Por: Natália Bosco, jornalista
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Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista

Apelar para os direitos humanos para mim foi fortalecer os direitos das mulheres como uma classe, como uma condição coletiva, proteção que ainda não era reconhecida para as mulheres. A descolonização da exploração sexual das mulheres como classe ainda não havia começado. (…) Eu tentei com que as mulheres fossem reconhecidas como um território sexual colonizado que exigia proteção, (…) queria que a exploração sexual viesse a ser conhecida, de acordo com os padrões de direitos humanos estabelecidos pelas Nações Unidas para os outros grupos. Queria que a exploração sexual fosse tratada como um crime contra a humanidade, bem como contra um ser humano individual”. Foi o que escreveu a socióloga Kathleen Barry, em 1994, em seu livro The prostitution of sexuality.

Silvia Chejter escreveu que “a legislação internacional dos Direitos Humanos se estabelece com clareza que ‘a prostituição e o mal que a acompanha, o tráfico de seres humanos para a prostituição são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana’. A prostituição é uma forma de violência e, portanto, uma violação dos Direitos Humanos”.

Muitos são os fatores que devem ser analisados quando falamos de prostituição no Brasil, como raça, gênero e classe social. Segundo Alyne Isabelle Ferreira Nunes, “analisar a prostituição ignorando a questão racial como um dos fatores determinantes de entrada e permanência dessas mulheres negras é garantir a manutenção de um discurso que subsume ou exclui o racismo como elemento central das opressões que estruturam nossa sociedade”.

Uma pesquisa realizada por Juliana Moraes de Góes, em 2017, mostrou que a maior parte das trabalhadoras precarizadas são mulheres negras, e, assim, grande parte das prostitutas também o são. Entre as opções de trabalhos precarizados, muitas mulheres acabam se tornando prostitutas, até como uma resposta a formas de trabalho que essas mulheres entendem como mais precarizadas.

Além disso, um estudo de 2011 indica que há uma estimativa de que a população de profissionais do sexo no Brasil seja em torno de 1% da população feminina na faixa etária de 15 a 49 anos, ou seja, em torno de meio milhão de mulheres, segundo dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde na época.

Um levantamento feito por Neiva de Alencar Salmeron entrevistou prostitutas em 2012. Os resultados mostram que 48% das profissionais do sexo entrevistadas estavam em atividade entre 1 e 5 anos. Em relação à escolha da profissão, 66% responderam ter sido por necessidade e 20% porque gostavam da profissão.

No tocante às horas trabalhadas, 56% mantêm suas atividades de 5 a 6 dias/semana. Durante os dias de trabalho, o número de programas é variável. No desempenho de suas atividades, encontrou-se alto consumo de drogas. O uso de drogas lícitas, como o cigarro e o álcool, foi relatado por mais de 31% das entrevistadas. Apenas 22% não consumiam nenhum tipo de droga. As demais associaram, frequentemente, cigarro, álcool, maconha, cocaína e LSD. O uso de cocaína associada à maconha foi relatado por 14% das entrevistadas. A exposição a infecções sexualmente transmissíveis (IST) e AIDS também foi alvo de investigação e, no tocante ao uso de preservativos durante as relações sexuais, 92% responderam que utilizam frequentemente em suas atividades profissionais. Dado contrastante foi encontrado ao ser verificado que o uso da pílula do dia seguinte foi usada por 86% da população estudada.

Encontrou-se que a faixa etária predominante foi entre 21-25 anos; sobre o estado civil, 76% afirmaram ser solteiras; com relação a parceiro fixo (62%) responderam que não tinham. Quanto a antecedentes pessoais, 94% não possuíam doença de base e 58% tinham de um a dois filhos. Quanto ao número de abortos, 28% tiveram um aborto, e quanto à frequência no pré-natal, 68% afirmaram que realizaram.

Dados de 2020 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a Antra, mostram que cerca de 90% da população trans no Brasil tem a prostituição como fonte de renda e única possibilidade de subsistência. De acordo com a associação, esse índice é causado por diversos fatores, dentre eles a dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho. Além da deficiência na qualificação profissional causada pela exclusão social, familiar e escolar.

