Por Daniel Israel, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

Caro(a) leitor(a),

Antes de tudo, agradeço a você que, pela primeira vez no site do Instituto Mulheres Jornalistas (IMJ), me lê por meio deste texto de opinião. Nesta introdução à minha estreia na página do IMJ, eu também agradeço à Letícia Fagundes, pelo convite, à Juliana Monaco e demais responsáveis por este espaço. Tenho 37 anos, sou carioca e trabalho como jornalista desde 2011.

A oportunidade de colocar nossas ideias para um público amplo e diverso vem a calhar para o que, na minha opinião, é um momento que mistura tensão, tristeza e, até certo ponto, incredulidade. Falo especificamente sobre o conflito em curso entre Israel e o Hamas, iniciado no último 7 de outubro, após a invasão do grupo militante palestino, que desde 2007 governa a Faixa de Gaza, ao sul de Israel. Gaza é considerada a maior prisão a céu aberto do mundo, 355 km2 onde vivem duas milhões de pessoas, tem seis campos de refugiados e está bloqueada por terra, mar e ar por Israel e o Egito há 16 anos.

Enfim, Israel é um tema para judeus de qualquer parte do mundo, como eu aqui no Brasil. Desde cedo, termos como sionismo, Theodor Herzl, autodeterminação nacional, muito mais do que palavras-chave, operam nas nossas vidas no sentido de anular ou reforçar seus opostos imediatos, ora o que o público tem consolidado sobre o tema, ora pelas fontes que o mesmo público usa para se informar, tendo entre os contrapontos Palestina, Territórios Ocupados, terrorismo. É desse caldo transbordante que eu venho, uma bisavó nascida em Jerusalém ainda sob domínio otomano, na primeira década do século 20, e há 73 anos com famílias dos lados materno e paterno que somam dezenas de parentes espalhados por Israel. Possuo e não deixarei de ter ligações sanguíneas, afetivas com a região.

Ainda assim, foi também o desejo de definir a minha consciência pelo que acredito que optei por outro caminho: o direito à existência de Israel precisa coexistir com a realização da soberania palestina, e vice-versa.

Foi isso o que me motivou, passada uma década do ano que morei em Israel, a viver por três meses em Belém, entre 2016 e 2017, sendo o segundo brasileiro judeu a integrar um programa que periodicamente leva estrangeiros de dezenas de nacionalidades para vivenciar a Ocupação israelense desde dentro. Tomar um lado não inviabiliza ou não deveria inviabilizar a capacidade de observar e compreender determinado contexto; mais longe, mais amplo, e melhor.

Contabilizar quantos palestinos passavam pela primeira de quatro catracas do Checkpoint 300 a cada meia-hora não tirou de mim a essência dessas convicções sobre Israel e sionismo, as quais carrego até hoje. Duas mil, 2.500, 3 mil, 4 mil pessoas… Muitas delas, pelo próprio passado ou por alguém na família que teve alguma atitude ilícita ou foi preso em Israel, tinham o dia de trabalho perdido, e junto com ele cerca de R$ 2 mil pagos para obter uma carta de trabalho do empregador israelense. De dentro de uma cabine blindada, não mais do que dez militares por turno selavam a sorte daquela maioria de homens. Daquele ponto, no qual me revezava com colegas e se estendia à saída onde ficava o ponto de ônibus para levar os trabalhadores palestinos até Jerusalém, eu era um observador anônimo às milhares de pessoas que passavam por mim durante quatro horas, duas a três vezes por semana. E ao vê-las fazendo a reza matinal, além de homens, majoritariamente muçulmanos, as preces em árabe tocavam também o meu coração. Ainda que eu fale esse idioma o bastante para dar “oi” e “bom dia”.

Acervo Jornal do Brasil | Imagem: divulgação

Lembro a você que desde a II Intifada (iniciada em 2000), Israel ampliou sua presença na Cisjordânia, por meio da construção de assentamentos (eram 147, no período que vivi em Belém, fora 90 outposts, ilegais até de acordo com a Suprema Corte local), Checkpoints e o muro, que desde o início de sua construção, em 2002, avança sobre a Linha Verde (estabelecida em 1949 e violada após a Guerra dos Seis Dias, terminada 18 anos depois).

Em Belém, o monitoramento que eu fazia incluía visitas a escolas de ensino básico obrigadas a conviver com rondas de militares de Israel dentro de seus blindados estacionados nos pátios externos. Certa vez, eu e um colega de trabalho fomos informados que, não fabricando o próprio cimento, os palestinos, além de estarem sujeitos a exportar esse insumo de Israel e da Jordânia, encontravam resistência de beduínos locais contrários à instalação de uma planta industrial num vilarejo rural a meia-hora do centro da cidade. Visitamos os beduínos para saber seus motivos, como poderíamos ajudá-los. Por conta própria, fui até a sede da empresa responsável pelo projeto dessa fábrica, em Ramala; na sala dele, o diretor comercial da companhia me apresentou a um vídeo no qual aqueles beduínos, que eu tinha conhecido e tomado chá debaixo de suas tendas, e colonos judeus de um assentamento próximo se opunham ao projeto.

