Moda e microempreendedorismo em meio à pandemia
Por Bruna Fonseca
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Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista
Editora de conteúdo – Site MJ: Beatriz Azevedo, Jornalista
Setor da moda e vestuário enxerga crescimento no número de microempreendedores desde o início da pandemia de covid-19
Dentre as muitas consequências da pandemia que tem assolado o mundo desde o final de 2019, a elevação global da taxa de desemprego se configura, com certeza, como uma das mais trágicas. No Brasil, dados coletados pelo IBGE indicam que a taxa de desocupação atingiu os 14,1%, segundo apuração da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do mês de agosto. De fato, o contexto pandêmico viu o país atingir o recorde no número de desempregados em nossa história recente: quase 15 milhões de brasileiros se encontravam em situação de desemprego ao final do primeiro trimestre de 2021.
Em meio a essa conjuntura, outra estatística apresenta um recorde da série histórica apurada pela PNAD, iniciada em 2012: o número de trabalhadores por conta própria subiu em 14,7% em comparação ao ano anterior. Isso significou um aumento de mais de 3 milhões de brasileiros a essa classe, num total que hoje soma quase 25 milhões de pessoas.
Um dos setores que mais viu o aumento desse tipo de profissionais foi o ramo da moda. Apesar de todos os impactos sofridos por essa indústria em relação às vendas presenciais durante a pandemia, um número expressivo de microempreendedores decidiu se dedicar a iniciativas ligadas a esse segmento.
Paloma Asbahr, de 29 anos, é uma dessas pessoas. Para ela, o período de pandemia trouxe dificuldades, mas também novas perspectivas. “Eu já tinha a vontade de montar a minha marca, mas acabei deixando de lado. Fiquei desempregada há uns meses e vi nisso a oportunidade de começar a Palô de novo”. A Palô Acessórios surgiu no primeiro semestre de 2021, um e-commerce especializado na venda de anéis, colares, brincos e acessórios no geral. Com produtos de temáticas místicas e esotéricas, Paloma, que toca o projeto sozinha, procura oferecer em sua loja virtual produtos que reflitam seu gosto pessoal e o daquelas que a rodeiam. “Minhas inspirações vêm do que eu vejo no meu círculo de amigas. Procuro trazer produtos que são bem a minha cara e a cara das pessoas que me cercam.”
Antes de começar a empreender, Paloma trabalhava num emprego CLT na cidade de Limeira, interior de São Paulo. A ideia de ter o próprio negócio a instigava há anos, principalmente depois da chegada da pequena Catarina, hoje com 6 anos. “Ser CLT me limitava muito, queria a liberdade de escolher os meus horários, de estar mais perto da minha filha”.
A escolha pelo formato online da loja foi uma saída que Paloma viu para iniciar suas atividades em meio ao contexto da pandemia. É através de redes sociais, como o Instagram, que Paloma divulga seus produtos, estabelece contato com os clientes e divulga o site da marca. Segundo pesquisa do Instituto Ipsos, é provável que 47% dos brasileiros passaram a comprar mais pela internet no ano de 2020. Essa mudança significativa nos hábitos de consumo de grande parte da população se deve muito às restrições impostas pela pandemia, mas, ao que tudo indica, veio para ficar. Tanto clientes quanto empreendedores tiveram de se adaptar ao formato online, de maneira que hoje é difícil pensar em montar ou escalonar um negócio sem considerar esse aspecto.
Tanto que Paloma não tem objetivos de, num futuro próximo, montar uma loja física da Palô Acessórios: o formato online atende as necessidades de suas clientes e do seu negócio. “Daqui pra frente, é nesse sentido que as coisas caminham. As empresas que tiverem o diferencial de vender online, trazer os seus negócios pro mundo online, continuarão vendendo”, afirma.
Passagem para o digital
No caso de Débora Barreta, de 27 anos, o impacto dessa migração pro mundo digital foi sentido de outra forma. Idealizadora da Gerânio Arte, Débora começou o projeto que viria a se transformar em seu negócio ainda em 2016.
