Uma carta para Janja, uma cartada contra o machismo
Por: Marta Dueñas, jornalista
E-mail: marta.duenas@mulheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
A cada opressão, mãos ocupação. O único movimento feminino que não incomoda os homens é o do quadril. É preciso dançar e se movimentar saindo do lugar que nos destinaram no lar
Janja, minha coluna desta vez é uma carta aberta a você. Considerando que cartas e palavras foram fortes aliadas na sua vigília junto ao nosso futuro presidente, ousei ir pelo mesmo caminho. As palavras são as pontes que constituem relações. Nos formam, desenvolvem afetos, dão forma às relações. Palavras nos constituem. Você merece que palavras sumam e não diminuam pois, neste seu crescimento, todas seremos conduzidas a esse momento, como você bem diz, de ressignificar a figura da primeira dama do país, dando assim, novos espaços a mulheres e meninas na busca de um caminho para o futuro.
Escrevo essa carta como se estivesse escrevendo a mim mesma, pela criança que fui, estudante que fui, atleta que fui. Uma menina que teve fama de nervosa quando na verdade era participativa, entusiasta. Uma jovem cujas palavras também pareciam cortar a pele quando se referiam ao jeito de ser. Quantas como eu cresceram entendendo que o corpo não nos pertence, ele é dos olhos dos outros, das bocas dos outros e, tantas vezes, pertence inteiramente ao outro sem que este seja nosso desejo.
Quando escuto uma mulher dizer que você, Janja, poderá ser um incômodo pois está onde não foi chamada, sinto como se fosse comigo. Porque todas nós já nos sentimos fora do lugar, já que ainda hoje tentam definir até onde nós mulheres podemos chegar.
Você, futura primeira dama do Brasil, sabe como tantas de nós que o nosso corpo ainda é visto como um objeto. Não só o corpo, mas principalmente aonde ele nos leva, o espaço e a posição que ele ocupa. Mulheres líderes são chatas, mulheres que crescem são ambiciosas, mulheres livres são vagabundas e, agora, com dito a seu respeito, um problema. Mulheres são problemas para a sociedade patriarcal, afinal de contas, queremos estar em qualquer lugar e isso não pode nos pertencer, não numa estrutura projetada por homens, para homens.
Quando nós crescemos, a palavra avança contra nós. A primeira tentativa de parar uma mulher é pela via da palavra, conduzindo nosso movimento para trás, segurando a potência de tantas nós. E mais uma vez, ferindo uma, atingem todas.
O comportamento da imprensa, de políticos e da sociedade é ainda muito vil com mulheres, especialmente as que se destacam em atividades de liderança. A presença de mulheres na política, nas corporações, é constantemente tolhida, criticada e abafada; há uma legião, onde se incluem mulheres, disposta a mostrar como é perturbadora essa conquista. Nada mais colonial e patriarcal. Domesticar as mulheres sempre foi um requisito do sistema.
A ex-presidente Dilma Roussef, primeira mulher eleita presidenta no Brasil, recebeu inúmeras críticas que não tinham relação com suas habilidades ou competências de gestão. Falaram de suas roupas e do seu jeito de andar. Por isso, Janja, acredito que falarão das suas também. Sejam elas simples ou sofisticadas, as garras do patriarcado vão tentar estraçalhar teu guarda-roupa como se fosse a tua pele. Seja firme e doce. Ou apenas seja possível, estaremos sendo possíveis com você. A Dilma recebeu capa de revista em que foi chamada de explosiva, desequilibrada. Sem fatos, sem dados, apenas percepções machistas de uma mulher que liderou o país com firmeza e dignidade. Talvez, logo mais adiante, ataquem e deformem características tuas procurando descrever uma personalidade perversa, na exata medida deles.
Janja, outras de nós foram alvejadas como Michelle Bachelet, também uma mulher presidenta. No Chile, país que governou, as revistas comentaram que ela teria repetido uma roupa em duas ocasiões. Se ela tivesse feito gastos em moda como o atual presidente do país fez em carne, leite condensado e bebida alcoólica, teria sido mais duramente criticada ainda. Tudo indica que a ordem é que estejamos sempre erradas. E é essa ordem que viestes mudar, e é para essa ordem que demos um basta ao eleger teu marido.
