Por Bruna Fonseca, São Paulo
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Governo brasileiro segue ignorando problemáticas ambientais latentes e vai na contramão das resoluções da COP26

De 31 de outubro a 12 de novembro de 2021, o mundo testemunhou o desenrolar da 26ª sessão da Conferência das Partes, mais conhecida como COP26, realizada pela Organização das Nações Unidas com o intuito de discutir tópicos relacionados às mudanças climáticas. Mais de 190 líderes mundiais e dezenas de milhares de representantes governamentais, empresas e cidadãos se reuniram em Glasgow, no Reino Unido, para retomar os artigos estipulados pelo Acordo de Paris. A resolução de 2015 prevê, por exemplo, a redução significativa das emissões de GEEs (Gases do Efeito Estufa) pelos países assinantes e a manutenção do aquecimento global em menos de 2ºC até o final deste século.

O Brasil chegou na COP26 como o único país do G20 que viu seus índices retrocederem em relação a 2015, ano em que, juntamente a diversas nações, concordou em seguir as metas estipuladas em Paris. Segundo dados do SEEG (Sistema de Estimativa de Emissões de Gases do Efeito Estufa), a taxa de emissões subiu no Brasil cerca de 9,5% no ano de 2020, enquanto a média mundial viu uma queda de 7%. Um dos setores que mais vem contribuindo há anos para a elevação desses índices é a agropecuária, ramo que, ainda de acordo com o SEEG, foi responsável por cerca de 27% das emissões brutas no ano passado.

É impossível falar de agropecuária no Brasil sem voltar os olhos para a Amazônia. A criação de gado (e também a plantação de soja, principal alimento utilizado na produção de animais para consumo humano) é hoje uma das atividades que mais impulsiona o desmatamento legal e ilegal dessa que é a maior floresta do mundo. Durante a COP, o Brasil assinou um documento no qual se compromete a eliminar o desmatamento ilegal no país até 2030. Entretanto, o contexto generalizado que se instaura no tocante a incentivos governamentais, fiscalização (ou a falta de) e legislação parece apontar para a direção contrária.

Hoje, o Brasil possui o maior rebanho bovino do mundo, com cerca de 215 milhões de animais, soma que supera em 3 milhões a sua população. Em anos recentes, a indústria do couro correspondeu a 1.1 bilhão de dólares (mais de 6 bilhões de reais) em lucro. Além disso, segundo um levantamento do The Observatory of Economic Complexity, o produto de maior exportação no Brasil em 2019 foi a soja, 11.4% de todas as exportações brasileiras correspondendo a esse produto. De fato, o Brasil é o maior exportador de soja do mundo. A agropecuária tem sido, portanto, um dos setores mais lucrativos e importantes para a economia brasileira nas últimas décadas, com mais de 23% do PIB do país derivando do agronegócio.

Não é de se espantar que a região Norte do país seja um dos principais destinos daqueles que buscam adentrar o ramo. Com terras baratas devido, dentre muitos fatores, à dificuldade de acesso e a pouca infraestrutura presente nas áreas virgens da Floresta Amazônica, a região há décadas tem sido atrativa tanto para pequenos produtores quanto para grandes latifundiários. Por isso, foi necessário que esforços públicos fossem colocados em prática de modo a barrar o desmatamento desenfreado da Amazônia e proteger as comunidades indígenas que lá habitam. Ainda assim, estima-se que, desde a década de 1970, o Brasil já perdeu cerca de 20% de áreas preservadas da Floresta Amazônica, como aponta o relatório Living Planet Report de 2018, da organização World Wildlife Fund (WWF).

Simulação que ilustra a estimativa da WWF da perda de áreas preservadas na Amazônia nas últimas cinco décadas

Histórico do desmatamento

A primeira onda de desmatamento começa durante o Regime Militar, paralela à construção da Rodovia Transamazônica. Com o objetivo de integrar melhor a região Norte ao restante do país, a construção da rodovia ocasionou também a destruição de comunidades locais e a proliferação de áreas desmatadas em seu entorno. O governo militar enxergava o potencial econômico que a região ostentava devido a seus recursos naturais e, portanto, passou a incentivar a migração de produtores e fazendeiros que quisessem se estabelecer na Amazônia, impulsionando uma verdadeira corrida por terras. Desde então, a floresta tem perdido milhares de quilômetros quadrados em hectares por ano.

