Os desafios para a alfabetização infantil em tempos de ensino à distância
Por Bruna Fonseca
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Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista
Editora de conteúdo – Site MJ: Beatriz Azevedo, Jornalista
O ensino remoto se configurou como o meio que possibilitou que crianças e adolescentes seguissem estudando no contexto de pandemia. Sua implementação veio com desafios e impactos que já são perceptíveis na sociedade brasileira.
Os índices de ensino e aprendizagem infantil foram uma das muitas métricas que sofreram impactos com a pandemia que tem assolado o mundo desde o final de 2019. Em comparação ao restante do mundo, o Brasil teve um dos mais longos períodos de suspensão das aulas presenciais em escolas. A implementação do ensino à distância no âmbito da educação de crianças e adolescentes se configurou como a solução encontrada para que as aulas continuassem em meio à pandemia, e para que os alunos pudessem seguir estudando, mesmo que remotamente. “A tecnologia se mostrou uma aliada do processo de ensino e aprendizagem durante a pandemia, e o ensino híbrido continuará fundamental em 2021, inclusive nos processos de superação das defasagens”, afirma Daniel de Bonis, Diretor de Políticas Educacionais da Fundação Lemann, que, em 2020, encomendou um estudo sobre os impactos do ensino remoto na educação infantil brasileira.
Sabe-se, entretanto, que os entraves para que o ensino à distância se dê de maneira consistente e eficaz não são poucos. A profunda desigualdade social que assola o Brasil, e que se intensificou durante a pandemia da covid-19, é uma das maiores dificuldades para a implementação dessa alternativa. Afinal, o acesso à tecnologia e a outros recursos se dá de maneira desigual no país, o que causa um impacto negativo mais acentuado em meio a crianças de classes econômicas mais vulneráveis. Também devido a esse fator, fica difícil assegurar que os alunos implicados nesse contexto consigam incorporar os conteúdos e acompanhar as aulas da maneira que os órgãos de educação responsáveis idealizaram. A falta de acesso e de acompanhamento aos alunos de baixa renda fez com que os índices de evasão escolar relativos a essa classe subissem consideravelmente.
Em meio aos alunos que têm acesso às tecnologias que possibilitam o ensino remoto, desafios ainda existem. O que parece ser constante em meio a todas as classes sociais e todas as regiões do Brasil é a perda significativa de aprendizado por parte das crianças e adolescentes afetados por essa conjuntura. Ainda segundo De Bonis, “mensurar o nível em que se encontra cada aluno, a partir de avaliações diagnósticas, será necessário nesse contexto de incerteza, pois o acesso dos estudantes ao ensino remoto foi bastante desigual”. O pesquisador parte da ideia de que será preciso recuperar o atraso e preencher as lacunas decorrentes da interrupção da experiência de sala de aula. “Identificar essas defasagens possibilitará uma abordagem flexível de conteúdo, focada no que cada estudante precisa para recuperar o aprendizado perdido”, ele afirma.
Wagner Santos Fonseca, de 56 anos, compartilha desse sentimento. Pai das pequenas Luísa e Isabel, hoje com 9 e 7 anos respectivamente, Wagner é professor, tendo atuado nas redes municipal, estadual e particular ao longo dos anos. O fechamento das escolas implicou a permanência de Wagner em casa durante grande parte da pandemia, como foi o caso de muitos brasileiros. Dentre as mudanças que esse contexto rendeu a ele, estava a importante tarefa de acompanhar de perto o desenvolvimento escolar de suas filhas. Ele e a esposa, Mirian Barbosa Sousa Fonseca, de 50 anos, criaram uma tática para conduzir as meninas em suas respectivas aulas, dividindo as responsabilidades: Wagner se ocupa de acompanhar as aulas de Luísa, e Mirian, das de Isabel, a caçula. Esse é um exemplo que ilustra a realidade que muitos pais tiveram de incorporar nesse contexto pandêmico, assumindo, muitas vezes, a posição também de educadores.
A família mora em Arujá, na região metropolitana de São Paulo. A comunicação entre os pais, mães, educadores e a coordenação da escola em que Luísa estuda tem se dado por meio de um grupo no WhatsApp, de forma que Mirian pontua que o canal foi palco de diversos diálogos – incluindo reclamações – desde a implementação do ensino remoto. Segundo ela, houve muita dificuldade entre os pais e mães para se adaptarem ao que o formato exigia deles, bem como entre os professores, não acostumados às plataformas digitais. “A maioria dos professores não estava preparada para trabalhar de forma online com as crianças”, afirma. Dentre os problemas, a família identifica o pouco enfoque em disciplinas para além de Português e Matemática e a proposição de conteúdos difíceis de serem desenvolvidos em casa, que seriam mais adequados para a sala de aula. De fato, ninguém parecia estar preparado para a situação, a pandemia tendo pego todos de surpresa. Os impasses de comunicação entre os pais e a secretaria da escola foram também elementos que atravancaram o processo. Somada a isso, há a natural falta de experiência pedagógica dos pais. “Professor tem que ter tato com as crianças. Eu faço a minha parte, mas eu não sou professora. A criança fica dispersa por estar em casa, quer assistir televisão, ficar no celular, fazer outras coisas, a gente perde a paciência. Ter aulas em casa exige uma rotina diferente, você tem que estar preparado para isso”, pontua Mirian.
