Por Ana Joulie, Psicóloga especializada em patologias graves, fundadora e diretora clínica da Rede Internacional de Acompanhamento Terapêutico (RIAT) 

anajoulie@riat.app 

Chefe de Reportagem: Juliana Monaco, jornalista 

Editora Chefe: Letícia Fagundes, Jornalista 

Um relacionamento de amor e, às vezes, ódio

Para conversar sobre a luta LGBTQIA+, é necessário, antes, compreender um pouco os conceitos que giram em torno da temática. Então, pretendo transitar entre os conceitos de sociedade, preconceito, fobia, saúde mental e relacionamento familiar.

Etimologicamente, a palavra sociedade é originária de dois termos latinos: socius e società. O primeiro é traduzido como “parceiro” ou “companheiro”, e o segundo seria significado como “associação entre comuns”. Então podemos definir que a sociedade é uma ampla estrutura de sujeitos que compartilham um princípio fundamental, que vincula todos à mesma finalidade, considerando valores, cultura, território etc.

A família é nosso primeiro grupo social, é no grupo familiar que temos nossas primeiras experiências como membros de uma sociedade. O núcleo familiar traz uma carga completa de aspectos sociais que nos arquitetam como sujeitos, tais como a cultura, religião, dogmas políticos, éticos, incluindo tudo que relaciona os direitos e deveres de um cidadão. O sujeito, automaticamente, nasce na condição de receptor do que lhe é imposto. Nascemos e adquirimos certidão de nascimento, carteira de identidade, CPF, passaporte etc. Costumo dizer aos meus pacientes que, para iniciar um processo terapêutico, precisamos conhecer a pessoa que está na carteira de identidade deles, por trás daquela foto 3×4. Precisamos descobrir qual é a subjetividade de cada um, pois é através dela que nos tornamos únicos.

Considerando que somos sujeitos oriundos de estruturas familiares, de distintos modelos (tradicional, informal, monoparental, anaparental etc) e, por isso, estamos inseridos em sociedades que se diferenciam em alguns aspectos, podemos identificar onde e porque ainda existe tanta rejeição, preconceito, fobia e maus trato com pessoas que fazem suas escolhas de maneira autônoma. Dependendo de onde o sujeito esteja inserido, sofrerá, ou não, situações de cunho preconceituoso.

Já ouviram falar que o desconhecido gera medo?! Comumente, pessoas se tornam resistentes ao novo, ao incomum, ao que foge do seu campo de controle e conhecimento. Por isso, como sociedade, ainda sofremos com a falta de aceitação da diversidade sexual e de gênero existente. Considero “normal” a problematização dos temas relacionados às questões de orientação sexual e de identidade de gênero, pois ainda é muito recente nossa reforma científica a respeito do tema. Há 31 anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerava a homossexualidade como doença. A Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (hoje CID-10) definia pessoas homossexuais como doentes, que possuíam desordens sexuais. Já pensou?! Parece loucura expor uma pessoa a um padrão patológico pelo fato de ela amar alguém do mesmo sexo. O dia 17 de maio de 1990 foi marcado pela retirada da “homossexualidade” do CID-9. Desde essa data, que tornou o “Dia Internacional Contra a LGBTFobia”, alguns movimentos se tornaram muito mais conhecidos, já que a ciência reavalia a questão patológica desses sujeitos.

Já o dia 28 de junho é considerado o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. Essa data é o marco-zero da luta pelos direitos LGBTI+ nos EUA e no mundo. Foi no ano de 1969, nos EUA, que uma das mais importantes rebeliões civis da história aconteceu. Ela ficou conhecida como a Rebelião de Stonewall, onde gays, lésbicas, travestis e drag queens enfrentaram a força policial em um episódio que serviu de base para o Movimento LGBTI+ em todo o mundo. A data colocou o mês também em evidência e tem como principal objetivo a conscientização da população sobre a importância do combate à homofobia e à transfobia para a construção de uma sociedade livre de preconceitos, independente da orientação sexual e identidade de gênero.

