Por Bruna Fonseca, São Paulo
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Durante a pandemia, as estatísticas de violência contra a mulher subiram de maneira considerável no Brasil e no mundo. Iniciativas de órgãos públicos e privados se esforçam para mudar esse panorama

No dia 27 de outubro deste ano, o Senado brasileiro aprovou um projeto de lei que passará a destinar pelo menos 5% do Fundo Nacional de Segurança Pública para ações de combate à violência contra a mulher. O orçamento previsto para o Fundo é de R$ 1,44 bilhões em 2021. Isso significaria um total de R$ 70 milhões aplicados no combate a esse tipo de violência, ação que pode se traduzir tanto em campanhas educacionais destinadas à toda a população, quanto na criação de novos centros, casas-abrigos, delegacias e centros de saúde e de perícia médico-legal destinados ao trato das vítimas.

O aumento de iniciativas reservadas à proteção da camada feminina da população, estatisticamente mais vulnerável a certos tipos de violência, é animador. Mas as perspectivas ainda parecem estar aquém de conseguir responder a situação à altura. Segundo o relatório de 2021 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), uma em cada quatro mulheres com mais de 16 anos (ou seja, cerca de 25% da população feminina) relatou ter sofrido algum tipo de violência ou agressão no período compreendido de junho de 2020 a junho de 2021. Esse número representaria um total de mais de 17 milhões de mulheres que foram vítimas de violência física, psicológica ou sexual no período da pandemia.

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Relatório da FBSP: realidade preocupante parece se agravar durante a pandemia. Créditos: Reprodução/Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Violência doméstica em meio à pandemia

Durante os meses de confinamento que a pandemia de covid-19 impôs ao mundo, os índices globais de violência contra a mulher aumentaram consideravelmente, principalmente no ambiente doméstico. O secretário geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o português António Guterres, caracterizou a situação como um contexto de “horrível aumento global da violência doméstica”. O secretário destacou a nefasta realidade que ainda acomete pessoas do sexo feminino ao redor do mundo: “para muitas mulheres e meninas, a ameaça parece maior onde deveriam estar mais seguras: em suas próprias casas”, afirmou Guterres.

De fato, dados de 2021 da Organização Mundial de Saúde (OMS) revelam que a violência contra as mulheres se perpetua ainda hoje de maneira tão generalizada e habitual, de forma tão prevalente em todos os continentes, que pode ser caracterizada como um tipo de violência endêmica. Segundo o relatório da OMS, uma em cada três mulheres no mundo será submetida à violência física ou sexual nas mãos de seu parceiro, ou à violência sexual por parte de um não parceiro, ao longo de sua vida. Esse número totaliza mais de 736 milhões de mulheres ao redor do planeta e vem permanecendo praticamente inalterado ao longo da última década.

A pandemia, inclusive, significou a piora desses índices globalmente. “A violência contra as mulheres é endêmica em todos os países e culturas, causando danos a milhões de mulheres e suas famílias, e foi agravada pela pandemia de covid-19”, declarou o etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS. “Mas, ao contrário da covid-19, a violência contra as mulheres não pode ser interrompida com uma vacina. Só podemos lutar contra isso com esforços sustentados e enraizados – por governos, comunidades e indivíduos – para mudar atitudes prejudiciais, melhorar o acesso a oportunidades e serviços para mulheres e meninas e promover relacionamentos saudáveis e mutuamente respeitosos”.

No Brasil, a situação não foi diferente. A pandemia fez aumentarem os casos de agressão dentro de casa, que, ainda segundo o relatório do FBSP, passaram a compor 48,8% dos registros de violência contra a mulher durante o período de isolamento social, em comparação a 42% no ano anterior. Cresceu também a participação de companheiros e ex-parceiros nas agressões. Além disso, os índices de agressão na rua diminuíram de 29% no ano anterior para 19%.

