Órfãos da pandemia: uma geração marcada pela Covid-19
Por Daniele Haller, Jornalista – Alemanha
daniele.haller@mulheresjornalistas.com
Editora Chefe: Letícia Fagundes, Jornalista
Crianças e jovens estão no grupo que menos aparecem entre as estatísticas de morte pela Covid-19, no entanto, essa geração é uma das mais afetadas pelo vírus, perdendo pais e familiares para a doença
Quando a pandemia iniciou no Brasil, em março de 2020, as consequências do vírus já eram praticamente previstas e inevitáveis, como o colapso no setor de saúde, falência de empresas e o aumento de vulnerabilidade da população, mas, um fato o qual talvez muitos ainda não contavam, era como a crise sanitária deixaria uma herança de orfandade que se espalha pelo mundo todo.
Ainda não há um número exato da quantidade de crianças e jovens que perderam mãe, pai ou ambas as partes, mas de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), esse número pode chegar a 45 mil crianças e adolescentes. No último mês de abril, em audiência na Câmara de Deputados, parlamentares exigiram que políticas públicas fossem urgentemente criadas para amparar os órfãos da pandemia, defendendo os direitos estabelecidos pelo Estatuto da Criança (ECA), estabelecendo mediadas de suporte financeiro e acolhimento de menores que perderam não apenas os pais, mas também os responsáveis. Ainda em março desse ano, foi apresentado no Senado um projeto de lei que sugere pensão a menores e adolescentes que perderam os pais em virtude da pandemia.
Um dos pontos que contribui ainda para o aumento de crianças órfãos, é o número de morte de mulheres após o parto, em decorrência da Covid-19. Somente em 2021, o número de mulheres que foram a óbito após darem à luz já é maior que do último ano, com um aumento de 145% por semana, com relação a 2020. Os dados são do Observatório Obstétrico Brasileiro Covid-19, que afirma ainda que, entre o percentual de morte de mulheres grávidas e puérperas, 36% faleceram após o parto.
Junto com o aumento no número de órfãos, aumenta também o trabalho nos Conselhos Tutelares espalhados por todo o Brasil. No caso de morte dos pais ou de uma das partes, procurar o Conselho Tutelar é o primeiro passo a ser dado para que o menor órfão possa ser auxiliado e protegido da melhor maneira possível. O Instituto Mulheres Jornalistas conversou com a Fabiane Scherer, conselheira titular do Conselho Tutelar de Canoas, Rio Grande do Sul, para saber sobre o caminho e as medidas legais para os responsáveis por essas crianças e adolescentes.
MJ- Quais os primeiros procedimentos que devem ser feitos pela família quando uma criança perde as duas partes, pai e mãe?
Fabiane Scherer – O primeiro procedimento que a família faz, quando perdem as duas partes, pai e mãe, seria procurar o Conselho Tutelar para melhores encaminhamentos e uma proteção melhor. Como premissa básica, normalmente, as famílias procuram o Conselho Tutelar, onde a gente vai atender essa família e identificar grau de parentesco, que a gente chama de familiar extenso, vínculo consanguíneo, e na última possibilidade, se não existir vínculo consanguíneo, a gente pode proteger essa criança com o vínculo que a gente chama “comunitário”, com uma pessoa que convive, que tem afeto, que tem zelo. Mas a premissa básica mesmo é o vínculo consanguíneo. Normalmente, ficam com os avós paternos ou maternos, e a partir daí a gente atende, faz os encaminhamentos. A gente encaminha para a defensoria pública ou constitui um advogado particular para regulamentação de guarda dessa criança, bem como outros benefícios, se ela tiver, para uma proteção melhor, e a gente também encaminha a família para a rede de proteção, que é uma rede de apoio do município onde a gente tem diversos órgãos públicos capazes de atender essa criança e dar um suporte melhor às famílias. Então a gente encaminha a partir das demandas que a gente identifica no atendimento. Normalmente, a gente encaminha para o CAPS, que é o Centro de Atenção Pisco Social, para as crianças trabalharem a parte psicológica, também para o CREAS, Centro de Referência em Especialidade de Assistência Social, ele faz o trabalho de fortalecimento de vínculos, então ele fortalece o vínculo familiar e também ele trabalha as questões de direito violado, as questões de entendimento, o que pode estar fazendo para proteger melhor a criança. Normalmente a criança que perde ambas as partes, pai e mãe, fica com seus avós, na ausência ou na negativa dos avós, a gente vai procurando sempre um familiar extenso consanguíneo.
