento nacional, tivemos que discutir devido a algumas divergências com os estados, devido a cada estado criar seu próprio provimento estadual. Assim, tivemos reuniões e atividades para estreitar essa unificação desses registros de documentos. Quanto às DPEs, vejo nos estados a importância não só nesse processo de retificação, quanto a denúncias de direitos humanos que recebemos. Muitas vezes, acionamos a DPE sobre casos de violência ligados ao movimento LGBT no Rio Grande do Sul”. 

Para tanto, Aline reitera que “a Defensoria Pública possui a missão constitucional de promover os direitos humanos e tem como função institucional, segundo a sua Lei Orgânica (Lei Complementar nº 80/1994), promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico”.

Mendes, atualmente, além de se sentir realizada após a alteração de seu nome e gênero, também se sente confiante em todos os sentidos de sua vida, pois não precisa se preocupar em dizer ou provar quem é. “Ainda temos muito a melhorar, pois ainda existe desrespeito mesmo com leis e determinações oficiais. Por isso, acho essencial um órgão oficial que se prontifica a apoiar no atendimento e, principalmente, entender a causa trans, que é de suma importância para que possamos vencer a intolerância que ainda é grande na nossa sociedade”, diz.

Assim como a engenheira, B.M.V*., de 25 anos, conseguiu alterar seu nome diretamente no registro civil. “Venho de uma família de trans, porém, apenas eu decidi alterar o nome e gênero. Sofri muito preconceito, sofremos muito. Muitas pessoas, inclusive, autoridades, mesmo com a alteração, ainda nos tratam como eles”.  

Se um adulto trans convive com inúmeros desafios e preconceitos, imaginemos uma criança que não se reconhece no próprio corpo. Uma criança ou adolescente que começa a descobrir dificuldades emocionais devido aos padrões estabelecidos pela sociedade. 

“Me sinto muito desconfortável quando tenho que apresentar meu documento”, diz Bruno Kovalczyk. Foto: Arquivo Pessoal/Bruno Kovalczyk

Bruno Kovalczyk, de 33 anos, conta que desde criança sempre se vestiu com roupas masculinas e, aos 11 anos de idade, jogando futebol na rua, um amigo disse porque não mudava seu nome para Bruno. “Nesse momento, mesmo novo, fiz uma reflexão que realmente eu não gostava de ser menina, não gostava de ser chamada de Bruna”.

Apesar de Bruno ter o apoio de sua mãe, foi agora na fase adulta que buscou informações sobre a retificação do registro civil. “Eu decidi mudar a documentação e retificar o nome e gênero porque me sinto muito desconfortável quando tenho que apresentar meu documento. As pessoas brigam comigo dizendo que eu não sou a Bruna, principalmente, no meu trabalho como motorista de aplicativo. Muitas vezes, chego até o passageiro e ele se nega a entrar no veículo, pois dizem que o motorista está errado. Então, mostro a minha habilitação provando que sou a Bruna e ainda digo que, infelizmente, quando eu nasci, fui registrada assim. Tenho que dar toda uma explicação, isso me dói! Passo por isso umas 20 vezes por dia. É constrangedor! A Uber já me bloqueou várias vezes, pois os passageiros ainda reportam dizendo que o motorista estava errado”, conta.

Neste intuito, Bruno está buscando junto à Defensoria gaúcha a retificação de seu nome, pois não tem condições financeiras de custear a documentação exigida nos cartórios. “Algum tempo atrás, eu fui pesquisar o que precisava para retificar o nome, porém, não tenho condições. Hoje, meu trabalho sustenta as despesas do tratamento oncológico da minha filha”, finaliza. 

No país, existem 7.656 cartórios de Registro Civil em funcionamento, de acordo com o portal da transparência do Registro Civil.  Na página, é possível acessar os cartórios de sua região por estado, município, nome do cartório, endereço e telefone. 