De maneira geral, 8 mulheres foram agredidas por minuto no Brasil durante a pandemia, sendo que 50% delas avaliaram que o confinamento gerado pelo vírus da covid-19 influenciou no agravamento da violência que sofreram, segundo a pesquisa do FBSP. Ademais, os índices são verificados em maior porcentagem entre a camada da população feminina que vai dos 16 aos 24 anos, além de existir maior prevalência da perpetuação dessa violência contra mulheres negras. De fato, segundo dados do Atlas de Violência de 2019 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a disparidade racial é evidente ao se analisarem, por exemplo, as diferenças das taxas de homicídio contra mulheres negras e não negras. Segundo o Atlas, “enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9%. Considerando apenas o último ano disponível, a taxa de homicídios de mulheres não negras foi de 3,2 a cada 100 mil mulheres não negras, ao passo que entre as mulheres negras a taxa foi de 5,6 para cada 100 mil mulheres neste grupo”.

Houve também, durante a pandemia, a constatação da queda no número de registros de ocorrência de casos de violência contra a mulher. Em contrapartida, as denúncias feitas pelo Ligue 180, serviço que registra e encaminha tais denúncias para as autoridades responsáveis, tiveram aumento de 34% em relação ao ano anterior segundo balanço do governo federal, índice que pode sugerir que as mulheres podem ter encontrado maiores dificuldades de se dirigir às delegacias para registrar ocorrências. Em 2020, foram registradas ao todo 105.671 denúncias pelo Ligue 180. O relatório de 2021 do FBSP afirma, entretanto, que as denúncias feitas por esse canal representam apenas 2% de todos os casos de agressão desse tipo. O relatório estimou, também, que em 45% dos casos as vítimas não fizeram nada quanto à situação de violência, seja denunciar formalmente numa delegacia ou procurar a ajuda de amigos ou familiares.

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Dados apontam que em 45% dos casos, vítimas de agressões não fizeram nada com relação à violência sofrida. Créditos: Reprodução/Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Ações de enfrentamento

De forma a fazer frente à conjuntura cada vez mais preocupante que vinha se instalando durante o contexto de pandemia, foi lançada em junho de 2020 a Campanha do Sinal Vermelho, idealizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). A campanha funciona no sentido de providenciar um instrumento para que as vítimas brasileiras da violência doméstica consigam pedir socorro de maneira discreta e rápida. A ideia é que a vítima desenhe, com uma caneta, batom ou qualquer objeto a seu dispor, um “X” na palma da mão, preferencialmente na cor vermelha. O destinatário do pedido de socorro, ao perceber se tratar do código do Sinal Vermelho, deve encaminhar a vítima para um local seguro e imediatamente ligar para o 190 (Polícia Militar) e reportar a situação.

Idealizada por Renata Gil, presidente da AMB, e Domitila Manssur, diretora do AMB Mulheres, a campanha tem a cara das iniciativas modernas da luta institucional contra a violência contra a mulher. “Elaboramos uma campanha humanitária, de responsabilidade social, para atender às necessidades das vítimas. É uma grande satisfação ver que o projeto tem atendido tão bem ao seu propósito que deputados e chefes dos executivos estaduais avaliam que ele deve ser perene”, afirmou Gil.

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Campanha do Sinal Vermelho: iniciativa para providenciar às vítimas uma forma discreta e silenciosa de fazer sua denúncia. Créditos: Reprodução/APAMAGIS

De fato, ao longo de 2020 e 2021, representantes públicos, dentre eles governadores de diversos estados, sancionaram leis que instituem o programa também como política governamental de enfrentamento. Além disso, em julho desse ano foi sancionada a Campanha Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica em nível nacional. A sanção da lei significa que os órgãos de segurança pública poderão fazer parcerias com estabelecimentos comerciais privados para a promoção e expansão do programa. Hoje, a medida já conta com o apoio de mais de 10 mil farmácias ao redor do país, além de ter recebido a adesão formal do Banco do Brasil recentemente. Em estados como o Mato Grosso do Sul, inclusive, a medida já está em vigor de tal maneira que as vítimas podem buscar ajuda mostrando o “X” na palma da mão não só para atendentes de farmácias, mas também em estabelecimentos diversos, que vão desde repartições públicas e instituições privadas, a portarias de condomínios, hotéis, pousadas, bares, restaurantes, lojas comerciais, administrações de shopping centers, supermercados, academias, agências bancárias ou outros locais de atendimento ao público.