MJ- Quando a criança tem familiares, como avós e tios, mas estes não têm condições financeiras de mantê-la, a criança é enviada então para a adoção?
Fabiane Scherer – Quando a criança tem familiares como avós e tios, mas esses não têm condições financeiras ou afetiva de ficar, a gente sempre tenta procurar um outro familiar extenso consanguíneo. No acolhimento institucional que a gente chama, ele é a última estância, ela não vai diretamente para a adoção, nós procuramos por um tio, avós, primos, na ausência destes, a gente ainda faz uma última tentativa, que é o vínculo comunitário, que é aquela pessoa que criou ela desde pequeno, que conviveu com ela, evitando sempre o acolhimento institucional, por entendermos que o melhor local é com a família. Claro que há suas exceções, obviamente, não tendo essa possibilidade, a gente encaminha sim para o acolhimento institucional. Mas dificilmente ela vai direto para adoção, ela vai passar por toda uma triagem, a criança fica no acolhimento e aí a parte do judiciário, juntamente com o abrigo, com a casa de acolhida, eles passam a procurar familiares dentro do seu grau de parentesco, que possam, a medida que vai passando o tempo, exercer esses cuidados, mas na negativa, depois de todas possibilidades esgotadas pelo judiciário, que não tiver mais possibilidade alguma, aí sim essa criança vai para adoção.
MJ- Caso a criança não tenha nenhum familiar, além dos pais que faleceram, quem é responsável por tomar as medidas de proteção desses menores?
Fabiane Scherer – Caso a criança não tenha nenhum familiar, não tenha nenhuma possibilidade familiar, nenhuma possibilidade de vínculo comunitário, as medidas de proteção são tomadas pela justiça, a dever do Estado, baseado no estatuto do ECA. Estatuto da Criança e Adolescente, então todas nossas ações são baseadas no estatuto do ECA e, infelizmente, se não há nenhuma possibilidade, essa criança vai para o acolhimento Institucional e, a partir dali, fica a critério do Estado fazer todos os encaminhamentos, o judiciário juntamente com o abrigo, para depois identificar se ela permanece ou vai para adoção, se ela é apta à adoção, apta a apadrinhamento, essas são as medidas de proteção desses menores, fica a cargo do Estado mesmo.
MJ- Com os inúmeros casos que têm ocorrido em consequência da Pandemia, já existe ou está sendo criada alguma medida que busque proteger e auxiliar esses menores que perderam os pais? Caso sim, como procede?
Fabiane Scherer – A gente tem inúmeros casos em consequência da pandemia, infelizmente. Já tem uma medida, que é a medida de proteção emergencial que a gente chama, que é proteger com um familiar extenso, que preconiza o ECA, mas a medida e encaminhamento para a rede proteção. E a gente passa acompanhar a família de maneira mais sistemática, ela passa a ter um acompanhamento mais efetivo, esse é o papel do Conselho Tutelar, aplicar a medida, encaminhar para o judiciário o fato sobre essa criança, para ela ter uma atenção melhor, e encaminhar para a rede de proteção. A função do Conselho tutelar é justamente essa, requisitar os serviços e encaminhar para a rede de proteção, fazer com que os órgãos de proteção trabalhem em cima dessa criança ou adolescente, a partir das demandas que ele tiver. Então, a gente encaminha para o CAPS e fazemos um trabalho em equipe, que chamamos de trabalho de rede. O CAPS nos traz informações maiores, as limitações, as deficiências da criança, o que ela realmente necessita, e a gente passa aqui a proteger e atender ela melhor. Existem casos que a gente consegue resolver dentro do conselho tutelar, como o ECA e as aplicações de medidas que a gente tem aqui, e que na maioria das vezes funciona, e em outros casos, a gente acaba encaminhando para o judiciário para que ele aplique medidas mais efetivas, conforme ele julgue dentro da lei.
MJ- O aumento de número de órfãos que a Pandemia, infelizmente, tem aumentado, já reflete ou pode refletir, em breve, nas filas de adoção de todo o país?