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*imagem retirada do site de Registro Civil, identificando os Estados, locais, endereços e telefones. Disponível em https://transparencia.registrocivil.org.br/cartorios

O Rio Grande do Sul contempla 420 cartórios, sendo 10 em Porto Alegre. Já os valores totais da documentação variam de estado para estado. No Estado gaúcho, algumas certidões são gratuitas, outros emolumentos necessitam pagamento, que podem chegar a R$ 200. Em outros estados, os valores variam de R$ 200 a R$ 500. 

É possível verificar os valores na página da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (ANOREG/BR).

Atuação da Defensoria na retificação do nome e gênero e na preservação da vida

Anos atrás, o processo burocrático para alteração de nome e gênero era dolorosamente desgastante e cansativo. Para que a pessoa trans pudesse ter o nome que ela escolheu em seus documentos de identificação, por exemplo, era necessário acompanhamento psicológico, ajuizamento judicial, efeitos hormonais e, principalmente, cirurgia de redesignação sexual, para que ela pudesse alterar o gênero nos documentos, também.  

Nessa realidade, junto aos problemas sociais e, por vezes, econômicos, os casos de suicídio entre a população trans eram notáveis, porém, nem sempre noticiosos. Com a chegada das mídias sociais, essa parcela da população, que nem sempre tinha voz, pode se expressar abertamente sobre o tema. De acordo com o dossiê elaborado pela ANTRA, hoje, os casos de suicídio têm sido relatados com maior frequência nas redes sociais, principalmente, entre pessoas negras e em situação de vulnerabilidade. 

A imagem abaixo mostra o acompanhamento do número de suicídios de pessoas trans no Brasil desde 2016.

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*imagem retirada do Dossiê Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2020. Elaborado por: Sayonara Nogueira/ObservatorioTrans. Disponível em ANTRA: www.antrabrasil.org

De acordo com as informações do documento elaborado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais, no ano passado, por exemplo, foram catalogados 23 casos de suicídio, sendo sete (30%) casos de homens trans/transmaculinos e 16 (70%) travestis/mulheres trans. 

Na Defensoria gaúcha, antes de 2018, foram inúmeros os casos que, em sua maioria, necessitaram de ações judiciais. No entanto, após regulamentação de decisão do STF, cerca de 300 pessoas conseguiram retificar seu nome e gênero extrajudicialmente no Rio Grande do Sul, conforme registros da Plataforma Alice. Até outubro deste ano, por exemplo, foram mais de 100.

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*imagem retirada do site da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Foto: Nicole Carvalho/Divulgação: Ascom DPERS

Conforme a Defensora Pública Dirigente do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos e Coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos, Aline Palermo Guimarães, a Defensoria Pública atua tanto de forma extrajudicial, auxiliando os  assistidos a obterem a documentação necessária para a retificação do registro civil na via administrativa, como de forma judicial, ajuizando ações nos casos em que não é possível a retificação de forma administrativa e/ou gratuita, como para retificar o registro de adolescentes trans, de pessoas não binárias e de algumas pessoas registradas em outros estados.

Com a decisão do STF, Aline salienta que a referida decisão reconheceu o direito de retificação do registro civil de modo administrativo e assentou a posição a respeito da desnecessidade de comprovação de cirurgia de redesignação de sexo ou apresentação de laudos médicos. “O marco de 2018 não se refere à possibilidade de realizar a retificação, mas à importante possibilidade de retificar sem a necessidade de ajuizamento de uma ação, o que torna todo o processo de retificação mais célere e menos burocrático”, pontua Palermo. 

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Suelen na recepção dos calouros da Universidade de Santa Cruz do Sul. Foto: Arquivo Pessoal/Suelen Moraes

Suelen Moraes, de 29 anos, retificou seu nome e gênero em 2016, de maneira gratuita em parceria com a Defensoria Pública e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), em Cachoeira do Sul. Conforme Suelen, na época, o processo era extenso e precisou provar ao judiciário que era, realmente, a Suelen, juntando diversas provas para que fossem anexadas ao processo. “Lembro que a Defensoria Pública de Porto Alegre veio capacitar os profissionais da cidade de Cachoeira do Sul, pois eles não sabiam como proceder nessa situação. Estive em reunião com o Ministério Público para solicitar parecer favorável à questão e explicar os motivos da solicitação”, informa.

