Por Regina Fiore, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

Uma discussão está circulando entre os sites e colunas de inovação e tendências: a Era Pós-Emprego. Desde de 2017, já circulam alguns artigos sobre o tema, mas depois da pandemia parece que as pessoas também têm encontrado com o que se identificar dentro da teoria, que mais parece desejo ou especulação. 

Pós-Emprego não significa Pós-Trabalho. O trabalho é o que organiza a sociedade – muito mais do que o consumo. O consumo é o coração da sociedade; o trabalho é o cérebro. Trabalhamos para consumir, consumimos a medida em que trabalhamos. Os produtos consumidos só existem porque existem pessoas trabalhando para produzir. As pessoas só trabalham na produção de bens e serviços para poderem consumir o que é produzido. 

“Trabalhar ou não” não faz parte da questão. Especialmente porque as pessoas para quem trabalhamos continuarão precisando da nossa capacidade física e motora para continuarem sendo as pessoas para quem trabalhamos. Não vai existir IA que seja capaz de substituir todos os trabalhos – não porque falta tecnologia para isso, mas principalmente porque todos os setores da economia sucumbiriam se não houver um grande número de pessoas, que têm necessidades emocionais, orgânicas e psíquicas, para consumir. 

Pós-Emprego caminha em outra direção – para alguns, direção oposta e preocupante que tem ganhado suporte não só da iniciativa privada, mas também em bases legais. A taxa de desocupação no Brasil, segundo o IBGE, está no patamar dos 9%. São mais de 100 milhões de pessoas que têm uma ocupação no Brasil, formal ou informal. Entre elas, mais de 37 milhões têm carteira assinada. Os trabalhadores domésticos, que não entram nessa medida das carteiras assinadas, somam 6 milhões de pessoas. 

Ou seja, se desconsiderarmos as pessoas que não estão trabalhando, os trabalhadores domésticos, os funcionários públicos e os que têm carteira assinada, temos 46 milhões de pessoas em trabalhos autônomos – isso vai desde o vendedor ambulante até a contratação de um designer PJ. Desde 2012, temos o menor número de trabalhadores com carteira assinada no Brasil – e a tendência é que esse número diminua ainda mais, ano após ano. Ou seja, empregos formais serão cada vez mais raros, principalmente para a grande massa de pessoas que compõem a população brasileira. 

“Não tem emprego, mas tem trabalho”. A Reforma Trabalhista abriu portas importantes para isso, já que a contratação via prestação de serviços – o famoso pêjotinha – foi reconhecida como forma legítima de contratação, desde que siga algumas regras – que, geralmente, não são seguidas. Algumas informações para você que é PJ: seu trabalho é medido por entrega. Você não precisa estar presencialmente na empresa, você não tem horário para entrar ou sair, você não tem superior imediato na empresa, você não precisa estar disponível dentro de determinado horário – de acordo com a lei. 

A prática do mercado, no entanto, é anunciar vagas: PJ – Híbrido – das 9h às 18h de segunda a sexta-feira. O melhor dos dois mundos, para o empregador. Exime o empregador de pegar os benefícios da CLT, que só vale para quem tem carteira assinada, e ele consegue ter um funcionário integral. Como vivemos num país constantemente assombrado pelo desemprego, quem precisa pagar as contas aceita tais condições. 

Pós-Emprego, mas nunca Pós-Trabalho. As grandes empresas de tecnologia, como Uber, iFood e similares, expandiram o modelo de startups: a escalabilidade não apenas do produto ou serviço, mas também do trabalho precarizado. “Uberização” já é sinômino daquela ocupação que mais te dá gasto do que ganhos, mas que é necessária para sobreviver. Circulando por São Paulo, a capital das oportunidades, é fácil ver rapazes jovens em bicicletas laranjas e com mochilas vermelhas, pedalando de cima para baixo para realizar entregas. 