Eu poderia ter escrito minha carta à jornalista Eliane Cantanhêde, que foi quem trouxe esse tema vergonhoso para o centro da mesa novamente. Mas não foi ela quem inaugurou essa insensatez. E ela é mulher, parte algoz, parte vítima. O machismo está na coluna dorsal brasileira e desde o golpe imposto a Dilma e toda violência dessa trama, não conseguimos avançar muito na busca da igualdade e nas ações e políticas que garantam um futuro mais democrático e humano a mulheres e meninas. Hoje, quando lembro da Bela, Recatada e do Lar, um título dado a Marcela Temer, ex-primeira dama, percebo uma agenda de morte à liberdade feminina e às mulheres que foi reinstaurada naquele momento e que vem sendo desenvolvida com vigor no atual governo.
Cantanhêde falou coisas extremamente grosseiras a você, considerando que sua posição será um futuro problema. Apesar de todo equivoco da jornalista, sabemos que uma mulher pensante e atuante, nesse Brasil que recém se despede de Bolsonaro, realmente vai problematizar. As mulheres incomodam mesmo quando são submissas e subservientes. Imagina quando são vigorosas como você! Mulheres que se movimentam, sofrem, mulheres que se encolhe também. Isso, o crescimento do feminicídio e abusos já provou.
O encastelamento das mulheres é dessas violências normalizadas, vide o futuro ex-presidente no seu discurso da festa pátria, no 7 de setembro, ao convocar os homens a buscarem uma princesa para chamar de sua. Sabe Janja, o mais interessante naquele discurso, em minha opinião, foi ele puxar um cântico a seu respeito nominando-se “imbrochável”. Tão previsível. Toda a fragilidade do castelo está aí. Por isso, nos domesticam, incansavelmente.
Então, quando a jornalista continuou com suas falas, não pude deixar de pinçar um trecho que me levou direto a esse ponto: o lugar que simbolicamente nos desejam. O lugar do desejo, o lugar de onde não deveríamos ter saído: a casa. E pior: o quarto. Cantenhêde, preocupada com os rumos do país, acha que você vai incomodar, por isso trouxe exemplo de outras primeiras damas criticando seus comportamentos, exceto de Ruth Cardoso, a quem elogiou por sua formação e “brilho próprio”. E mesmo para elogiar, violentou, dizendo que ela “tinha poder, a quatro chaves, dentro do quarto do casal”. Bingo: chegamos no lugar onde nos querem, Janja. Em casa. Recatadas. No quarto. Nos dão poder no quarto. Ali, onde tramamos com os “imbrocháveis” como se fosse nosso único talento, nosso lugar de fala e de expressão.
Faz tempo que imprensa, comunicadores e post em redes sociais mastigam e vomitam infâmias a respeito de mulheres, meninas, representatividade e papéis. Por isso, ressignificar o conteúdo sobre uma primeira dama, como você diz que pretende fazer, é um processo de ressignificar todas mulheres no imaginário médio do brasileiro e das brasileiras. É como poder abrir espaço para mim, uma mulher separada, que empreende sozinha e que amou a blusa que você usou para sua entrevista ao programa do Fantástico.
Janja, eu só tenho a agradecer a você. Por sua habilidade em combinar leveza com política. Eu agradeço por você ter levado amor onde havia injustiça. Agradeço você ter escrito cartinhas ao Lula e ter aberto espaço para que tantas de nós pudéssemos escrever. Também agradeço por você ter adotado uma cachorrinha que fazia companhia na vigília. Tantas ações que me fazem sentido. Muito para te admirar. Se você vai incomodar, eu também vou. Se a tua brilhante atuação vai trazer problemas, vou problematizar com você! Porque o caminho é esse. Ocupar espaços, estar em movimento, assumir papéis, assumir amores, existir. Não necessariamente belas, possivelmente nunca recatadas, mas não obrigatoriamente guerreiras.
Você, Janja, nos mostra que chegou o momento das mulheres possíveis. Tão potentes quanto reais. Ser o possível como mulher podendo escolher, inclusive, ser do lar. Taí um belo recomeço para nós no Brasil. Quando você subir a rampa do Palácio do Planalto, seremos milhares contigo e eu sei que você elevará todas nós.