A advogada Cintia Clementino, especialista em Direito Público, aderiu à campanha em suas redes sociais. Segundo ela, a incorporação dessa iniciativa pelos órgãos governamentais é essencial. “O Estado tem essa obrigação. É um dever do Estado zelar pela saúde e pela proteção da mulher. Está na Constituição, no capítulo que trata da família, que a mulher também merece atenção especial do Estado, assim como o idoso, a criança e o adolescente”.

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A advogada Cintia Clementino aderiu à divulgação da campanha em suas redes sociais. Créditos: Divulgação/@cintiaclementino_advogada

Mais recentemente, mais uma medida animadora foi incorporada ao programa. A partir do dia 25 de outubro de 2021, os cartórios brasileiros passaram a integrar a rede de pontos de apoio da Campanha Sinal Vermelho, de forma a incentivar e facilitar ainda mais as denúncias de abuso contra a mulher no ambiente doméstico. São mais de 13 mil unidades que agora passam a integrar a campanha, de maneira que os funcionários foram instruídos por cartilhas, vídeos e materiais produzidos pela ANOREG (Associação dos Notários e Registradores). Foram, também, reservadas salas para abrigar as mulheres que procurarem auxílio nas unidades dos cartórios, de maneira que elas possam registrar sua denúncia e contatar as autoridades. Caso a vítima não queira ou não possa receber auxílio no momento, os funcionários dos cartórios foram instruídos a anotar seus dados pessoais e comunicar a situação às autoridades responsáveis.

Histórico do combate à violência contra a mulher no Brasil

Uma das mais importantes iniciativas referentes ao combate à violência contra pessoas do sexo feminino no país foi, sem dúvidas, a instituição da Lei Maria da Penha, sancionada em 2006. Desde a sua publicação, a lei tem sido considerada pela ONU como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres. Ademais, dados de 2015 do IPEA apontaram que a lei contribuiu para uma diminuição de cerca de 10% na taxa de homicídios contra mulheres praticados dentro das residências das vítimas.

De fato, a sofisticação da Maria da Penha é palpável, como Cintia explica: “a Lei Maria da Penha foi a primeira lei destinada especificamente a coibir a violência doméstica contra as mulheres no Brasil. Existem inclusive interpretações que asseguram que travestis e pessoas trans também recebam a proteção dessa lei. Há também o fato de que a violência doméstica não está restrita a agressões entre parceiros necessariamente; ela engloba tudo o que ocorre no âmbito do lar. Uma mulher pode praticar violência contra outra mulher: uma mãe contra uma filha, uma patroa contra uma empregada, por exemplo. Dessa forma, a lei cobre tudo que é caracterizado como violência contra a mulher praticada no âmbito da família, que não precisa acontecer necessariamente no ambiente doméstico. Vamos supor que um namorado bate ou xinga sua namorada na rua: isso é violência doméstica. Não aconteceu no ambiente da casa, mas essa violência se dá em razão de um vínculo afetivo e de convivência”.

É sabido que tanto homens quanto mulheres podem ser vítimas de violência doméstica ou violência de cunho sexual. Em casos em que a vítima é do sexo masculino, pode-se enfrentar muitas dificuldades no processo de denúncia do crime, já que os tabus e estigmas da sociedade podem levar a vítima a se calar diante da violência, sendo possível inferir que há um elemento de subnotificação também nesse contexto. Em todo caso, as estatísticas não negam a disparidade avassaladora que permeia essa conjuntura. Segundo o Mapa da Violência de Gênero, realizado pela organização Gênero e Número, em 2017, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) recebeu 26.835 registros de estupros em todo o país, o que equivaleria a 73 estupros registrados por dia daquele ano. Destes, cerca de 90% tiveram mulheres como vítimas, com o maior percentual no Acre (99%), e o menor em São Paulo e Rio Grande do Sul (86%).