Fabiane Scherer – Infelizmente, tem aumentado o número de órfãos, claro, mas acredito que não pode refletir tão grande nas filas de adoção. No nosso País, o processo de adoção é muito burocrático, acredito que tem que ter também essa burocracia, afinal, estamos lidando com vidas, mas a fila de adoção é gigantesca e às vezes empaca num processo burocrático do judiciário, dos requisitos, enfim, tudo mais, e as crianças acabam passando mais tempo lá dentro para adoção. A fila da adoção já é enorme, existe o cadastro nacional da adoção, mas normalmente as crianças que ficam órfãos de pai e mãe, a grande maioria, fica já com seus familiares extensos. Infelizmente, pequena parte da população que tem mais informações, procuram o auxílio do Conselho Tutelar, mas a grande maioria não procura por achar que o conselho tutelar é um bicho “Papão”, por achar que o conselho tutelar vai tirar a criança e colocar num abrigo. O senso comum do nosso País acaba impedindo que a gente consiga proteger melhor nossas crianças, ou seja, encaminhar melhor essas crianças para que no futuro ela não seja um adolescente revoltado ou até mesmo um adulto perdido nas suas percepções, no seu desenvolvimento. Infelizmente, também tem esse embate de preconceito contra o conselho tutelar.
MJ- Quando uma família se interessa em adotar uma criança que perdeu os pais para a Covid-19, quais os procedimentos que deve fazer para uma possível adoção? Essa família precisa aguardar na fila de pessoas interessadas em adotar crianças ou existe algo que possa facilitar esse processo para que a criança vá diretamente para essa família?
Fabiane Scherer – Quando uma família se interessa em adotar uma criança, infelizmente não existe um procedimento que seja mais viável e mais rápido do que o procedimento legal da adoção. A pessoa que tem esse desejo, ela vai entrar para a fila da adoção, ela vai fazer todo esse procedimento. Normalmente, quando a família identifica o órfão que perdeu seus pais devido a pandemia, a criança já está com seus familiares extensos. Então, o procedimento legal que essa família deve fazer para a adoção, é regulamentar a guarda dela, entrar com um processo judicial de regulamentação de guarda para se tornar o guardião legal dessa criança ou adolescente, e ter a responsabilidade legal sobre ele. Infelizmente, a grande maioria não faz esse procedimento, mas se tiver que entrar para a adoção, não existe um caminho mais rápido, é o cadastro nacional da adoção.
MJ- O Brasil ainda vive um alto índice no número de infecções, o que significa que esse número de órfãos pode continuar aumentando por um tempo indeterminado. Quais medidas você acredita que são essenciais e urgentes para que essas crianças não sofram mais ainda além da perda dos pais?
Fabiane Scherer – Infelizmente, a gente conta com governantes que não entendem pelo lado do desenvolvimento social, da justiça social, da vulnerabilidade social da grande maioria da população, a gente enfrenta isso muito claramente. Gostaríamos que existissem medidas essenciais e urgentes, mas infelizmente a gente não conta com um efetivo de um trabalho de rede, de um programa que, por exemplo, que viesse lá do hospital para nós, que aquela criança perdeu a mãe, perdeu o pai, a parte da assistência social do hospital poderia fazer esse informativo para nós. A gente entende também que são inúmeros casos, mas a gente gostaria, seria um sonho, que tivéssemos de fato todos os órgãos de proteção ligado ao conselho tutelar, seria perfeito, porque a gente conseguiria saber o que se passava com aquela criança.
Normalmente, a gente recebe informações de crianças vindas do hospital quando é uma violação diretamente com o menor, não recebemos informações da criança no geral, de óbitos na família ou alguma coisa a mais. Não tem aquele olhar específico, se essas informações viessem do hospital, se faleceu a mãe ou pai, sobre as condições daquela criança, esse trabalho de rede seria a medida mais efetivo. Nosso trabalho fica um pouco engessado nessa parte, a gente não consegue fazer um efetivo melhor, justamente por não ter um apoio maior da rede de proteção, que seria a porta de entrada para todas as nossas crianças, mas infelizmente não temos esse trabalho de rede efetivo, nós só temos esse trabalho quando já aconteceu alguma coisa com a criança ou quando a gente precisa proteger o menor emergencialmente. A medida mais emergente seria o funcionamento total do trabalho em rede dos órgãos públicos, que infelizmente não dá muito certo, mas a gente tem esse desafio.