Moraes afirma que sempre se sentiu diferente, mas, devido à falta de informação, foi se reconhecer enquanto Suelen em 2004, quando se inseriu no meio LGBTQIA+. Apesar da família ter uma certa resistência, com o passar do tempo, aceitaram e respeitaram. “Acredito que, por causa dos estigmas construídos socialmente ao longo do tempo, todas as famílias tenham uma certa dificuldade em aceitar, no entanto, ao buscar a informação, algumas possam acolher e mudar seus paradigmas”.

Hoje, formada em serviço social e presidente do DCE da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), ela acredita que as pessoas trans têm seus direitos violados e são submetidas à violência constantemente, por isso, o apoio familiar e jurídico no suporte dos de direitos e na saúde mental é de extrema importância.  “Me recordo que os defensores foram extremamente solícitos e, em três meses, eu estava com a sentença em julgado com a aprovação para a retificação de nome e gênero. Para mim, a Defensoria Pública tem uma função social extremamente importante. Garantir o acesso das pessoas em situação de vulnerabilidades aos seus direitos é algo louvável, não me refiro apenas a essa temática, mas como um todo”, registra.

Ademais, a defensora Aline Guimarães Palermo avalia que poder auxiliar na retificação da documentação civil de tais pessoas é muito gratificante, pois garante que não sofram mais constrangimentos no seu dia a dia. 

Neste momento de pandemia, a dirigente avalia que não notou um aumento na procura. Isso porque, geralmente, quando a mídia divulga alguma atuação da Defensoria referente ao tema, acaba ocorrendo um aumento natural na procura, já que muitas pessoas ainda desconhecem os seus direitos e/ou o serviço da Defensoria Pública, que presta auxílio nessa temática.

Como e quando procurar ajuda para a retificação de registro civil?

No Estado do Rio Grande do Sul, a retificação do registro civil de pessoas trans foi regulamentada pela Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul nos seus Provimentos nº 21/2018 e nº 30/2018. Assim, toda pessoa transgênero, a partir dos 18 anos, pode ir ao cartório solicitar a retificação, mediante documentação exigida. 

Inicialmente, a Coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos explica que a pessoa deve juntar os documentos listados no Provimento 73/2018 do CNJ e levar ao cartório de registro civil de pessoas naturais, onde preencherá um formulário, de forma gratuita. Já as certidões de tabelionatos de protesto não têm gratuidade, mas a Defensoria Pública pode auxiliar pessoas hipossuficientes a oberem tais certidões sem custo. “No caso das retificações das pessoas trans, além da hipossuficiência financeira, considera-se também a vulnerabilidade organizacional que tem relação com a defesa de grupos sociais vulneráveis que merecem proteção especial do Estado”, avalia Aline.

Lembra-se, ainda, que quando a pessoa trans é menor de idade, há necessidade de aprovação dos responsáveis legais (sejam eles os pais ou outras pessoas). “O processo se dá da mesma forma, com a reunião dos documentos e o ajuizamento”, diz Aline. 

Em 2020, a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, por meio do Centro de Referência em Direitos Humanos e o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da DPE/RS, elaborou a respeito da Identidade Trans, uma cartilha com inúmeros esclarecimentos e orientações que objetivam facilitar o acesso de pessoas trans a direitos humanos fundamentais relativos à sua identidade de gênero. Nessa perspectiva, o documento traz informações sobre nome social, adequação de prenome e gênero no Registro Civil, processo transexualizador e discriminação caracterizada como transfobia.

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*imagem retirada do site da DPE/RS. Cartilha da Identidade Trans elaborada pelo CRDH da Defensoria Pública do Estado do RS

Marina Reidel avalia que é preciso ampliar essa temática para que as pessoas não sofram tanto. “Quero ressaltar e enaltecer o papel da DPE, assim como a Defensoria da União, nestes casos emblemáticos, em que muitas vezes a gestão não consegue resolver, nem o movimento. Quando eu retifiquei meu nome, foi com o apoio da DPE/RS, por isso a importância desse órgão. Para nós, é fundamental que haja esse papel, levando essa discussão para fora, na garantia de direito para toda população que necessita destes serviços”.