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Foto: Unsplash/divulgação RIAT

No Brasil, o movimento LGBT ganhou força na década de 70, em meio a ditadura civil-militar (1964-1985). Porém na década de 80, a comunidade LGBT sofreu um grande golpe. No mundo todo, uma epidemia do vírus HIV matou muitas pessoas e alterou significativamente as organizações políticas do movimento. Hoje, o Movimento LGBTQIA+ abrange diversas orientações sexuais e identidades de gênero de modo que, mesmo sem uma organização central, promove diversas frentes de luta pelos direitos civis da comunidade.

Mesmo que as questões de diversidade sexual e de gênero já existam há muitos séculos, antes mesmo de Cristo, ainda temos que lidar com questões de preconceito e ignorância, pois muitas estruturas sociais ainda insistem em negar a realidade de autonomia subjetiva das pessoas.

As famílias se tornam, como é de se esperar, por serem o grupo de relacionamento mais próximo, as entidades mais densas nesse processo de aceitação. Na maioria das vezes, ainda durante a gestação do indivíduo, a família projeta seus desejos pessoais e sociais nesse ser que está sendo gerado. Por isso, quando o sujeito cresce e se torna autônomo, adquirindo domínio de sua subjetividade e identidade, a família sofre rupturas. Naturalmente é assim, e quando um membro da família se revela como sendo LGBTQIA+ e não é aceito, geralmente passa a sofrer danos emocionais severos.

Quando o desejo familiar não se torna real, a família toda adoece. Pais se “tornam” homofóbicos, muitas vezes, por uma questão de mecanismo de defesa. Certamente não é falta de amor, é desapontamento diante do que foi projetado e “fracassado”. Alguns familiares aceitam vizinhos, amigos, colegas de trabalho, mas resistem em aceitar o membro da família. A maioria dos motivos para a não aceitação advém de um contexto da sociedade, tais como “reputação”, “fracasso na educação” etc. Alguns pais tratam a sexualidade de seus filhos como um distúrbio psicológico, e derivam seus filhos a consultórios para tratamento, outros pais levam seus filhos a instituições religiosas, com a crença de libertá-los de qualquer doença ou influência espiritual.

Pessoas que são LGBTQIA+ possuem sérios problemas de aceitação, muitas vezes, pelo fato de não serem aceitas, como de fato são, por seus familiares, pela sociedade. “É no espaço onde circula o amor que se constrói uma grande parte da identidade pessoal dos indivíduos” (Singly, 2013, p.14). Por falta de aceitação e demonstração de amor, muitos preferem se esconder, entrando em relacionamentos mentirosos, só para agradar a família e manter um convívio agradável. A repressão sentida pelas circunstâncias traz uma série de transtornos psicológicos como depressão, isolamento social, transtornos de conduta, vícios, transtornos alimentares, suicídio etc.

Atualmente, estamos tendo o privilégio de ter mais acesso e discussões sociais a respeito da luta contra a LGBTFobia, assim como também a sociedade está aceitando as novas configurações familiares e a ciência tem estado atuante em investigações. Saliento que enfatizei situações de famílias que não possuem consciência de questões que envolvem diversidade sexual e de gênero, e as que conhecem, mas optam de forma consciente, em não aceitar. Isso não significa que sejam maioria, ainda não temos pesquisas validadas que comprovem estatisticamente o padrão atual de aceitação de familiares.

É sumamente importante olhar para nosso contexto histórico e sermos empáticos com as diversidades, só assim vamos poder naturalizar o que é natural e criar sociedades saudáveis e menos perversas.

Cuidar da saúde mental é fundamental para adquirir autonomia emocional para lidar com as diferenças. Ter inteligência emocional nos dá a oportunidade de debater sem ofender, de aceitar sem impor nossa crença. Nos permite amar o que é semelhante em forma e diferente em subjetividade. Cuidar da saúde mental nos aprova a não fazer inferências radicais na vida do outro, seja no âmbito científico, político, laboral, escolar e familiar. Nos possibilita debates saudáveis em prol de igualdade social.

Olhem ao redor com empatia. Cuidem de suas mentes, emoções e comportamentos! Cuidem de seus relacionamentos, em qualquer nível de proximidade! Mais amor, respeito, empatia e menos preconceito!