Enquanto os órgãos tentam se adaptar a essa realidade e atender essa demanda que tem crescido exponencialmente, outras pessoas tentam desenvolver meios de amenizar a dor dessas crianças e jovens que passam tão cedo por essa perda. O Projeto “Mães que acolhem” é umas das iniciativas que surgiram diante dessa difícil situação. Pais e jovens que se uniram com o propósito de atender, dentro do possível, os órfãos da pandemia. A advogada Renata Paschoalini Arkchimor é uma das coordenadoras desse projeto e contou um pouco como tem sido o trabalho desenvolvido pela equipe, que atua em Jundiaí, São Paulo.
MJ- O que é o projeto “Mães que acolhem”?
Renata Paschoalini- O Projeto “Mães que acolhem” é um projeto que acolhe e apoia crianças e jovens até 21 anos que ficaram órfãos em decorrência da Covid-19. Ficaram órfãos de mãe, de pai ou de ambos. A gente dá todo apoio emocional, psicológico, médico, odontológico, apoio material, tudo que essas crianças e jovens precisarem após a orfandade.
MJ- Como surgiu a Ideia e a criação do projeto?
Renata Paschoalini- A ideia do projeto surgiu após dois meninos, um de 20 e outro de 10 anos, ficarem órfãos de mãe, pai e avó em um prazo de 15 dias. Esse menino de 20 anos trabalha no colégio que o filho de uma das organizadoras estuda, e os próprios jovens do colégio começaram a querer fazer um grupo para ajudar esses meninos. Ela, como mãe de uma dessas meninas, pensou em criar um grupo de Whatsapp com outros pais, aí ela montou um grupo, eu também entrei, e quando percebemos já tínhamos mais de 200 pessoas participando. Então a gente começou a se organizar e montamos uma coordenação do grupo. Hoje somos oito coordenadores.
MJ- Quem faz parte da organização? Trabalham em conjunto com algum órgão?
Renata Paschoalini- Nós somos oito pessoas na coordenação, sete mulheres e um homem, temos advogadas, psicólogas, ele que é psicólogo social, assistente social, temos várias profissões entre os oito (coordenadores). Nós já somos um grupo de mais de 350 pessoas, que são voluntários que nos ajudam. Temos alguns apoiadores como o grupo Anchieta, que é um centro universitário aqui de Jundiaí que nos auxilia muito. Temos os “Amigos da sacolinha” que é uma outra associação que nos auxilia e a “Casa de Nazaré”. Hoje, contamos também com o apoio do Fundo Social de Solidariedade, aqui da cidade de Jundiaí.
MJ- Como funciona o “Mães que acolhem”?
Renata Paschoalini- O projeto funciona da seguinte maneira; nós somos notificados pela mídia dos casos de recentes órfãos aqui na cidade e na região, também através do Hospital São Vicente e do Hospital Universitário aqui de Jundiaí, que são os hospitais públicos. Eles nos notificam dos casos de falecimento onde havia filhos, crianças e jovens até 21 anos. Eles nos informam e nós, automaticamente, já entramos em contato com as famílias.
MJ- O projeto recebe alguma ajuda financeira de algum órgão governamental ou é mantido pelos administradores e doações?
Renata Paschoalini- Nós não recebemos ajuda de nenhum órgão governamental e somos mantidos apenas pelas doações dos voluntários e do nosso trabalho, que também é um trabalho voluntário.
MJ- Vocês têm sofrido alguma dificuldade para manter o projeto?
Renata Paschoalini- Na verdade, não estamos tendo dificuldades para manter o projeto, muito pelo contrário, estamos tendo muito apoio. A sociedade civil recebeu muito bem o projeto e já temos muitos voluntários nos apoiando. As pessoas podem também nos apoiar através do exercício da sua profissão, então nós já temos muitos psicólogos cadastrados para atender essas famílias, nós temos médicos, dentistas, enfim, todas essas profissões que podemos precisar para apoiar essas crianças. Então as pessoas têm nos ajudado muito, inclusive financeiramente.
MJ- De que forma as pessoas podem ajudar o projeto?
Renata Paschoalini- As pessoas podem nos ajudar através de doações. As nossas doações ininterruptas são as doações de leite, de preferência em pó integral, achocolatado e bolachas, mas também outros itens, porque doamos cestas básicas para essas famílias, já temos um certo estoque. Também recebemos ajuda através de dinheiro, através de um PIX que a pessoa pode ter acesso a partir da nossa página do Instragram. Ela entra em contato e nós retornamos com os dados para depósito. Nossa página é o @mães_que_acolhem.