Além disso, o programa A Liga, em 2010, apresentou estatísticas que deixam evidente que a prostituição no Brasil é uma questão social e de saúde pública. Os dados mostram que 87% da prostituição acontece na rua; 90% das pessoas que trabalham com prostituição queriam ter outro trabalho; há cerca de um milhão e quinhentos mil profissionais do sexo no Brasil e desses 78% são mulheres; as travestis correspondem a 15% desse total; 59% são chefes de família e devem sustentar sozinhas os filhos; 45,6% tem o primeiro grau de estudos; 24,3% não concluíram o Ensino Médio; 70% das mulheres prostitutas não têm uma profissionalização.

Em 2015, o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil estimou que existam 500 mil crianças e adolescentes na indústria do sexo no Brasil. O cruzamento de dados da Organização das Nações Unidas, a ONU, e do Instituto Brasileiro de Turismo colocam o Brasil em primeiro lugar em exploração da América Latina. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância, a UNICEF, em dados de 2010, cerca de 250 mil crianças estão prostituídas, ou seja, estão sendo sexualmente exploradas no Brasil. Em 2013, o programa Câmera Record foi até lugares remotos do norte do país onde só se consegue energia por meio de um gerador. Lá, a produção do programa percebeu que é comum que meninas se prostituam em balsas em troca de óleo diesel.

A situação jurídica do Brasil também não colabora para esse cenário. Aqui, prostituir-se não é crime. Cafetinagem, exploração sexual e manter casa de prostituição é que são crimes. Ou seja, uma mulher não pode ir presa por se prostituir, portanto não há como falar que no Brasil vige um modelo “proibicionista”. Consequentemente, também não existe lógica em falar na “legalização” da prostituição.

Por aqui, a primeira grande mobilização por direitos envolvendo pessoas que se prostituem data de 1979 e aconteceu devido a um forte esquema de repressão policial à prostituição no centro da cidade de São Paulo, que resultou nas mortes de uma travesti e duas mulheres, uma das quais estava grávida. Depois desse caso, prostitutas e travestis organizaram uma passeata em que denunciavam as arbitrariedades da polícia e mostravam a cara pela primeira vez.

Um projeto de lei apresentado em 2012 pelo então deputado Jean Wyllys, do PSOL do Rio de Janeiro, buscava garantir os direitos humanos, trabalhistas e previdenciários dos profissionais do sexo. Conhecida como Lei Gabriela Leite, em homenagem à líder histórica das prostitutas, a proposta pretendia proibir a exploração sexual, especialmente de menores de idade, e regulamenta a atividade de prostituição no país.

O projeto definia como profissional do sexo “toda pessoa maior de dezoito anos e absolutamente capaz, que voluntariamente presta serviços sexuais mediante remuneração”, e permitia que esses serviços sejam oferecidos de forma autônoma ou por meio de cooperativas. As casas de prostituição também seriam permitidas, desde que não pratiquem a exploração sexual.

Pelo projeto, apropriar-se de mais de 50% do valor do serviço de prestação sexual, negar-se a pagar por ele ou forçar alguém a prostituir-se são consideradas formas de exploração sexual. O texto previa ainda aposentadoria especial para o profissional do sexo, após 25 anos de trabalho.

Na época, o deputado afirmou que o objetivo não é incentivar a prostituição, mas reduzir os riscos danosos da atividade. Na justificativa da proposta, Wyllys explicou que, além de tirar a profissão da marginalidade, o PL permitiria um combate mais eficaz à exploração sexual, “pois possibilitará a fiscalização em casas de prostituição e o controle do Estado sobre o serviço”.

Uma matéria de 2018 publicada no QG Feminista comenta o PL. “O que significa regulamentar a prostituição? Basicamente, toda profissão tem uma regulamentação feita por seus órgãos profissionais representativos, na qual se definem deveres, direitos e código de ética, basicamente. Entretanto, o projeto não regulamentava de fato. O que o PL faz, de fato, é buscar descriminalizar a exploração econômico-sexual, além de flexibilizar seu conceito. O PL não traz uma linha sobre, por exemplo, aborto (seria acidente de trabalho? Teria natureza de indenização?), licença-maternidade, férias, regras de aposentadoria, progressão de carreira, insalubridade e periculosidade.

A prostituição não é reconhecida como emprego, no Brasil. Então, de fato, e inclusive por não haver regulamentação, a pessoa em situação de prostituição não tem direitos trabalhistas”. Tudo isso mostra que o buraco é bem mais embaixo do que parece.

