Pai, afasta de mim estes 100 anos de Cálice
Por: Marta Dueñas, jornalista
E-mail: marta.duenas@mulheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes
Não podendo mais calar a imprensa, cala-se o governo. Como Bolsonaro articulou e decretou sigilo de 100 anos para investigações, temas de interesse público, crimes, denúncias e escândalos que envolvem seu governo e sua família
Você certamente já ouviu falar que a palavra é prata e o silêncio é ouro. Essa velha máxima usada em cursos e estratégias baratas de comunicação é distorcida de maneira avultosa por líderes políticos e empresariais para beneficiar suas imagens diante de crises e crimes que merecem total esclarecimento. O silêncio, neste caso, é adoecimento e culpa. Quem cala, consente, podemos responder com outro clichê. Como jornalista e tendo atuado como assessora de comunicação e consultora, eu sempre me posicionei pelo esclarecimento. Não há informação que não possa ser dita, explicada e publicada. Esclarece, corrige e, se necessário for, assume-se a responsabilidade e se reposiciona diante de erros, equívocos e até mesmo catástrofes que possam abalar a imagem pública ou privada de grupos e pessoas. Qualquer atividade econômica, social, cultural, seja ela parte de uma agenda de Governo ou da iniciativa privada, gera impactos na vida em sociedade e deve, portanto, ser foco de transparência e prestação de contas. A Coca-Cola não precisa nos contar a fórmula do refrigerante, mas deveria ser obrigada a manter em constante transparência os impactos que sua produção gera no ambiente, mesmo em se tratando de uma empresa privada com licença para produzir. Agora, imagina em se tratando do Governo Federal. Um grupo de políticos eleitos e outros tantos nomeados através dos eleitos que são servidores públicos e trabalham em formulação de leis, regras, projetos e ações que reverberam e muito na sua vida e na minha.
Numa outra realidade, o Brasil de 2011 intensificava as ações de comunicação e participação social. Tanto que foi neste ano a promulgação da Lei 12.527, chamada Lei de Acesso à Informação, LAI para os íntimos, que, como eu, em exercício de cargos público (fui Diretora de Publicidade do Governo do Estado do RS e Secretaria Adjunta de Comunicação) tinha prazo contado no calendário para responder e publicar pedidos de informação acerca de atividades sob minha responsabilidade.
A LAI é um esforço da Administração Pública para promover a transparência do Governo e para disponibilizar ao cidadão as informações de caráter público. A principal diretriz que rege a disponibilização de informações é: a publicidade e a transparência das informações é a regra, e o sigilo é a exceção. Portanto, a informação sob a guarda do Estado é sempre pública, podendo o acesso à ela ser restrito apenas em casos específicos e por período de tempo determinado. Para se ter uma ideia, informações classificadas como sigilosas são aquelas imprescindíveis para a segurança da sociedade (à vida, segurança ou saúde da população) ou do Estado (soberania nacional, relações internacionais, atividades de inteligência). De acordo com o texto da lei, a informação pública pode ser classificada de ultrassecreta com 25 anos de sigilo, secreta para 15 anos, e reservada, 5 anos.
O ano de aprovação da LAI é o mesmo da criação da Comissão da Verdade, ou seja, um período em que a atmosfera era de tirar assuntos de baixo do tapete e colocar fatos, dados e palavras na mesa. Contornando assuntos e temas que podem transformar e dar sentido à vida das pessoas. Foi, de certa forma, um movimento do país em direção à abertura do Estado ampliando a possibilidade de participação e controle social, amadurecendo a relação das pessoas com o governo, ou seja, o papel do cidadão.
Agora, na atual surrealidade, temos um desmanche a cidadania. Em 2019, primeiro ano do atual governo, um pacote de medidas que iniciam a tática do silencio, silenciamento e da cortina de fumaça começa a tomar forma. Em janeiro, o presidente, por meio de decreto, alterou as regas da LAI ampliando quem poderia colocar informações públicas nos mais altos graus de sigilo. Já em abril, o presidente Jair lança novo decreto extinguindo colegiados federais (conselhos, comitês, por exemplo), reduzindo a participação social no governo.
É muito importante se ter em mente todas as articulações feitas já no início do governo para entender como estamos atravessando esse período em que escândalos, assédio, estupro e mortes rondam o poder sem que caia uma autoridade. Não é só de briga com imprensa que vive o Planalto. É também uma guerra contra a verdade.
Não acabou o ano, mas farei uma pequena retrospectiva de algumas das principais ações audaciosas e questionáveis vindas do governo para distanciar a população da verdade, dos fatos e dos dados.
Algumas das informações decretadas sigilosas que alçaram fama: o extrato do cartão corporativo do presidente, o cartão de vacinas do presidente, o caso das rachadinhas que envolve o filho do presidente e até mesmo o processo de seleção da filha do presidente ao colégio Militar. Mas, por meio de outras ações, informações valiosíssimas se perderam no curso desse governo.
Em 2019, o Ministério da Justiça nega informações sobre eventual encontro do então ministro Sergio Moro com representantes de fabricante de armas e munições sob o argumento de “direito à privacidade”. Depois, foi a vez do IBGE anunciar importante corte no orçamento do Censo 2020. Já o Ministério da Economia decretou sigilo sobre estudos e pareceres técnicos que embasaram a PEC da Reforma da Previdência. Em 2020, logo no início, o governo federal suspendeu a divulgação dos dados de emprego no país.
Em meio à pandemia, a Casa Civil se negou a fornecer estudos e relatórios sobre hidroxicloroquina e cloroquina produzidos pelo Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 (CCOP). Na sequência, o Ministério da Saúde tira do ar o portal com dados oficiais de casos de covid-19 no país. Tal medida forçou a criação de um consórcio de imprensa para que pudessem ser divulgados os boletins diários.
O Ministério do Meio Ambiente e o Ibama omitem dados de áreas embargadas por crime ambiental. O Ibama também deixou de informar multas e apreensões feitas contra desmatadores na região amazônica. Até mesmo a “lista suja” de trabalho escravo não é mais fornecida. Essa lista era fornecida pelo Ministério do Trabalho que informa os autuados por adotar trabalho análogo à escravidão. Trata-se de pessoas ou entidades já condenadas. Outro sigilo questionável se não, ilegal, é a lista de pastores acusados de pedir propina ao Ministério da Educação. Se isso não é de interesse público, desconheço o que possa ser.
Em todas as áreas governamentais há segredos, sigilos, apagões de informações. O governo simplesmente não cumpre com seu papel de transparência. E essa agenda é estratégica. É típica de governos totalitários que impõem censura e governam para si. Governos lesa pátria.
Por fim, quando não imposto sigilo, impõem-se à morte. Não raros casos de pessoas chave em denúncias ou crimes sob investigação “aparecem apagadas”, dando continuidade ao proposto pelo governo. Um governo que apaga o Brasil, diariamente. Um governo que cala os brasileiros. Um governo que borra a história. Um governo que, se continuar, nos fará inexistentes, pois quando o que não interessa a eles deixa de existir, o próximo alvo somos nós.