Por: Haline Farias, jornalista
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Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

Racismo ambiental: populações massacradas pelo racismo e capitalismo ocupam as áreas de maior fragilidade ambiental no Brasil 

O mundo vem sofrendo há bastante tempo com uma crise socioambiental rodeada de uma emergência climática que tem ficado cada vez mais latente, o que torna ainda mais imprescindível discutir o tema e buscar alternativas de minimizar as causas e consequências. 

Os impactos ambientais nas cidades não são só resultados de eventualidades climáticas, mas também socialmente produzidos e ocorrem de forma territorialmente desproporcionais, afetando de forma desigual a população. As populações mais prejudicadas são as mais vulveráveis, definidas por padrões de renda, nível de escolaridade, raça/cor da pele, gênero e local de moradia. Esse contexto é uma expressão escancarada de racismo ambiental e injustiça socioambiental que acontece no Brasil e em todo o mundo .

Racismo ambiental, ou racismo meio ambiental, é um termo criado em 1981 pelo líder afro-americano de direitos civis Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr., que surgiu em um cenário de manifestações do movimento negro contra injustiças ambientais nos Estados Unidos. 

Benjamin utilizou a expressão para evidenciar que os depósitos de lixo e resíduos tóxicos eram feitos em áreas habitadas por maioria de população negra norte americana. Em decorrência, a expressão passou a ser utilizada para apontar a desigualdade nas consequências dos problemas ambientais, que atingem aqueles agrupamentos populacionais mais vulnerabilizados e que em sua maioria constitui-se de pessoas negras, como é o caso do Brasil, ou dos Estados Unidos. Esse racismo fica explícito quando os efeitos das degradações ambientais concentram-se nos bairros e territórios da periferia, que abrigam famílias pobres e vulnerabilizadas, com uma maior concentração de pessoas negras, indígenas e quilombolas. 

O professor de Gestão Ambiental da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP), Marcos Bernardino de Carvalho, explica que o racismo ambiental ocorre pelos mesmos motivos que produzem o racismo estrutural, cujas raízes estão na história de colonização, escravização e exclusão da população negra ou indígena. 

“As relações e os problemas ambientais são socialmente e culturalmente produzidos. A parcela empobrecida e vulnerabilizada é a que mais sofre as consequências dos problemas ambientais produzidos. Como essa parcela, pelas razões históricas aludidas, é, em sua maioria, constituída de pessoas negras, então, esta é a parcela mais vitimada por esses problemas. E isso caracteriza, portanto, a existência de uma estrutura socioambiental racista.”

Não é mero acaso que os locais com saneamento básico e boa infraestrutura são dominados por pessoas brancas com boa posição socioeconômica. A colonização tradicional exerceu poder de controle sobre territórios que já eram ocupados, retirando à força direitos, recursos e propriedades. O racismo ambiental é resultado desse sistema de colonização e tem sua continuidade através do neocolonialismo, controle colonial exercido por outros meios, não necessariamente colônias, como grandes empresas que expulsam populações originárias de suas terras e degradam o ambiente. Injustiça ambiental, territórios nocivos, exclusão social e destruição do meio ambiente são produtos desse processo desumano, que coloca populações etnicamente e socioeconomicamente marginalizadas para viverem em condições insalubres e com risco de vida.

São as populações massacradas pelo sistema escravocrata, capitalista e (neo)colonialista que ocupam as áreas de maior fragilidade ambiental e, consequentemente, são afetadas diretamente pelo ambiente e o que ele sofre. Airton Omena, arquiteto e urbanista, pós graduado em design comercial e branding, que há alguns anos tem voltado seus estudos e pesquisas para a ecologia, a relação do meio ambiente e o homem/espaço que estão intrinsecamente ligados à arquétipos/cultura, descolonização e patriarcado, comenta que esses locais são área de morros e encostas, restingas, margens de corpos d’água, proximidade a áreas de fontes poluidoras com atividades industriais e mineração. 

Os locais de pouquíssima infraestrutura e serviços ambientais básicos nas cidades brasileiras abrigam famílias de baixa renda, das quais grande parte é formada por pessoas pretas. Basta olhar atentamente as cidades e as notícias: enchentes, deslizamentos de terra, queimadas, rompimentos de barragens e desmatamento, geralmente, têm como cenário áreas que têm grande parte da população composta por negros, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros grupos vulnerabilizados. 

O professor Marcos comenta que o processo de expulsão, de invasão de territórios, da mineração do garimpo e da situação amazônica ilustram muito bem o alcance do racismo ambiental no Brasil em relação aos indígenas, e o mesmo vale para as populações quilombolas e tradicionais desses mesmos espaços

O Instituto Pólis realizou um estudo nas cidades de Belém, Recife e São Paulo, onde mapeou áreas de risco nas três capitais, mais propensas a deslizamento de terra e/ou inundações, e cruzou esses dados com o perfil socioeconômico das populações que ocupam essas áreas.

