O documentário da Netflix me fez pensar: “que horror pessoas tão jovens dependendo de estimulantes para viver” até eu notar que eu sou uma dessas jovens

Demorei muito para conseguir escrever a coluna desta quinzena, não só pelo tempo que me faltou para escrever, mas também porque eu só estou conseguindo trabalhar a base de remédios. Difícil admitir isso, mas a verdade é que muito mais gente do que imaginamos está na mesma situação. 

Em 2020, a Anvisa registrou que quase 3 milhões de caixas de psicoestimulantes foram vendidas em farmácias, um aumento de 21% em relação a 2018 e de 111% em relação a 2011, ano do registro mais antigo de dados sobre essa categoria. Os psicoestimulantes mais conhecidos (e compostos por substâncias legalizadas no Brasil) são a Ritalina e o Venvanse, que têm princípios ativos diferentes. Nos EUA, também é liberado para consumo, mediante apresentação de receita, o Adderall, que tem uma ação mais potente do que o Venvanse, mas a composição é bem parecida. 

Os três remédios geralmente são receitados para tratar sintomas do que ficou conhecido como Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), um diagnóstico complicado de se fazer, que majoritariamente é realizado na infância, mas que tem sido banalizado em muitos consultórios psiquiátricos. Os remédios que mencionei prolongam a concentração e o foco, de acordo com a bula. Mas quero compartilhar a minha experiência com um deles.

Assisti há alguns dias o documentário “Take your pills”, de 2018, da Netflix. Os personagens do documentário fazem parte de grupos diferentes, mas todos eles tomam Adderall por prescrição médica. Alguns, a partir do diagnóstico de TDAH. Alguns, para melhorar o desempenho no trabalho. Alguns deles se sentem ótimos tomando Adderall, outros não veem a hora de parar. O fato é: todos relatam mudanças drásticas no dia a dia por causa dos estimulantes.

O documentário é bem interessante, fica aqui minha recomendação, principalmente para quem toma tais remédios ou para quem tem filhos que tomam. Pesquisando sobre ele, vi que existe até uma petição online para que a Netflix remova o filme do seu catálogo, com a justificativa de que o documentário glamouriza o uso do Adderall. O filme mostra que os alunos que fazem uso do medicamento tiram A nas provas, ainda que comprem em um esquema de tráfico dentro da universidade, ou que um programador consegue trabalhar muito mais e melhor sob o efeito do remédio. Uma das histórias sobre o nível de exaustão que um profissional do mercado financeiro atingiu tomando estimulantes é bem séria. 

Os casos trazidos no filme nos fazem pensar sobre o quanto ter a prescrição médica pode não ser o suficiente para sabermos sobre a necessidade ou não destes remédios. Não estou, de maneira nenhuma, descredibilizando os psiquiatras que receitam estimulantes. Acho, inclusive, que tais remédios possibilitam que algumas pessoas tenham uma vida normal e consigam realizar suas tarefas mais rotineiras. O que me faz questionar o alto consumo desses medicamentos vem dos dados do próprio documentário e também da minha experiência pessoal. É importante que seu médico de confiança te ajude nesta reflexão, veja o que é melhor para seu caso e acompanhe o desenrolar de todo seu tratamento, ok?

Diário de uma doida altamente funcional 

Comecei a tomar o Venvanse há uns dois meses e meio. Antes disso, eu já fazia uso da Venlafaxina, um remédio que é indicado para tratamento de depressão associada à ansiedade. Uso a Venla (meu nome carinhoso para o princípio ativo) há mais de um ano e me faz muito bem. Me ajudou a estabilizar meu humor, a evitar os picos de euforia e depressão contínuos e a lidar com os sintomas do burnout e as consequências mentais que a pandemia me trouxe.

O fato é, eu e meu psiquiatra (obrigada por tudo) chegamos ao Venvanse depois de eu relatar minha falta de energia para fazer absolutamente qualquer coisa nos primeiros meses do ano, minha falta de concentração e meus episódios de transtorno alimentar. Importante frisar também que o Venvanse é receitado para quem tem histórico de Transtorno de Compulsão Alimentar sem resultados efetivos usando outros remédios. 