O cristianismo também tem uma opinião sobre prostituição. Segundo o site Bíblia on, a prostituição é uma deturpação do relacionamento íntimo e especial que deve ser o casamento. A prostituição estraga esse relacionamento e dá valor às coisas erradas: luxúria em vez de amor, infantilidade em vez de responsabilidade, abuso em vez de carinho.

Imagem: charlesdeluvio_via_Unsplash

O site também afirma que, na bíblia, a prostituição também tem um significado espiritual. A infidelidade de quem se prostitui é como a infidelidade de quem abandona a Deus para adorar ídolos. Deus quer restaurar relacionamentos e corações, para serem novamente puros e fiéis.

Já o site Respostas Bíblicas escreve que, na bíblia, prostituição é ter relações sexuais fora do casamento, normalmente por dinheiro. Outra forma de prostituição na bíblia era a prostituição em rituais pagãos, ou prostituição cultual. A prostituição é pecado e tem muitas consequências negativas.

Em 2018, o papa Francisco considerou que quem paga para ter relações sexuais é um criminoso e que isso significa “torturar as mulheres” e condenou o tráfico de pessoas e a prostituição. O papa disse que prostituição “não é fazer amor. É torturar uma mulher. É uma doença”.

O PROSTÍBULO É A CASA AO LADO

A W3 Norte é uma das principais ruas de Brasília. De dia, a rua é cheia de carros, recebe os principais ônibus da capital e tem um comércio variado por toda a sua extensão. Durante a noite, porém, a W3 Norte tem outra face. “Ali é ponto de prostituição”, uma mulher me disse. “Eu sei”, respondi. Todo mundo sabe. Não sei desde quando é assim, mas sei que tem tempo.

“Olha lá, um cara tá deixando uma delas aqui”, disse o cinegrafista, quando observávamos a W3 Norte certa noite. Alguns meses atrás descobri que, na verdade, as prostitutas não vêm até a W3 Norte à trabalho. Elas moram por ali — ao menos algumas.

Percebi que as prostitutas de um ponto específico do W3 Norte vivem em uma espécie de comunidade, quase uma república, eu diria. Não sei ao certo quantas são. Não sei qual é o tamanho do apartamento em que vivem. Não sei qual é a relação do comércio local com o trabalho delas, embora eu desconfie que haja algum tipo de cumplicidade (mas isso é apenas minha teoria).

Tudo o que sei é que elas estão na W3 Norte de domingo à domingo, a partir das 19:30 até o horário que a escuridão permitir — elas não ficam ali quando o sol nasce. Sei também que, em geral, os clientes chegam de carro e o negócio é fechado pela janela do veículo. Alguns levam as acompanhantes para outro lugar e as trazem de volta mais tarde. Outros vão à casa delas, o prostíbulo que tenho observado.

Para falar a verdade, não é comum encontrar com elas durante o dia. Já me aconteceu, uma vez ou outra, mas é raro. Uma delas tem uma cachorrinha, pequena e bem peluda, e acabamos trocando poucas palavras uma vez quando nossas cachorras resolveram ficar cheirando uma à outra. Na ocasião a cachorrinha dela tentou montar na minha e fiquei sem graça quando ela e as amigas brincaram que até a cachorrinha trabalha com sexo.

Sempre que tenho a oportunidade de ver uma delas durante o dia, eu tento observar ao máximo. Tento perceber como elas se portam, se interagem com outras pessoas ou se só ficam entre elas mesmas e, principalmente, tento perceber como as outras pessoas agem com elas.

Começou a crescer em mim uma vontade de encontrar com essas mulheres. De ouvir o que quer que elas tivessem para me dizer. E foi aí que eu fui atrás delas. Decidida a escrever sobre prostituição, eu caminhei até elas uma determinada noite. Era terça-feira e eu vinha criando coragem há um tempo para ir até lá.

Quando cheguei, elas estavam distraídas, ouvindo funk em uma pequena caixa de som, dançando discretamente e conversando alto. Eram quatro mulheres, cada uma de um jeito. Muito bem produzidas, com bastante maquiagem, vestidos curtos e bem justos (apenas uma usava calça — ela parecia ser nova no trabalho e não disse uma palavra o tempo inteiro). Eu me apresentei, disse que queria escrever sobre prostitutas e perguntei se elas aceitavam me dar uma entrevista. Eu falei que queria ouvir o que elas tinham para me contar.