Essas e tantas experiências, porém, não tinham no jornalismo uma referência contundente, próxima, afim à minha busca enquanto profissional de imprensa. Eis que, passados alguns anos, já de volta ao Brasil, eu conheci o legado de Helena Salem (1948-1999), tida como a primeira jornalista brasileira a trabalhar como correspondente de guerra. E esse pioneirismo começou justo na Guerra do Iom Kipur (1973), quando Israel foi atacado por Egito e Síria. O episódio que guarda tantas semelhanças com o conflito a que me referi no início deste texto: estão separados por exatos 50 anos, em 2023 já no início de Sucót, em meio a um trauma nacional que se recristaliza tanto do lado israelense quanto agora do palestino, numa escalada beligerante que não interessa a ambos os povos – que como em todas as guerras são as maiores vítimas, junto com a verdade.

Numa época em que ser formado em Jornalismo não era pré-requisito para trabalhar na imprensa, Helena, já formada em Ciências Sociais e depois de trabalhar na editoria Internacional do Jornal do Brasil, fazia pós-graduação na Itália quando veio à tona a guerra. Ficou baseada no Cairo, participando do esforço do jornal carioca a partir do dia 14 de outubro de 1973, embora seu nome não aparecesse na assinatura das matérias – apenas a cidade de onde escrevia. Tinha ascendência sefardita, filha de judeus turcos e, na década de 1980, passara a conjugar esse trabalho ao de crítica de cinema. Para mim, a referência a Helena, que em 1973 tinha 25 anos, me ilumina não só por seu pioneirismo, mas por sua capacidade de enxergar, como brasileira, judia e jornalista, muito além do esquematismo que tenta doutrinar os judeus a uma submissão, em Israel e nos demais países onde vivemos, para acatar sobretudo a relação que o Estado Judeu mantém com os palestinos.

O legado de Helena Salem sobre o tema pode ser conhecido pelos livros que ela publicou, “Palestinos, os novos judeus” (Eldorado, 1977), “O que é questão palestina” (Brasiliense, 1985) e “Entre Árabes e Judeus: uma reportagem de vida” (Brasiliense, 1991); este último resultou da cobertura que a jornalista fez em outubro de 1973. Num texto profundamente afetivo, o também crítico de cinema Carlos Alberto Mattos reproduziu em seu blog o que tinha publicado sobre a colega de profissão na revista “Filme Cultura”. Já no site da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, é possível acessar o arquivo com a cobertura que o JB fez sobre o conflito.

Quando penso nas linhas que ela deixou à posteridade, me lembro do que me contou Ayed Morrar, liderança palestina que se tornou internacionalmente conhecida após o lançamento do documentário “Budrus” (2009), dirigido pela cineasta brasileira Júlia Bacha. Autora de outros longas sobre Israel e Palestina, Júlia instigou em mim o desejo de conhecer essa figura central para a resistência não-violenta no vilarejo que dá título ao filme. Em seguida à visita que fiz na sede da empresa, em Ramala (capital da Cisjordânia e sede da Autoridade Nacional Palestina), fui até Budrus para conhecer a dinâmica local, por uma noite que fosse.

Naquelas horas como meu anfitrião, Morrar me disse algo que para mim é definitivo: “Israel precisa mudar a sua forma de agir em relação aos palestinos enquanto for o poder mais forte”. No dia seguinte, eu vi mais uma demonstração dessa força, ao participar do replantio de oliveiras em Turmussaya, ao lado de palestinos e israelenses, de judeus e colegas internacionais que conheci durante o programa. À espreita, nas colinas ao redor, colonos judeus estavam prontos para arrancar as mudas quando encerrássemos a atividade. Com a conivência de militares de Israel que davam “apoio” à simbólica retomada dos palestinos sobre a própria terra.

As palavras de Helena e Morrar, que são ou foram também suas opções de vida, continuam ecoando fundo em mim, neste momento em que alguns atores influentes pelo mundo mais do que outros, incluindo o governo brasileiro, se mobilizam em prol de um cessar-fogo na Faixa de Gaza junto com a libertação dos reféns israelenses sob domínio do Hamas, entre outros objetivos contidos em um manifesto lançado por judeus ainda em outubro. Você pode assinar o manifesto e divulgá-lo para que a voz dos povos faça alguma diferença, por menor que seja, em Israel e na Palestina. A favor de israelenses e palestinos, em nome de um futuro que seja mais promissor para judeus, cristãos e muçulmanos.