“Vejo a Gerânio mais como arte na roupa”. Formada em Design Gráfico, essa foi a forma que Débora encontrou de unir sua formação com o interesse pela arte e pela composição de estampas. Na Gerânio, Débora desenvolve peças únicas, autorais e artesanais, que vão desde camisas e vestidos a bolsas e acessórios. Ela trabalha com estamparia manual, técnica na qual as estampas são aplicadas peça por peça. Débora desenha cada um dos produtos, num trabalho contínuo de elaboração de artes e padronagens que são desenvolvidas ao longo de um rico processo criativo. Segundo ela, o trabalho “é mais focado na estamparia. Eu não lanço coleções, são sempre as mesmas modelagens. Vou introduzindo novas peças, mas o foco é sempre na estampa”.
Com inspirações que se centram no mundo da psicodelia e do surrealismo, Débora cria os produtos, recebe os clientes e gerencia a marca de seu ateliê na cidade de São Paulo, no bairro da Vila Madalena. Montado na garagem de sua casa, o ateliê fica aberto durante a semana para receber clientes com hora marcada. Antes da pandemia, a designer deixava o portão da garagem aberto aos finais de semana para que os vizinhos que caminham pelo bairro pudessem fazer uma parada no ateliê, tomar um café e olhar as peças. “Eu gosto disso, é um espaço íntimo, pessoal e acolhedor. As pessoas se sentem à vontade aqui”. Débora conta que utilizar a própria garagem como local de trabalho fez parte da estratégia que empregou para reduzir os custos do investimento no início do empreendimento: “foi o espaço que eu encontrei pra fazer isso em casa, porque não dava pra eu investir em um lugar fora, alugar um espaço”.
Ao contrário do caso de Paloma, Débora não tinha o sonho de construir uma carreira no empreendedorismo desde o início: “Nunca tive o sonho de ter o meu próprio negócio, foi algo que foi acontecendo naturalmente”. Foi apenas em 2020 que Débora passou a se dedicar exclusivamente à Gerânio, quando deixou seu emprego numa agência de marketing de influência. Até então, a paulistana seguia coordenando seu projeto organicamente, em paralelo às outras atividades que desempenhava. “O começo foi bem despretensioso. Quando começou, eu não tinha um plano de negócio, de marketing, nada”.
Até o começo do ano passado, a maioria dos ganhos da Gerânio Arte eram provenientes das feiras e eventos dos quais Débora participava. “Antes de começar a pandemia, eu não tinha nem site. Eu fazia muitos eventos e na pandemia isso acabou”. Como muitos profissionais do varejo de moda, Débora se viu obrigada a migrar seu negócio integralmente para o universo digital. Estudou o mundo do e-commerce, montou seu site e passou a investir muito mais nas redes sociais, em especial, no Instagram. Hoje, mesmo com a volta gradual das vendas no ambiente físico, grande parte dos ganhos da marca está atrelada ao site, que serve também como um catálogo que pode ser consultado previamente por aqueles que optam por se deslocar fisicamente até o ateliê.
As vendas online da Gerânio passaram pelo boom inicial do consumo pela internet nos primeiros meses de quarentena, em 2020. Hoje, entretanto, Débora já percebe que a tendência está se diversificando: “No começo, vi um aumento grande das vendas, teve uma busca frenética por produtos online, mais pessoas comprando pela internet. Agora depois de quase dois anos, eu já percebo que as pessoas estão querendo voltar a comprar pessoalmente. Acho que no geral estamos sentindo falta de ter contato social”.
Encontrando o público
Apesar das facilidades que o mundo digital proporciona, os desafios de tocar uma marca pequena seguem existindo. A vasta variedade de opções que permeiam o universo digital atual torna o ambiente muito mais competitivo, demandando desenvoltura e inovação por parte das novas iniciativas que desbravam esse setor. Giulia Ribeiro, de 24 anos, afirma que o momento da pandemia evocou, dentre os mais diversos sentimentos, também reflexões acerca de seu próprio consumo. Como ela coloca: “eu comprava muita roupa todo ano, até por ter uma facilidade grande de acesso – tenho uma prima que sempre trabalhou em lojas de marcas caras, tinha acesso a feiras em que as peças saíam por um valor muito reduzido”.