Sobre essa questão, Cintia pontua: “a violência doméstica contra as mulheres é uma questão cultural. Teve muita brincadeira com isso, inclusive. As pessoas pensam ‘tem a Lei Maria da Penha, por que não tem a Lei do José? E quando é o homem que apanha da mulher?’. Nesse caso, existem crimes que são praticados contra a pessoa – como furto, lesão corporal, lesão psicológica, ameaça, homicídio, que se aplicam a qualquer pessoa. Mas, em razão de uma questão cultural, foi necessário fazer uma lei especificamente para a proteção da mulher. Historicamente, quem mais sofreu esse tipo de violência foi a mulher. Essas iniciativas vêm pra tentar diminuir a incidência dessa violência, que é uma questão social. São formas de o governo tentar equilibrar as forças, dar uma paridade de armas pros lados – sendo que essas armas são as legais, as judiciais, os meios administrativos. Por exemplo, assistentes sociais pra dar um apoio assistencial, psicólogos pra dar apoio psicológico, policiais que impõem a coerção pra impedir que outra violência aconteça, e o juiz, que coloca medidas protetivas em favor da vítima”.

Sendo assim, as leis e campanhas como a do Sinal Vermelho vêm no sentido de oferecer ferramentas de enfrentamento ao panorama preocupante que vimos crescer na pandemia, na tentativa de garantir um país mais seguro para meninas e mulheres. Para isso, entretanto, não bastam as ideias. “Pra que a lei tenha eficácia é importante que o Poder Executivo – municipal, estadual e federal, cada um no âmbito de sua competência – coloque em prática as determinações da lei. É preciso, por exemplo, que o governo estadual garanta que haja delegacias com delegadas e policiais mulheres ou com policiais homens devidamente treinados para atender as vítimas”.

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Delegacias de Defesa da Mulher existem em apenas 7% dos municípios brasileiros. Créditos: Reprodução/Governo do Estado de São Paulo

As Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) são exemplos de medidas práticas que vem sendo implementadas para dar mais suporte a essas vítimas, e que podem (e devem) ser amplificadas. A primeira DDM foi inaugurada em 1985 na cidade de São Paulo, criada a partir da pressão popular de feministas paulistas sobre o então governador André Franco Montoro.

Ao longo desses 36 anos de existência, foram inauguradas ao todo 135 Delegacias da Mulher na capital paulistana. Destas, apenas 8 são unidades que funcionam 24h por dia, entretanto. O governador João Dória afirmou, em 2019, que seu plano era expandir consideravelmente esse panorama: “Até o final do mandato serão 40 Delegacias da Mulher 24 horas por dia. Esse foi meu compromisso de campanha”, afirmou. Seu mandato termina no final de 2022.

As 135 DDMs com as quais conta a cidade de São Paulo representam cerca de 35% de todas as delegacias do tipo em todo o território nacional. Segundo um levantamento do IBGE, apenas 7% dos 5,5 mil municípios brasileiros têm delegacias de atendimento especializado à mulher. E esse é um número que tem caído. Em 2014, havia 441 DDMs no Brasil, de forma que, em 2019, essa quantidade caiu pra 417. Essa é uma situação que acomete mais os municípios pequenos, sendo que apenas 9 das 3,6 mil cidades com até 20 mil habitantes têm esse tipo de delegacia. Juntos, esses pequenos municípios somam cerca de 32 milhões de moradores. Esses são dados que explicitam o fato de que, apesar dos esforços encorajadores que vemos surgir no cenário do combate à violência contra a mulher no país, ainda há um longo caminho pela frente.