Em Belém, foram mapeadas 125 áreas de risco, 93 sinalizadas com risco “muito alto” de inundação ou erosão e 32 como risco “alto”. A população negra soma 75% do total nesses locais de risco e a renda média das famílias  é de R$1,7 mil, 32% menor que a média geral da cidade, de R$2,5 mil.

Foram mapeados 677 territórios com risco geológico no Recife. As áreas que mais são suscetíveis de deslizamento, por exemplo, localizam-se nos locais de menor renda dos morros da zona norte da cidade, como Caxanguá e Ibura. 68% da população dessas regiões é negra; e 26,8% dos domicílios são chefiados por mulheres que ganham até um salário mínimo.

Barreira cedeu e matou dezenas de pessoas em Jardim Monte Verde, entre o Recife e Jaboatã, este ano. Imagem: Reprodução/ Pedro Alves/g1

As áreas com risco de inundação se concentram nos locais de mangue em bairros como Jardim São Paulo, Areias e Afogados, e 59% da população é negra. Na cidade de São Paulo, as regiões com perigo de deslizamento ou afundamento do solo chegam a 1.314, e também se concentram predominantemente em áreas de menor concentração de renda e maior presença de população negra. 

As famílias que vivem nessas localidades de risco têm renda domiciliar média de R$1,6 mil, 54% menor que a média municipal de R$3,5 mil. Nos territórios com risco de deslizamento, a proporção de população negra é de 55%, contra 37% na cidade.

As pessoas não vivem nesses locais por escolha, são vítimas do sistema colonialista, capitalista, racista e patriarcal que domina o mundo. Airton explica que essas populações têm historicamente menor acesso à educação, cultura, foram destituídas de poder e de possibilidades de ascensão econômica. “Ficou para elas como possibilidade ocupar e habitar as áreas que não são interessantes para o mercado imobiliário explorar, então as áreas de fragilidade ambiental ou que apresentam algum risco à saúde pela proximidade foram as possibilidades viáveis.”

Esses indivíduos foram direcionados para essas áreas pelo processo de especulação imobiliária, pela proibição de acesso à terra e pela injustiça social que comanda o padrão de acumulação. Marcos acrescenta que a forma de inclusão perversa com que essas pessoas participam das relações sociais também é uma das razões. “A sociedade atual caracteriza-se pela urbanização de todos os seus espaços. Isso significa especialização e segregação territorial, com divisão técnica e territorial do trabalho, e também divisão racial do trabalho.”

As consequências do racismo ambiental é sentida pelo meio ambiente e pelas pessoas que ocupam e, de acordo com Marcos, convergem com as  mesmas do racismo estrutural: 

–  Exclusão da maioria da população e intensificação da vulnerabilidade a que estão expostas; 

– Desagregação e injustiça social;  

– Falta de saneamento e atendimento de saúde;

– Precarização das condições de moradia e trabalho, onde essas populações são despejadas pelo sistema produtivo e pela consequente segregação e especialização urbana, em áreas de risco, ou em zonas periféricas das cidades.

São incontáveis as vidas ameaçadas e acabadas, com tantos futuros destruídos sem ao menos a possibilidade de melhora. Desastres ambientais seguidos de outros, milhares de pessoas soterradas, afogadas e mortas, quase tudo contabilizado e tudo normalizado. Airton lamenta não enxergar outro horizonte senão a intensificação do que se convém chamar de “desastre natural” e o aumento das mortes, caso nada seja feito pelos governos, autoridades ambientais e a sociedade civil. 

Marcos aponta algumas alternativas (tentativas) para minimizar o terror vivido pelas populações que sofrem com injustiça ambiental: prática do ‘ecologismo dos pobres’ (termo cunhado por Joan Alier) e fortalecimento dos movimentos de resistência e denúncia do racismo ambiental (lutando pelo estabelecimento de condições dignas de moradia, trabalho etc), lutando por justiça social (ou ambiental), combatendo o racismo estrutural, mudando as relações sociais e construindo outro tipo de sociedade. 

Também é importante e necessária a discriminação da aplicação das leis em territórios racializados e, principalmente, a presença e participação da população negra, quilombola e indígena na política, na elaboração das políticas e na lideranças de movimentos ecológicos. É preciso direcionar e focar nosso olhar e ações para as populações mais vulnerabilizadas que sofrem com o racismo ambiental, buscando alternativas de planejamentos urbanos mais justos, que não sejam  excludentes e racialmente definidos. Todas as pessoas merecem e precisam viver em cidades democráticas, saudáveis e dignas.