Por Regina Fiore, Jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista

Falar sobre nosso lado não-tão-nobre-assim diminui nossa vontade de separar o mundo entre o bem e o mal. Spoiler: este teste não tem a ver com matemática

Ouvindo o podcast “É Nóia Minha?”, da Camila Fremder, enquanto eu lavava a louça (episódio de 27 de outubro – A Grama do Casal Vizinho é Mais Verde?). Os convidados passaram a falar sobre a inveja, este sentimento tão pouco nobre que causa ojeriza em quem sente, em quem provoca, em quem conta a história de quem sente ou quem provoca. Ser chamado de invejoso ou invejosa bate em qualquer pessoa de uma forma agressiva, como um soco no estômago. Como eu sempre digo (e a Camila Fremder também já disse): “Bateu, doeu? Pega, que é teu”. 

Eu venho de uma família meio católica, meio espírita, meio umbandista, meio atéia, meio pagã. Minha avó rezava novena na casa das outras senhoras do bairro, com muito bolo de cenoura, bolinho de chuva e refrigerante à disposição, mas também fazia simpatia pra não chover no dia que íamos para a praia e defumava a casa com sálvia e arruda de vez em quando. Minha mãe fazia mesa branca em casa, todo domingo, também não me deixava usar preto na sexta-feira e meu avô me levava, junto com toda a família, para Aparecida do Norte para ver a missa e “passar na santa”, sem falhar nenhum ano. 

Entendo bem o quanto, na maioria dos dogmas religiosos, ou pelo menos na maioria dos dogmas religiosos ocidentais com base judaico-cristã, a inveja ultrapassa o patamar de sentimento ruim e alcança o nível de característica de alguém essencialmente ruim. Aprendemos que é totalmente errado sentir inveja, mas que, em algum lugar, é sinal de sucesso ser alvo da inveja de alguém – contradições sobre as quais também precisamos falar. Somos ensinados até a nos proteger contra a inveja alheia – pimenteira, olho grego, sal-grosso, espada-de-são-jorge, o clássico “só vai dar certo se não contar para ninguém”.

Claro que, dentro do espectro de todas as emoções que somos capazes de sentir, a inveja não é, nem de longe, a melhor delas, mas é tão humana quanto qualquer outra emoção. De acordo com a psicanalista Melanie Klein (1882-1960), que dedicou sua vida aos estudos da psique infantil, o bebê é naturalmente invejoso; sente inveja da mãe porque ela é dona da sua única e infinita fonte de prazer e nutrição: o seio. A inveja leva o bebê a gritar, espernear, apertar, bater, puxar, na ânsia de tentar machucar a mãe, por inveja. Mas logo vem o antídoto: a gratidão pela mãe atender seus desejos pelo prazer e pela nutrição, oferecendo-lhe o peito. 

A inveja é a mais primária e mais radical manifestação de um impulso destrutivo, que leva o invejoso a querer aniquilar o que ele não tem. É também insaciável – sendo que, se o invejoso tivesse para si o objeto de sua inveja, isso não seria o bastante para satisfazê-lo. A gratidão funciona como neutralizador da inveja – é ela que nos deixa satisfeitos em poder desfrutar daquilo que não temos, graças ao que outra pessoa tem. Para uma pessoa com desenvolvimento psíquico saudável, portanto, sentir inveja é normal, desde que o veneno não seja mais potente que o antídoto. “Eu quero o que você tem”. O invejoso sabe contar até dois.

Outro sentimento que os convidados do podcast comentam é o ciúme, não tão repudiado pela sociedade quanto a inveja (vamos voltar aqui mais tarde*), muitas vezes até romantizado, mas tão destrutivo quanto – senão mais. Fazendo uma análise rápida pelo Google, quando buscamos a expressão “matou por ciúmes”, no filtro de notícias aparecem 60.500 resultados. Já a expressão “matou por inveja” trouxe 20.400 resultados. Ou seja, apesar de não causar ojeriza e ser considerado por muitos uma prova de amor, o ciúmes, à primeira busca, é bem mais perigoso para o outro do que a inveja – não só porque ele não é uma emoção primária, ou seja, vem orbitado e motivado por outros tantos sentimentos negativos, mas principalmente porque depende de uma triangulação. 