A bicicleta é alugada (e o pagamento é feito por hora). A mochila vermelha é o único instrumento de trabalho que esses jovens ganham para garantir a existência da empresa. Sem os entregadores, não existe iFood. Sem os motoristas, não existe Uber. E, ao ler as letras miúdas, iFood não é uma empresa de entregas, assim como a Uber não é uma empresa de transporte de passageiros. São apenas plataformas. 

São Paulo é, realmente, a capital das oportunidades de se envergonhar com o que está acontecendo quando a inovação encontra a ganância. As empresas como iFood e Uber só faltam escrever para os entregadores e motoristas: “Quer trabalhar? Trabalho tem. Precisa de alguma coisa para trabalhar? Problema seu, eu não tenho nada a ver com isso”. Enquanto isso, o CEO do iFood nos conta no LinkedIn como foi engrandecedora a experiência de mergulhar com a esposa e as filhas para ver um naufrágio – não foi do Titanic, ele está vivo e bem, pessoal.

Obviamente, as empresas têm sido obrigadas a tratar do assunto. Existem medidas para que entregadores, motoristas e prestadores de serviços em geral dessas big techs tenham o prejuízo minimizado. O próprio CEO do iFood foi ao encontro do Fórum Econômico Mundial palestrar sobre “o impacto de novas tecnologias na criação de mais postos de trabalho”. 

Isso quer dizer que, ainda que o Brasil não seja exemplo de igualdade social ou cidadania em muitos aspectos, nosso modelo “uberizado” de trabalho pode, sim, servir de exemplo para outros países emergentes – e para baratear ainda mais os “gastos” que os empresários têm com a força de trabalho. Força de trabalho, não de emprego. Na prática, cada vez mais vamos acumulando funções, contratos de prestação de serviço e responsabilidades para além de um emprego estável, com férias, décimo terceiro, VT e VR. Trabalhamos mais, empregamos menos. 

O resultado disso para nós, trabalhadores-ocupados-porém-desempregados, vai além da questão monetária: estamos todos exaustos. Vamos ficar cada vez mais exaustos e a saúde mental de todos nós vai piorar. Classe média, classe C, classe D, classe média-alta – ou seja, todo mundo que depende de salário no final do mês, seja ele para pagar os boletos de luz e água ou a fatura do Platinum Diamante 4.0 com acesso às salas VIP dos aeroportos, estará (na fila do SUS ou na fila da farmácia) com uma receitinha azul ou amarela, buscando formas artificiais e médicas para continuar trabalhando. 

O cansaço da Era Pós-Emprego não é um privilégio de classe. Com certeza, é mais fácil para uns do que para outros, chegará a todos nós em algum nível. Aliás, mulheres, preparem-se! Viemos para o mercado de trabalho, reivindicamos os cargos de liderança e a autossuficiência sobre casamento e maternidade, quisemos proclamar independência – mas nada disso chegará barato. “Tem um preço” como diria Rita Lee, na gravação de Pagu. 

Seremos (somos) cobradas de todos os lados e perspectivas: maternidade, liderança, empatia, independência financeira, saúde, estética, fidelidade, cuidado de si e dos outros, administração da casa (e do marido, parceiro, companheiro, esposo, como quiserem chamar), maternidade (dos filhos e do marido, parceiro etc) e, se você quiser escolher apenas um desses aspectos para focar, você será considerada derrotada, conformada, egoísta, megera, agressiva, descuidada… Vocês já sabem, a idade certa, o cargo certo e o comportamento certo só existem se você for homem. 

Mais uma contradição maravilhosa da nossa época: nunca produzimos tanto alimento, mas milhões de pessoas ainda passam fome. Nunca avançamos tanto em tecnologia, mas milhões de pessoas não têm acesso a saneamento básico. Nunca tivemos tanta pesquisa voltada para a área de saúde, mas doenças como sarampo e poliomielite estão voltando com tudo, como se fosse um novo lançamento da Fashion Week, com acessórios inovadores que dão toque ao estilo e a OMS chama de pandemia. Nunca tivemos tanto trabalho e tão pouco emprego. 

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