Wagner concorda: “É uma dificuldade enorme. A gente, enquanto pais, não está preparado para essa situação. Envolve questões de tempo, organizacionais. A escola também teve uma dificuldade enorme em organizar as informações, colocar os conteúdos em ordem na plataforma. Até isso entrar nos eixos e começar a fluir, demorou um pouco”. Sua experiência profissional pode garantir uma vantagem em relação a outros pais, visto que Wagner tem atuado como professor de Matemática e Física por mais de duas décadas, mas não resolve tudo. São diversos os elementos que influenciam na captação do conteúdo pelos alunos, ainda mais se tratando de uma criança ou adolescente. “Falando como professor, a visão que eu tenho é que a criança, quando está com outras crianças, tem mais estímulos. Quando ela vê os colegas responderem às perguntas em sala de aula, participarem, ela fica mais focada, se concentra mais. Ela é estimulada a demonstrar também o que ela aprendeu”.
Além dos obstáculos causados pela mudança de ambiente, existem também as adversidades que os pais ou responsáveis encontram para transmitir e monitorar os processos de aprendizagem, Wagner pontua. “Não é só saber o conteúdo, existe a parte pedagógica. Separação de sílabas eu sei, mas como é que eu preparo isso para poder ensinar? Mesmo como professor, existe uma dificuldade enorme, principalmente quando é uma área diferente da sua especialização. A parte pedagógica é muito importante para o ensinamento, tem que preparar as aulas para dar um estímulo adequado. Preparar o ambiente, para que a criança não se distraia com facilidade…”.
Essas variáveis podem colocar o nível de aprendizado de cada aluno em patamares muito diferentes. A professora Ana Carolina Guimarães compartilhou com a BBC News Brasil o caso que tem observado em primeira mão. Em sua turma, composta por alunos de 8 a 9 anos de idade, há aqueles que já conseguem ler textos e os que ainda não dominam sequer o alfabeto. “Todos os alunos teriam que estar lendo, e não é a realidade. Percebemos que há uma carência nesse retorno às aulas e que a alfabetização foi muito afetada pela pandemia”, disse Ana Carolina à BBC.
De fato, dentre as crianças mais afetadas, estão as de 5 a 10 anos de idade, segundo uma pesquisa divulgada pela Unicef, órgão das Nações Unidas (ONU) ligado à infância. Segundo a pesquisa, das mais de 5 milhões de crianças e adolescentes que estavam sem acesso à educação no Brasil, em novembro de 2020, cerca de 40% tinham entre 6 e 10 anos de idade, tornando o Ensino Fundamental I a fase escolar mais afetada pela pandemia.
Wagner e Mirian, cujas filhas pequenas se encontram justamente nessa faixa etária, conseguem identificar os entraves que a modalidade remota impôs à educação das meninas. “Vai ficar uma defasagem. A gente vai procurar corrigir isso agora, dando continuidade ao ensinamento em casa aliado à escola”, afirma o professor.
Alfabetização infantil no Brasil recente
Em anos recentes, o Brasil vinha conseguindo melhorar alguns de seus índices educacionais de maneira significativa. Com números ainda abaixo do ideal, o país estava sendo capaz de bater as metas de desempenho, numa tendência que apontava para a queda cada vez maior da porcentagem de crianças com conhecimentos aquém do esperado para sua série, analfabetas ou fora da escola. Um levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), entretanto, apontou que a taxa de crianças fora das escolas pulou de 1,39% em 2019 para a marca dos 5,5% em 2020. Esse retrocesso é preocupante, ainda mais levando-se em conta os esforços que estavam sendo feitos para a inclusão dessa parte da população nos programas educacionais nacionais. Segundo o economista e pesquisador da FGV Marcelo Neri, “o grupo correspondente ao Ensino Fundamental I era a faixa etária em que a gente havia tido grandes avanços não apenas na universalização, a partir dos anos 1990, mas também na aprendizagem”.
Neri explica que as dificuldades existentes em meio a essa faixa etária estão relacionadas ao pouco domínio das tecnologias digitais que uma criança tem em comparação a um adolescente, por exemplo; além, é claro, do pouco domínio da linguagem escrita, por se tratar justamente da fase de alfabetização. Há ainda o fato de que a pobreza e a falta de acesso são impeditivos mais acentuados em meio a esse grupo do que em outros. “A criança de 5 a 9 anos tem menos intimidade com a internet que um adolescente e ela é, em geral, mais pobre – o ápice da pobreza no Brasil é nessa faixa etária”, Neri afirma.
Dessa forma, não é surpresa para os pesquisadores que as taxas de evasão se mostrem mais acentuadas em regiões rurais, remotas ou mais carentes do país (a evasão escolar infantil tem sido mais pronunciada nas regiões Norte e Nordeste do que Sul e Sudeste). Ou que esses índices afetem mais destacadamente a população negra, que é desproporcionalmente afetada pela desigualdade social e de renda.