No mais e em casos de dúvidas, o atendimento no Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH) da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, fica na Rua Siqueira Campos, 731, Centro. Ou pelo Disque Acolhimento do CRDH (0800-644-5556). 

Dados extras:

Hoje, existem cerca de 3 mil comarcas em todo território nacional, conforme o mapa das Defensorias Públicas Estaduais e Distritais no Brasil, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em parceria com a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP). No Rio Grande do Sul, são 149 regionais, 464 Defensorias e 441 Defensores Públicos. Somente nos últimos 12 meses, a DPE/RS teve mais de 1,6 milhões de atendimentos gerais.

CASEF: Defensoria garante direito de transferência de adolescente transexual

Apesar de algumas crianças e adolescentes transexuais terem o apoio e suporte de um adulto (pais ou responsáveis), principalmente, no desenvolvimento físico e psíquico, tal como fundamenta o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), outras, no entanto, não dispõem da mesma sorte e acabam sendo criados à margem da criminalidade.

Contudo, além de toda a negligência e o preconceito civil e familiar, o adolescente transexual tem de enfrentar a exclusão desde cedo, inclusive, a circunstâncias de vulnerabilidade social, como: abandono familiar, prostituição, evasão escolar, drogas, exploração sexual etc.

A Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul atuou em diferentes casos de adolescentes transexuais encaminhados para cumprimento da medida socioeducativa na unidade masculina da Fundação de Atendimento Socioeducativo do RS (FASE/RS), por exemplo. 

Defensora Pública há 14 anos, Paula Simões Dutra de Oliveira, atua exercendo a atribuição na execução das medidas socioeducativas, ou seja, na garantia de direitos dos jovens em cumprimento de medida junto às unidades de internação.

No exercício específico, de acordo com Paula, a atuação da Defensoria Pública no que se refere aos transexuais visa assegurar que cumpram medida junto à unidade correspondente à sua identidade de gênero, sem que sofram qualquer forma de descriminação. 

Conforme Marjori Fontoura, psicóloga da FASE, a partir de 2016, em trabalho conjunto com a Defensoria, foi possível transferir adolescentes trans para o Centro de Atendimento Socioeducativo Feminino (CASEF). “Há época, um dos primeiros casos que atuei foi da adolescente V.*, de 13 anos, que passou três vezes no Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE). Quando o adolescente chega à FASE por um mandato judicial grave ou lesivo, é feito um acolhimento, uma conversa para saber sobre a vida, históricos, família, atos etc. Quando um adolescente trans chega, demanda um outro tipo de olhar. Quando V. chegou, teve que tirar as roupas femininas, esmalte das unhas, mega hair e usar roupas masculinas. Algumas unidades cortam o cabelo de todos os internos”, pontua.

Deisi Sartori, Defensora Pública da Criança e do Adolescente, em Novo Hamburgo, atuou no caso de V., que ingressou no CASE por ato infracional. Por viver em casas de acolhimento, com vivencia de rua, sem família e muito sofrida porque não aceitavam a condição dela, a faziam usar roupas de menino e a tratavam como menino. “No CASE, V. ficava isolada do grupo masculino para não sofrer nenhum tipo de violência, enquanto buscávamos a transferência para o CASEF, em Porto Alegre. Há época, foi sofrido para ela, sua internação terminou, sem que conseguíssemos que ela fosse para a unidade feminina. Conseguimos fazer tratativas, a Marina Reidel, inclusive, foi até esse abrigo dar capacitação aos funcionários para que soubessem como lidar com a V. Apesar dela viver em um local em que sofria uma violência institucional, pelo fato de estar em uma unidade masculina e isolada, foi onde ela disse que encontrou o respeito à sua identidade de gênero. Isso, também, pela excelente equipe técnica e socioeducativa que tem o CASE em Novo Hamburgo”. 

