O voto é mais que útil
Por: Marta Dueñas
E-mail: marta.duenas@mulheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
Política é importante sim e os políticos não são todos iguais. Acabamos de passar o tão esperado 2 de outubro e o voto brasileiro se mostrou útil, inútil, subversivo e conservador. O voto é mais que útil, é a nossa expressão no exercício da política e tem sido um raio-x da história sócio cultural nacional. O nosso país vota com seu passado na mente, nas mãos, no lombo e no DNA. Explorados e exploradores.
A vitória do candidato Lula pode parecer frustrante para boa parte dos simpatizantes que esperavam uma vitória em primeiro turno. Não era apenas uma vitória, esperava-se um bilhete de expulsão do atual presidente. E as urnas demonstraram isso: maior número de votos de um presidente na história do Brasil, primeira vez que um presidente em reeleição perde no pleito, aumento das bancadas do PT, eleições importantes de representantes indigenistas, LGBTQIA+ e representantes de projetos populares e de busca por justiça social.
O problema é que, junto disso, temos a eleição de um Senado extremamente conservador com diversos nomes de ultra direita. Também vimos ser eleitos ex-ministros investigados e citados em escândalos, políticos como Salles que defende que a boiada passe pela Amazônia, Pazuello que claramente foi o pior gestor de saúde pública que já tivemos e Damares Alvez, mulher que propaga uma mentalidade horripilante calcada em preconceitos, desumanidades. Alguém que define: meninos vestem azul, meninas, rosa. São personagens da CPI, das rachadinhas, das milícias. Pessoas investigadas por assassinato, extorsão, corrupção. Todos num campo político de extrema direita. Creio que este tenha sido o banho de água fria de muitos brasileiros. Esse balde também deu o sabor amargo ao dia pós eleição. Além disso, a apuração dos votos construiu aquela velha narrativa de que um saiu marcando gol enquanto outro precisou correr atrás de virar o jogo e “não virou”. Virada essa que seria representada por uma vitória de primeiro turno encerrando o pleito. De alguma forma, estamos viciados em jornadas e narrativas e isso nos coloca na cena como se fosse uma história real. Bolsonaro não ganhou. Teve mais votos do que se esperava segundo as pesquisas, mas vai além.
Seguiremos assistindo descalabros até o segundo turno. Mal iniciou a semana e o atual governo já anunciou a antecipação de valores do Auxílio Emergencial. Medida claramente eleitoreira. Justo daqueles que tanto sustentam que a esquerda sempre ganhou as pessoas por meio de barganhas e esmolas; que é a maneira como pessoas de extrema direita encaram projetos e programas sociais. Certamente, é como manejam o Auxílio dentre outros raros programas feitos neste gestão.
E aí vem algo importante. Estamos estarrecidos de ver crescer o chamado bolsonarismo, que nada mais é do que uma posição extremista cujos prejuízos às estruturas públicas, entidades e à democracia estão sendo grandes e seguirão. Nós não estamos discutindo apenas modelos de gestão de uma sociedade. Estamos garantindo que exista uma sociedade plural, possível, democrática e verdadeiramente livre. Liberdade, no caso, não de poder falar atrocidades nas redes sociais, mas de existir! A liberdade que a elite tanto odeia nos escravos. A liberdade que os homens tanto temem nas mulheres. A liberdade que os enrustidos tanto combatem nos homossexuais e transexuais.
É o Brasil de sempre, mas agora forjado em novas gerações e com adeptos de outras classes sociais graças à falta de cultura e de educação; e ao esforço surreal de parte das igrejas conservadoras que se movem por interesse econômico. Esse país de sempre é o seguinte: maior escravagista do mundo, menos inovador, país com maior dismorfia coletiva (que mais faz plásticas, mais consome anfetaminas e emagrecedores, campeão em silicones), país topo do ranking em violência contra as mulheres e um dos campeões em casamentos infantis (leia-se pedofilia). O voto foi e será feito por essas mãos. Sejam elas exploradas ou exploradoras.
Embora vemos um bloco de extrema direita formado e se consolidando em áreas importantes (como o Senado, parte do congresso e alguns governadores de estado), os eleitores não necessariamente são ultra direitistas. Esses eleitores são pessoas comuns, nem todos andam com trajes da KKK. São resultado de uma sociedade de consumo, resultado de um estreitamento do olhar cultural, resultado de um projeto de educação fraco e vítimas e algozes. A polarização não é feita pelo PT e Bolsonaro. Essa divisão está mais para quem manda e quem é obrigado a obedecer. E se tem alguém que não se encaixa nessa dicotomia é porque navega naquele bolo bem formado desde a época do capitão do mato. Muita gente sem consciência de classe, sem identidade de gênero, sem percepção de raça. E tudo bem, infelizmente. Esse grupo que não entende que o fato de pisar na Casa Grande não os faz viver como senhores de engenho. É o gerente da fábrica que é mais exigente e por vezes cruel do que um acionista. É o sujeito médio que, com medo de se ver pertencente a uma vila de operários, age como se fosse da dinastia de herdeiros de terras e benefícios do Brasil.
Somos ainda resultado desse país construído com sofrimento e exploração. Porque assim se formou o Brasil: matando gente, tomando terras, criando benefícios para “mamar no governo”. E aqui cabe explicar a mamada original: os escravocratas ao cobrar do Estado recém formado uma indenização por terem que libertar escravos. E até hoje tem gente que vê o trabalhador como um objeto seu, que lhe custa caro, que lhe dá pouco pelo tanto de moedas que paga. É preciso crescer e elaborar que os então objetos se tornaram sujeitos com um governo que pratica justiça social. Isso irrita!
Estamos lidando com irritados, que possuem pés no passado. Não se movimentaram o suficiente como gente para entender que há práticas e conceitos que não são mais possíveis. Isso fere internamente essas pessoas.
Estamos lidando com feridos. Com homens que batem em mulheres porque elas não se comportam como seus objetos. Com pessoas que espancam transexuais porque de alguma maneira a existência deles perturba, portanto é melhor aniquilar. Gente que manda matar quando uma comunidade percebe como é explorada pela milícia.
A ultra direita é real, ela vive no real. Não tem camadas. Aniquilar para eles é exterminar. Matar. Espancar. Estuprar. A ultra direita não gosta da cultura porque a cultura faz camadas na gente. Nos coloca em novos patamares de pensar e fruir. Ninguém sai dum show de Chico Buarque e sente gozo em puxar uma arma e disparar. O gozo se dá pelo espetáculo. A realidade é dura demais e viver sem poder transpô-la é difícil. Enquanto muitas pessoas votam para poder transpor a fome; outros votam para ter o direito de matar via fome ou via arma.
Quando dizem que o trabalho liberta eu só penso em como o brasileiro aprendeu a lição do que é trabalhar. O que liberta é a educação, a cultura, a leitura. O trabalho nos constitui, mas somente quando já somos livres para escolher o que fazer e como fazer.
O voto é mais que útil. É nossa maneira simbólica de aniquilar um governo sem habilidade econômica e sem planos sociais para a maior parcela dos brasileiros. Vamos deixar a frustração para trás, afinal o primeiro turno deu vitória ao projeto mais humano. Nossa arma é o voto, nossa marcha é dança plural, livre e criativa.