Além da questão da evasão escolar, as dificuldades impostas pelo período de pandemia também colocam em risco os avanços que estavam sendo alcançados dentro da sala de aula. Segundo dados de 2019, cerca de 57% dos alunos brasileiros do 5º ano do fundamental I foram avaliados com conhecimentos adequados em língua portuguesa para sua série, um aumento de 7 pontos percentuais em relação aos índices de 2015. O tempo longe da sala de aula pode resultar em pioras significativas entre os alunos dessa faixa etária, bem como àquela relativa aos primeiros anos de alfabetização, grupos que haviam apresentado taxas crescentes de aprendizado ao longo dos últimos 40 anos.
Analfabetismo ao redor do mundo
Segundo dados da UNESCO de 2018, mais de 750 milhões de pessoas ao redor do mundo não sabem ler ou escrever. Dois terços dessa população são compostos por mulheres, a maioria delas sendo crianças, adolescentes ou jovens adultas. Cerca de 75% das pessoas analfabetas do mundo (número que atinge a marca de meio bilhão de indivíduos) estão concentradas em 10 países: Indonésia, China, Bangladesh, Índia, Paquistão, Etiópia, Egito, República Democrática do Congo, Nigéria e Brasil.
Em 2019, a taxa de analfabetismo no Brasil chegava ao índice mais baixo de nossa história: 6,6% da população, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Educação. Esse número representava 11 milhões de brasileiros à época.
É possível também observar que a maior parte dessa população se concentra em zonas rurais, e nas regiões Norte e Nordeste, como revelam dados do IBGE. Existe um componente racial muito demarcado também, uma vez que a taxa de analfabetismo entre os brancos era de 3,6% em 2018, em comparação a 9,1% entre a população preta e parda. Dentre os idosos, essa diferença aumenta mais: cerca de 10,3% dos idosos brancos com mais de 60 anos são analfabetos, ao passo que o mesmo índice atinge os alarmantes 27,5% da população idosa preta ou parda.
O Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado pela Lei 13.005/2014, estabelece diretrizes para o melhoramento da educação no país até 2024, desde o ensino infantil até a pós-graduação. O plano é decenal por força constitucional, ou seja, sua vigência ultrapassa governos. Uma das metas traçadas é a de reduzir a taxa de analfabetismo no Brasil, de forma que, segundo a lei, em 2015 o país deveria ter atingido os 6,5% de analfabetos. Apesar das melhorias crescentes com relação a essa métrica, o Brasil se mostra atrasado em relação ao plano. O objetivo é que em 2024 a taxa de analfabetismo chegue a zero. É possível dizer que a pandemia impôs ainda mais entraves para a concretização dessa meta.
Esse é um propósito compartilhado também por instituições internacionais. Em 2015, a ONU proporcionou a assinatura do plano de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, também conhecido como Agenda 2030, coleção de 17 metas globais a serem atingidas até o ano de 2030. A Agenda foi assinada por 193 países, incluindo o Brasil, num compromisso que propõe a ação de governos, instituições, empresas e a sociedade em geral para o enfrentamento dos maiores desafios do mundo contemporâneo. Dentre as metas estipuladas, o objetivo número 4 prevê o acesso à educação de qualidade para todos. Incluída nesse item está a ideia de acabar com o analfabetismo no mundo.
De fato, a importância de um mundo alfabetizado não pode ser exagerada. Uma pesquisa da Universidade Estatal Russa de Humanidades relaciona diretamente o nível de alfabetização de uma sociedade com a sua capacidade de desenvolvimento e seu nível de bem-estar social. Segundo os pesquisadores que conduziram o estudo, “povos alfabetizados podem ser caracterizados por um maior nível de inovação, que proporciona oportunidades para modernização, desenvolvimento e crescimento econômico”.
Sendo assim, é imprescindível que os órgãos responsáveis se ocupem de reverter o atraso que a pandemia impôs à educação individual de adultos, adolescentes e crianças, bem como ao país como um todo. Segundo Anna Helena Altenfelder, presidente do CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), as ações que deverão ser tomadas devem ser encaradas com urgência e seriedade, uma vez que o grupo mais afetado pelo atraso educacional em 2020 foi justamente aquele na fase de alfabetização. Entretanto, Altenfelder parece otimista que será possível reverter esse quadro: “um trabalho consistente certamente é capaz de resgatar essas competências de leitura e escrita. (…) É algo possível e que sabemos fazer no Brasil – temos experiência com classes de aceleração de aprendizagem e correção de fluxo escolar (ou seja, de adequar a idade da criança à série que ela deve cursar). Mas as escolas não farão isso sozinhas, os professores vão precisar de apoio. As redes e secretarias de ensino vão ter que se organizar de forma diferente. E será necessário haver a coordenação técnica e financeira do Ministério da Educação em projetos de apoio aos municípios (que concentram a maior parte das escolas de fundamental 1 no país)”, ela afirmou à BBC. Dessa forma, será possível voltar a vislumbrar um futuro próximo em que crianças de 6 a 10 anos sem acesso à educação sejam cada vez mais a exceção no Brasil.