Outro caso que a Defensora Paula elucida é o de B.*, de 17 anos. “Esse caso específico chegou ao nosso conhecimento do tratamento ofensivo à identidade de gênero, pois a jovem fora obrigada a dormir em um abrigo junto com os meninos, embora se reconhecesse como do gênero feminino – e fora tratada pelo nome de registro”, conta.

Segundo Dutra, B. chegou ao conhecimento da DPE a partir de relatos de agentes socioeducadores da FASE, que acolheram a jovem em seu ingresso. De acordo com a defensora, ela foi submetida a humilhações diante da circunstância de ser transexual, pois viviam em um abrigo municipal. “A própria adolescente escreveu uma carta direcionada à Defensoria, relatando as violações que sofrera. A partir de então, a situação foi reportada ao Juízo da execução de medidas e adotadas uma série de providências para apuração das devidas responsabilidades, bem como informado no processo de execução de medida, para que o abrigo se manifestasse a respeito do caso e adotasse as providências para que tal situação não se repetisse”.

Marjori descreve que, depois da passagem de V., muitas conquistas ocorreram, todas com respaldo de garantir o direito a exercer o gênero do individuo. Uma delas, por exemplo, dentro dos planos de atendimento coletivo da unidade, é a de não cortar os cabelos das adolescentes trans. 

No que tange à atuação da defensoria e do judiciário, Fontoura observa que o mais importante para o sucesso dos casos foi contar com profissionais sensíveis e éticos, que enxergavam o outro como um profissional técnico colega, respeitando o parecer. 

Recentemente, E.P.C., de 19 anos, passou pelo CASEF e diz que um dos lugares em que foi mais respeitada foi no Centro Socioeducativo. “Lá a escola era diferente da rua. Me tratavam bem. Fiquei um ano e seis meses por coisas que eu não queria fazer, mas devido ao preconceito que sofri. Aprendi muito no CASEF, eu fui respeitada lá. Pela primeira vez, também, tive um trabalho honesto, em um projeto de lavanderia que amava fazer. O pessoal foi muito solícito, me acolheram como sou”, diz.

E.P.C. também quer retificar seu nome. “Enquanto estive lá, a Defensoria me auxiliou nos meus direitos e deveres, sou muito grata. Agora quero alterar meu nome e gênero”.

Neste aspecto, Marjori frisa que, além do atendimento que existe com todos os adolescentes, na Fundação é preciso se despir de todos os preconceitos, mostrando para os adolescentes que ele é visto. “Tratando-o como ele quiser e será respeitado enquanto ser humano, independente do gênero. Estamos ali para ajudar. A V. também falava que foi respeitada como mulher no CASE, diferente dos abrigos e da rua que viveu. É claro que lá não é as mil maravilhas, mesmo quando ela era desrespeitada na FASE, tínhamos pessoas que olhavam ela, conversavam com todos, orientava e pedia respeito. A passagem de V. pela FASE abriu uma série de discussões e temáticas dessa população que, quando a família não aceita por ser trans, tem que sair de casa e passa a viver essas vulnerabilidades”. 

Segundo Paula, apesar de alguns contarem com a família, sua maioria advém de acolhimento institucional pela circunstância de não contar com responsável legal. Entretanto, todos recebem a orientação acerca da possibilidade de alteração pela via administrativa de seu nome e gênero junto ao Registro Civil mediante a autodeclaração. “Na unidade feminina, já tive contato com três jovens transexuais, sendo duas do gênero feminino e um do gênero masculino. Em todos eles, o objetivo foi sempre de garantia de direitos, em especial, de respeito pela sua identidade de gênero. Assim, considero fundamental o trabalho da DPE, por se tratar de instrumento para efetivação dos direitos fundamentais da população. O sentimento sempre é de plena realização, uma vez que se trata da concretude de nossa missão institucional”.

 

*Nomes não divulgados para proteger a identidade dos entrevistados