Giulia, formada em Cinema e Audiovisual, mora no Rio de Janeiro e trabalha como analista de marketing audiovisual numa startup de mercado financeiro. Motivada pelas considerações acerca de um modo de consumo mais consciente e pela possibilidade de ganhar uma renda extra, Giulia decidiu dar vida a um projeto de brechó digital. Inspirada numa iniciativa do site Steal the Look, Giulia decidiu vender suas peças de roupas que não usa mais através do perfil Giu Vende Quase Tudo no Instagram. “Eu moro com a minha mãe e a gente divide as contas dentro de casa. A gente estava precisando de uma grana extra, e nesse sentido a venda das roupas está sendo super importante”, conta.
Giulia, que se descreve como uma pessoa que sempre foi aficionada por moda, montou o perfil em agosto desse ano, já tendo postado mais de 50 peças disponíveis para o garimpo das clientes virtuais. A carioca se mostra alinhada com a tendência da crescente procura por brechós, ramo do varejo que oferece peças a preços mais acessíveis, além de encorajar um tipo de consumo mais sustentável em relação ao meio ambiente. Giulia percebe que a atitude do consumidor em relação aos brechós tem mudado: nos últimos tempos, esse tipo de loja tem ganhado mais legitimidade, as pessoas têm se atentado ao trabalho de curadoria feito por muitas dessas lojas, que selecionam, consertam e cuidam de cada peça. “Eu tenho um carinho maior pelas roupas, até porque foram peças que eu usei durante um tempo”, Giulia aponta. “Eu vejo o Giu Vende Quase Tudo como uma troca. São roupas que eram minhas e que vão passar a ser de outras pessoas, que vão contar histórias em outros corpos”.
Giulia, que tem tido experiências com o mundo dos brechós desde 2014, identifica o online como uma ferramenta que oferece grande facilidade, mas atesta também que as vantagens de se ter uma loja física são difíceis de serem negadas: “Por mais que o e-commerce de roupa ajude, nada substitui as pessoas conseguirem passar por um brechó físico, olhar, experimentar as peças”. Débora, que define o ato de receber os clientes em seu ateliê como uma das partes do trabalho que mais gosta, percebe um comportamento parecido: “Eu tenho meu e-commerce, mas eu percebo que as pessoas gostam muito da pessoalidade que existe em comprar direto no ateliê. Tem a ver com o trabalho artesanal, as pessoas gostam de ver as peças de perto”. O mundo virtual, entretanto, possui um trunfo importante: através das redes, é possível atingir lugares que uma loja física não atingiria, chegar a outros estados do Brasil, bem como alcançar públicos diferentes, mais variados.
Ambos os projetos têm preocupações com questões de sustentabilidade em relação ao meio ambiente, de forma que o público que cada inciativa atinge tende a ser de pessoas alinhadas a lógicas de consumo mais minimalista. Segundo ambas as idealizadoras, os projetos estão ligados ao conceito de slow fashion, movimento que busca se opor ao consumismo desenfreado, focando na necessidade ao invés da procura constante por peças novas que as grandes marcas tendem a estimular. “Além de ser importante pro planeta, é importante devido ao contexto da pandemia”, período que Giulia identifica como um momento em que comprar roupa não tem sido a primeira preocupação para uma grande parcela da população brasileira.