Spoiler: este também não é um teste de trigonometria. A triangulação das relações tem como condição o envolvimento de 3 pessoas – por isso o ciúmes aparece mais tarde, quando nós já entendemos que existem mais pessoas no mundo além de nós, bebês, e da mãe – o que ocorre nos primeiros dois anos de vida. Para haver ciúmes, é preciso que haja três pontas: o ciumento, o objeto de ciúmes (a pessoa amada, por exemplo) e a ameaça (a pessoa que o ciumento imagina que vai tirar dele a pessoa amada). Aí está o triângulo. O ciúmes é uma reação ao outro: “Eu quero o reconhecimento que você tem dele – ou dela”. O ciumento sabe contar até três.

Quando sentimos inveja, fica muito nítido que o problema não é a pessoa que está nos causando a inveja, mas sim a inveja em si e nós, que servimos como canal dela. No entanto, quando sentimos ciúmes, é muito comum culparmos o objeto de ciúmes pela nossa própria reação. Enquanto a inveja acaba sendo, por causa dessa interpretação social, muito mais autodestrutiva ou silenciosa, o ciúmes é um dos elementos que contribui para muitos casos de feminicídio, por exemplo: o homem vê a mulher como sua posse e, caso imagine que outro homem está ameaçando seu território, culpa e chega a matar a própria mulher por isso.

Na verdade, em ambos os casos, a inveja e o ciúme dizem mais sobre as feridas e os assuntos mal elaborados de quem os sente do que sobre quem é alvo – e vítima – destes sentimentos. Por esse motivo, o invejoso nunca será satisfeito em sua inveja e o ciumento nunca estará seguro sobre o objeto amado. *Agora, voltando ao ponto da aceitação social do ciúmes ser muito maior do que a inveja, vejo dois caminhos: o primeiro deles é o quanto a inveja é associada a Lúcifer no Velho e no Novo Testamento, por isso é condenada e abominada. 

Para os cristãos, a inveja é a manifestação do cornudo, do capeta, do belzebu, do sete pele, do capiroto, do demônio, do ardiloso, do anticristo, do anjo caído, do chifrudo, do coisa-ruim, do pé-preto, do maligno, do tinhoso, do renegado, do satã, do pata-rachada, do cão, do excomungado, do inimigo, do diabo himself que foi, por invejar os homens e invejar a Deus, destituído do seu prestigiado posto de guardião do Éden, expulso do reino de Deus e ainda teve as asas cortadas – será que é daí que vem a expressão “cortar as asas” como forma de conter alguém que está se comportando com rebeldia? 

Imagem: reprodução/Google

Já o ciúmes é muito menos citado na Bíblia, em algumas traduções é até associado ao zelo, ao cuidado. Inclusive, no Velho Testamento, a mulher é alertada para não provocar ciúmes no marido, porque ele ficará furioso e, inevitavelmente, se vingará. Dessa perspectiva, a primeira explicação é moral. A segunda possibilidade é que o ciúme conversa diretamente com a noção de relacionamento baseado em posse ou em propriedade – e não há nada mais fundamental para as bases da sociedade que vivemos hoje do que o direito à propriedade e, portanto, o direito ao ciúmes. 

As reflexões ecumênicas me levam a outra questão fundamental que, mais do que nunca, precisa ser olhada por um prisma complexo, que seja capaz de abraçar, e que de fato abrace, todas as contradições da condição humana: o mundo não é dividido entre o bem e o mal. Não existe “O” Bem e “O” Mal, como nos ensinam nas histórias infantis. As dicotomias, ainda que sejam excelentes para que as crianças entendam de forma mais didática o que acontece ao seu redor, são extremamente prejudiciais – e nada ecumênicas – para estabelecermos diálogos entre as pessoas que pensam e agem diferente de nós. 

Existem, é claro, limites morais entre o que é certo e o que é errado. Existem, ainda, limites legais para ambos – basta um homicídio, por exemplo, para alguém ser condenado a 30 anos de prisão, independente de quantas pessoas este alguém salvou, ou não, durante a vida. No entanto, o que é certo é diferente do que é bom ou do que é fazer o bem, assim como o que é errado é diferente do que é mau ou do que é fazer o mal. As lentes que construímos para enxergar as mais diversas situações muitas vezes limitam-se ao filtro preto e branco. 

Como uma nova ferramenta das redes sociais, vai demorar muito mais tempo para migrarmos para os filtros coloridos, correndo o risco de ser mais pessimista do que realista. O que conseguimos agora, sendo otimista, é usar filtros em tons de cinza e tornar nossa palheta de percepções um pouco menos limitada, para darmos alguns passos em direção ao nosso próprio espelho, dentro dessa imensa sala de espelhos que chamamos de sociedade. Quem sabe, finalmente, nos encaramos e encaramos uns aos outros mais de perto. Pode ser que você saiba contar até dois. Ou contar até três. O importante é não parar de aprender no “um”.