“Eu quero falar sim! E pode botar meu nome e minha foto na reportagem. Eu quero aparecer segurando minha identidade”, me disse uma delas. “A identidade dela tem nome de homem”, respondeu outra. A garota fingiu não ouvir.

Eu já tinha esbarrado com ela outra vez. Ela não aparenta ter medo nem vergonha nenhuma de se assumir travesti. Na noite em que conversamos, ela foi a que mais falou. Disse que os clientes procuram por sexo mesmo, não tem essa história de procurar prostituta só para conversar. Falou que faltam testes (de infecções sexualmente transmissíveis) na rede pública e disse que quer se defender de quem falar mal das profissionais do sexo. Disse tudo isso em uma tacada só, entre risos e piadas para tentar quebrar o gelo.

“A mamãe vai gostar de falar com você”, ela me disse. E, em seguida, olhou para o alto e começou a gritar “mamãe” repetidas vezes. Estávamos na calçada em frente a um prédio comercial bem na beira da W3 Norte. No primeiro andar, uma janela se abriu e uma mulher colocou a cabeça para fora.

“O que foi?”, perguntou a mamãe. “A menina aqui quer falar com você, ela é jornalista e quer escrever sobre as prostitutas”, uma das garotas que estava comigo respondeu. “Tá certo, alguém pega o número dela, ela pode fazer até a entrevista por mensagem, se quiser, mas agora eu não posso falar. Chegou cliente.”

Eu passei meu número para uma das meninas. Elas não quiseram me explicar porque chamavam aquela mulher de “mamãe”. Duas garotas desceram a rua para encontrar com outras prostitutas em outro ponto. A tímida garota que vestia calças se afastou. Eu me despedi da única menina que ficou perto de mim e prometi voltar no dia seguinte.

Voltei no ponto delas várias vezes, em horários diferentes, mandei mensagens, combinei dia e horário para voltar, mas elas sempre pareciam sumir quando eu me aproximava. A mamãe não deu entrevista, nem por telefone. As outras meninas também não. Tentei conversar com outras prostitutas que encontrei sozinhas pela W3 Norte, mas percebi que elas só se sentem confortáveis quando estão em grupo. “Ai, moça, agora eu tô trabalhando, tenho uma conta enorme para pagar”, me respondeu uma outra garota de programa quando falei sobre a entrevista. Foi assim que eu resolvi contar o que consigo observar.

“Uma coisa é ouvir falar sobre isso, outra coisa é você ver isso acontecendo. Parece que bate mais forte, porque não tem como ignorar a realidade”, eu disse para uma amiga quando estávamos conversando de noite assistindo a movimentação da W3 Norte. O assunto surgiu quando minha amiga percebeu que muitas das prostitutas por aqui são travestis.

Conversamos sobre o que pode ter levado essas mulheres a essa profissão, se elas escolheram essa vida ou se foi isso o que sobrou para elas, sobre como ouvimos falar da dureza que é ser uma pessoas trans e como muitas mulheres travestis acabam na prostituição. Conversamos sobre os esteriótipos, os preconceitos e se alguém consegue verdadeiramente ser feliz quando trabalha com prostituição. Infelizmente, só fizemos suposições, não tenho resposta certa para nenhuma dessas perguntas.

O que eu posso dizer é que a prostituição existe e é procurada de domingo à domingo. Eu sei que a gente sabe que existe, mas fingimos que não. Há alguns meses, eu não parei de fingir. Eu vejo esse comércio diariamente. E isso é o que eu chamo de “bater mais forte”, é a verdade escancarada na sua cara enquanto você está na sua posição privilegiada de tantas formas diferentes.

Outra coisa que é impossível ignorar: prostitutas são pessoas. Estamos tão acostumados a distratar certas pessoas que as transformamos em algo pequeno. Prostitutas não são apenas profissionais do sexo. São mulheres, muitas vezes à margem da sociedade, que também têm sentimentos, que também têm famílias, amigos, cachorros e contas para pagar. Elas têm medo. A sensação de insegurança durante a noite é constante. Eu percebi isso nitidamente todas as vezes que falei com elas na beira da W3 Norte. Mas, como me disse uma delas, elas estão ali a trabalho e a necessidade de pagar contas supera o medo.