Será que o Brasil aguenta mais um pouquinho?
Por: Marta Dueñas, jornalista
E-mail: marta.duenas@mulheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes
Por que existe um mal estar coletivo no ar? Seria fruto da pandemia? O que é que tem que não deixo de ler ou escutar: “tempos estranhos” de tanta gente que conheço e não conheço? Quem não tá falando isso tá falando “Em nome de Jesus”. O que isso tudo tem a ver com uma população cansada, exausta ou perdida?
Não creio que tenhamos uma resposta única. Acho que são fatores entrelaçados no esteio de um pós-pandemia de covid. Vivemos e sobrevivemos num país empobrecido, violento e com fome. E tem gente que ergue as mãos para o céu, em nome de Deus e agradece esse momento nacional.
Não bastando a pandemia ter levado vidas, adoecido amigos, fechado empresas, modificado trabalhos; dia a dia somos esbofeteados com notícias duras de engolir. Duras, porém reais. Deixemos de lado, neste momento, as fake News, que são violentas e levam a péssimas decisões. Lidar com o real já é bastante bruto agora.
Eu acho que aguentar mais um pouquinho é uma maneira bastante gentil de insurgir contra uma ordem de matar proferida por um Estado violento, que é o Brasil de hoje. Uma violência com toga, com número de ofício, uma violência de uniforme e com ordem de matar. A violência é quase membro do governo, tão sólida e palpável. Tão perceptível. Ela tem sido companheira diária de milhares de pessoas brasileiras negras, indígenas, mulheres, trans, pobres. A violência sussurra no ouvido de profissionais de comunicação, da saúde, de história, de sociologia, da arte da cultura, do direito. Ela tem cara, corpo e voz. Mas eu vou aguentar mais um pouquinho!
Dia desses, eu pensava nos medos cotidianos que sinto e fiquei pensando nas justificativas para tal. Seriam fruto do novo lugar que vivo? Alguns momentos cheguei a pensar que sim. A verdade é que não! Não mesmo! O Brasil mata institucionalmente. Não suficiente o nosso índice de “mortes interpessoais”, vou chamar assim; a gente chora a polícia que mata, os seguranças de mercado que matam, os juízes que matam, os ministros que matam, os pastores que matam, em nome de Jesus! Não me matou porque não sou repórter, sou branca, tenho a cara da elite. Mas estou certa de que se não fosse assim eu poderia estar nas estatísticas. Mas eu vou aguentar mais um pouquinho porque sou desobediente à toda ordem que oprime. É algo da minha essência e pele.
Essa pergunta gatilho “será que você aguenta mais um pouquinho? feita por uma Juíza a uma criança de 11 anos, estuprada e grávida. Criança que já um estupro!! Você tem em conta o que é sobreviver a um estupro? Alguém que te sufoca antes durante ou após invadir-lhe o corpo como uma bala que vai estilhaçando, arrebentando? A criança não aguenta! Já eu, por pura teimosia, vou aguentar muito mais a um país que manda matar, esganar e sufocar diariamente sob a batuta de um criminoso que coordena uma corja cujo mal é degustado como leite condensado no café da manhã. Estou aqui para isso, agora aguentar e mais adiante, degustar.
Segundo dados da UNICEF no relatório “Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil”, entre 2017 e 2020 foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos – uma média de quase 45 mil casos por ano. Crianças de até 10 anos representam um terço do total, ou seja, 62 mil das vítimas. Com dados tão numerosos, vale lembrar que a estimativa é de que apenas 10% dos casos reais de estupro sejam notificados, portanto, com tanta violência não se pode tolerar o Estado violador.
Ainda em 2022, outro caso de violência sexual seguido de violência institucional ganhou notoriedade: “caso Mariana Ferrer”. A vitima relatou em suas redes sociais ter sido vitima de estupro por um empresário daquele estado, que, após ser processado pelo crime, foi absolvido por falta de provas, senda a sentença confirmada pelo TJSC. O caso comoveu a opinião pública especialmente após o vídeo da audiência ser publicado pelo “The Intercept Brasil”, mostrando cenas do magistrado permitindo que a vitima fosse atacada pelo advogado de defesa do réu. Foi a partir dessa aberração que o crime de violência institucional foi tipificado pela Lei pela Lei n. 14.321 que ampliou o espectro de uma lei de 2019 que caracteriza e pune o Abuso de Autoridade. Os casos de abuso e violação de direitos cometidos pelo Estado aumentam. Talvez aí esteja parte da resposta para o medo cotidiano que sentimos. Este mal estar coletivo que paira no ar. Se quem deveria resguardar por direitos humanos os infringem, quem está por nós?
Tenho uma sensação que haverá justiça. E quero assistir a tudo comendo pipoca. Leve, calma, segura do lado que escolhi para viver e defender. Pois sim, há um lado e não é dos comunistas contra o império é do bem contra o mal e quem polarizou o país são os que vestem a camiseta da CBF. Vou arrancar-lhes este time, que é também o meu, e me vestir sem culpa. Mas não agora. Agora eu vou aguentar porque aqui não é a Casa da Mãe Joana!
Não é o primeiro caso de violência institucional que assistimos e tenho a impressão que à medida que o Estado vai sendo desmanchado, os casos aumentam. Crenças, religião, ódio e temperos piores são colocados na cena do crime, deixando as vítimas que deveriam ser protegidas com menos oxigênio. O Brasil está sufocante. Além da dor física de Mariana Ferrer, Genivaldo, Bruno, Dom, milhares de crianças famintas e violentadas, temos que nos defender, também, de quem nos defenderia.
Ah, mas você tem que ser melhor que isso. Parece vingativa. Seja resiliente. Não dá! Não é possível em circunstâncias tão diferentes das que esperamos agir como sempre. Não é possível manter-se na mesma posição em circunstâncias tão extremas. É inteligente mudar e farão você acreditar que isso é ruim. Se há um mal estar social no ar, no coletivo é justamente porque algo deste campo coletivo (o Estado) que esperávamos como amparo passa a nos violar. Então mudar não é ruim. Protestar não faz mal. Me chamem de baderneira, mas jamais poderão me acusar de assassina. A morte da infância no Brasil, a morte das mulheres, a morte dos ambientalistas, a morte num camburão da PRF, a morte num mercado, a morte por ciúmes, essas são desordens e maldades. Não podemos mais respirar este ar. Não fiquemos iguais diante da morte. Eles matam, eles sim são sempre iguais, lineares como a morte.