O efeito começa a aparecer de 30 a 40 minutos depois de engolir o comprimido. No primeiro dia que tomei, me senti super poderosa. Até cantei no banho, coisa que eu não fazia há mais tempo do que eu possa lembrar. Fiquei com a energia de uma criança de 3 anos, esqueci de almoçar e fiz todas as coisas que precisava com muito foco e atenção. Dá para entender porque em muitas faculdades americanas, de acordo com o documentário que citei, existe um comércio paralelo de psicoestimulantes, principalmente na época de provas.

É mais fácil se concentrar, realizar tarefas que exigem foco e atenção, trabalhar por mais horas e se manter acordado, sem deixar o cansaço nos abater. Pelo menos é o que parece. Como um dos efeitos colaterais é a falta de apetite, a gente realmente se esquece de se alimentar, o que pode causar uma baixa de energia quando o efeito do remédio passa. Mas, como eu tomo todos os dias, na manhã seguinte parece que o laço da mulher maravilha e os braceletes de ouro voltaram com força total. 

Outro efeito é a perda de sono, por isso na primeira noite tive uma insônia difícil, fui dormir quase 5h da manhã – e eu sou daquelas pessoas que dormem com muita facilidade, insônia não faz parte do meu repertório de dificuldades. No outro dia, acordei cansada e sem energia. E dale Venvanse novamente. Pronto, já estava energizada de novo e pronta para mais um dia de alta produtividade. O problema é que essa energia é completamente artificial. Sou eu usando um remédio para enganar meu corpo, contando a mentira deslavada de que estou descansada, animada, com vontade de fazer mil coisas e tesão por viver. 

Neste momento da minha vida, esse boom artificial de ânimo está sendo muito necessário. Mas meu psiquiatra alertou: vamos manter esse remédio apenas alguns meses, depois a gente faz o desmame e seguimos com o tratamento normal. Sim, o Venvanse precisa de desmame porque pode causar dependência física e mental e, portanto, abstinência. O remédio só é vendido com bula especial e é muito caro, mesmo para os padrões dos remédios psiquiátricos. Tem anfetamina na composição do remédio, não é brincadeira. 

O corpo fala. E ele não aguenta mais falar

Você, que está lendo, pode estar pensando: “dá foco, energia, concentração, tira o sono e ainda pode emagrecer, você está reclamando do que?”. Estou reclamando de não estar problematizando todos esses efeitos e, ainda assim, sentir que preciso desse remédio para viver bem. A primeira problemática é essa questão da falta de apetite. Saco vazio não para em pé, como diria minha avó. Emagrecer porque estou tomando um remédio que me faz esquecer de comer não é saudável. É problemático do ponto de vista da pressão estética e também pode me causar falta de nutrientes importantes.

Segundo que nós, seres humanos, já nascemos com uma capacidade de concentração e foco, resultado da nossa também alta capacidade de cognição. Que coisa maluca é essa na qual minha própria natureza não dá conta de viver? Ou será que, na verdade, eu estou assumindo muito mais do que deveria? O cansaço que eu estava sentindo, a falta de energia, a vontade de dormir 20 horas seguidas e depois descansar do descanso não estavam querendo me dizer alguma coisa? O que isso nos mostra, enquanto sociedade?

Se a venda de estimulantes aumentou tanto, não sou só eu que percebi que minha natureza não está dando conta de viver. E isso diz mais sobre nós enquanto grupo social do que sobre mim enquanto mulher cansada de 31 anos. Se estamos dependendo de remédios para continuar vivendo, quer dizer que a vida que estamos levando é insustentável. Estamos driblando nosso próprio corpo mesmo quando ele nos fala sobre o que precisamos de fato. 

“Está na hora de você parar e descansar. Você não aguenta assumir mais um projeto. Você não pode se responsabilizar por mais pessoas. Você não consegue estar em três lugares ao mesmo tempo. A madrugada não é um horário alternativo de trabalho. Você precisa sair da frente do computador para se alimentar. Trabalhar 14 horas por dia não é uma opção viável. Dormir de sete a oito horas e ficar longe do celular não são luxos. Se distrair ao longo do dia é completamente normal. Ter dias nos quais você não consegue ser criativa e produtiva faz parte. Deixar algumas coisas para amanhã é saudável”. Gente, que corpo é esse que não faz silêncio! Faixa-preta-aprovado-pela-Anvisa, corre aqui!