Para Débora, essa busca pelo público se configura como um dos maiores desafios que o projeto tem hoje para continuar crescendo. “O público existe. Mas as pessoas, no geral, estão muito habituadas a um estilo de consumo que não é o que eu faço aqui”, ela conta. Se por um lado, houve incentivos governamentais para manter as iniciativas dos microempreendedores em funcionamento durante a pandemia, por outro, os desafios de nadar contra a corrente para tentar ganhar espaço no mercado são inúmeros. “A falta de incentivo vem muito das pessoas que não compram. Foi um processo que eu tive pra encontrar meu público. No começo eu me perguntava ‘por que não optam por uma marca pequena?’ ou ‘por que estão reclamando do preço?’”, reflete Débora ao levar em conta que a precificação de suas peças fica, muitas vezes, abaixo da média encontrada em lojas do shopping.
Segundo a designer, é importante para ela que a Gerânio Arte siga os protocolos atrelados a produções menos agressivas ao meio ambiente, como o descarte correto da água, bem como busque trabalhar com parceiros que sigam éticas básicas de contratação. A indústria têxtil é uma das que mais polui, bem como uma das que mais emprega pessoas ao redor do mundo. Sabe-se, entretanto, que muitas dessas contratações acabam por superexplorar os trabalhadores e, em casos mais graves, perpetuam lógicas de trabalho escravo, inclusive dentre as grandes marcas. Por estar à frente de uma produção de natureza pequena, autoral e artesanal, Débora tem como uma de suas preocupações primordiais se ater aos códigos de ética e produção que reflitam a ideologia por trás de sua marca. Dessa forma, é natural que os custos de fabricação encareçam “quando a gente cria essa produção toda ‘limpa’”, como ela coloca.
Nesse sentido, Débora entende também que educar o consumidor acerca dessas questões faz parte do trabalho: “eu fui percebendo que o meu papel, além de produzir tudo, era muito o de comunicar e educar o consumidor. Muitas vezes, quando eu conto como tudo é feito, as pessoas realmente não sabem, mas isso não quer dizer que elas não estão dispostas a saber. Por isso que todo dia a gente está tentando conquistar o público e abrir esse espaço, fazer as pessoas entenderem a marca, porque quando elas entendem, elas acabam gostando”.
Planos para o futuro
O ano de 2020 viu um aumento expressivo na abertura de MEIs (Microempreendedores Individuais) no país. O Portal do Empreendedor registrou aumento de 20% na abertura de MEIs no ano passado, sendo o ramo da moda e vestuário um dos setores que mais enxergou esse aumento do micro empreendedorismo durante a pandemia.
Paloma se encontra hoje em vias de se tornar MEI: “estava esperando o meu seguro-desemprego acabar pra eu não ficar sem respaldo enquanto escalo o meu negócio”. Uma das ferramentas que mais abre portas para os microempreendedores na atualidade, o Microempreendedor Individual oferece a possibilidade de formalização que pode vir a fazer toda a diferença na hora de expandir um micro negócio. Segundo Débora, “o MEI é uma burocracia, mas muito importante pra você formalizar o seu negócio. Agora que eu aumentei um pouco a minha produção, muitos fornecedores pedem o CNPJ. Existem coisas que, como pessoa física, você fica impossibilitada de fazer, então o MEI é uma facilidade nesse sentido”.
Giulia, por sua vez, é MEI em decorrência das atividades que desempenha no setor audiovisual. Ela quer seguir tocando seu projeto experimental de brechó em paralelo a suas outras ocupações, num ritmo desacelerado que condiz com a lógica de slow fashion pela qual ela advoga.
Em todos os casos, as dificuldades de levar a frente projetos pequenos existem, como adverte Débora: “Os desafios são muito maiores pra marcas pequenas. Não gosto quando as pessoas romantizam ou glamourizam esse trabalho. Não é todo mundo que tem condições de fazer um projeto assim, você fica um tempo apenas investindo e o retorno, às vezes, demora pra acontecer”. Elas e muitas outras mulheres empreendedoras, entretanto, seguem tentando abrir espaço nesse e em outros setores, buscando a autonomia e a satisfação de poder serem donas do próprio negócio. Como coloca Débora, “É mais trabalhoso, mas é o que eu faço. É o que eu gosto de fazer”.