Não dá pra ser Alice, ainda que eu esteja no País das Maravilhas dos remédios, e tentar me enganar: realmente, sem o Venvanse, eu muito provavelmente já teria sido demitida (de novo), teria deixado muitas pessoas que contam comigo na mão, não conseguiria cuidar da minha casa e dos meus gatos à distância enquanto organizo outras mil coisas e cumpro prazos. Sem o Venvanse, eu não estaria escrevendo esta coluna, que me faz sentir mais realizada profissionalmente. “Thank you, Venvanse. Thank you, receita amarelinha”. 

Sinto que estou atravessando um penhasco segurada por uma corda de 50mg em cápsulas. E se eu soltar da corda, despenco. Provavelmente, sendo um penhasco metafórico, eu despencaria na cama e passaria quatro ou cinco dias deitada, dormindo, olhando pro teto, descansando, sentindo que não consigo alcançar o celular. Também, provavelmente, é disso que meu corpo precisa neste momento: descansar por vários dias sem se culpar. 

Me sinto como a noiva ressuscitada do conto dos Três Irmãos, que conta a história das Relíquias da Morte: estou cumprindo o papel de estar viva, mas com certeza não estou vivendo como deveria. Não adianta girar a Pedra da Ressurreição três vezes (ou tomar pílulas de anfetamina) e tentar driblar a natureza. O fato é que, como sociedade, estamos neste estágio: temos prescrições para ficarmos acordados, para dormir, para nos sentirmos mais felizes, para nos sentirmos mais calmos, para não sentirmos mais nada. 

Estamos lidando com o mal estar na civilização da forma mais infantil possível: ignorando nossos corpos, tapando os ouvidos com as mãos e gritando “lá lá lá lá, não ouço nada!”. Claro que precisamos ser funcionais, não tem como dizer que dá para tirar uma semana sabática no meio de uma entrega importante ou simplesmente não aparecer para trabalhar se você está em uma empresa que cobra por resultados, ainda que seja sua própria empresa. Mas precisa existir um limite. E muitos de nós já chegamos no nosso, quando digitamos o CPF no celular, em vez do número da amiga com quem precisávamos falar, e ainda reclamamos da mensagem “o número discado não existe” – sim, eu fiz isso. Falamos tanto em estabelecer limites para os outros. Quando vamos começar a respeitar nossos próprios? 

Cinco questões importantíssimas:

  1. Mesmo que saúde mental não devesse ser um tema restrito a um grupo privilegiado, estou fazendo um recorte muito específico quando falamos sobre “nós” neste texto. “Nós” somos pessoas de classe média alta, que têm acesso a especialistas e tratamentos psiquiátricos, além de poder arcar com as despesas de remédios.
  2. Todo e qualquer remédio, principalmente aqueles que exigem retenção de receita ou receitas especiais, deve ser prescrito por um médico especialista e de confiança, que acompanhe seu caso e te explique para que servem e como esses remédios vão agir no seu corpo.
  3. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é coisa séria, precisa ser devidamente diagnosticado e tratado para dar uma melhor qualidade de vida para quem apresenta o quadro. Na dúvida, consulte mais de um psiquiatra ou psicólogo. 
  4. Todas as pessoas que sofrem de doenças psíquicas ou transtornos mentais precisam contar com acompanhamento de especialistas. Nunca faça seu próprio diagnóstico ou se automedique, mesmo que você ache que todas as respostas para seu quadro estão no Google. Procure um médico. 
  5. Problemas com a saúde mental não são frescuras, o assunto é muito sério. Se você está em sofrimento psíquico e precisa de ajuda imediata, vá a um pronto-socorro perto da sua casa ou ligue para o Centro de Valorização à Vida, CVV: é só discar 188 do seu celular e os voluntários estarão prontos para conversar com você.