O início do século XXI presenciou o aumento do consumo de carne ao redor do mundo. Foi quando a soja, principal alimento do gado criado para consumo humano, tornou-se um dos componentes mais importantes para o crescimento econômico brasileiro à época. O boom econômico dos anos 1990 e 2000 pelo qual passou o Brasil devido, dentre diversos fatores, também à exportação da soja, foi outro fator que contribuiu para a intensificação do desmatamento. Toda essa expansão econômica veio também com altos custos para o meio ambiente e, em específico, para o território conhecido hoje como Amazônia Legal. Os altos índices de produtividade da indústria agropecuária no início do século estiveram fortemente atrelados com os mais altos índices de desmatamento em solo brasileiro da história. Desmatamento esse. muitas vezes, conduzido de forma ilegal.

Pressões internas e externas aplicadas sobre os representantes brasileiros à época surtiram efeito para a contenção desse panorama. Em 2003, o Ministério do Meio Ambiente, sob comando da então ministra Marina Silva, passa a arquitetar um plano para frear o desmatamento. Assim, o governo amplia as áreas de proteção, demarcando mais áreas em que o desmatamento estaria terminantemente proibido – muitas dessas áreas sendo reservas indígenas. Segundo o plano, previa-se que até o ano de 2012 cerca de 47% da Amazônia estaria sob proteção governamental. O restante do território permaneceria uma mistura de pastos para gado, fazendas para o cultivo de soja e outros alimentos e, em sua maioria, floresta. Para proteger também os 53% restantes do território, o governo fortalece em 2012 o Código Florestal, lei que impede que proprietários de terras na área da Amazônia Legal alterem o bioma original de mais de 20% de sua propriedade. Ademais, o governo federal passa a destinar mais fundos para que a Funai (Fundação Nacional do Índio) e o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) possam trabalhar no sentido de proteger as populações locais, bem como fiscalizar e punir criminosos ambientais.

Em 2006, os níveis de desmatamento diminuem consideravelmente, caindo para quase metade dos índices observados apenas dois anos antes. No mesmo ano, foi assinada por ONGs, produtores de soja e, mais tarde, também pelo governo federal a Moratória da Soja, pacto ambiental que proíbe a compra de grãos de soja plantados em áreas recém desmatadas da Amazônia. A medida, que segue em vigência até hoje, foi decisiva para ajudar a desincentivar o desmatamento por parte de novos e antigos produtores. Dois anos depois, foi assinada também a Moratória da Carne.

Tais esforços passam a demonstrar resultados, de forma que em 2012 atingem-se baixas históricas nos índices de desmatamento. Concomitante a essa conjuntura, as indústrias da soja e da carne continuam a crescer, graças à implementação de técnicas mais modernas e eficientes de cultivo.

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Índices de desmatamento anuais de acordo com dados da PRODES, projeto do INPE de Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite

Sendo assim, o panorama de destruição parecia estar retrocedendo no começo da década passada, devido, em grande parte, às medidas governamentais que foram postas em prática para desacelerar o ritmo de desmatamento. Hoje, entretanto, com o enfraquecimento dos órgãos responsáveis pela fiscalização e pela instauração de políticas de preservação, o país volta a entrar numa crescente de zonas desmatadas anualmente, com dados apontando para o ano de 2021 como aquele com a maior quantidade de quilômetros quadrados desmatados na Amazônia, legal e ilegalmente, da última década.

Povos indígenas ameaçados

Cortes expressivos no orçamento da Funai vêm dificultando a ação desse órgão no que diz respeito à demarcação de reservas indígenas e à proteção das terras já demarcadas – bem como, é claro, das populações que nelas residem. Em 2019, a organização Indigenistas Associados (INA) identificou uma queda de quase 50% no orçamento estimado para 2020 da Funai, em comparação ao ano anterior. Esse cerceamento de recursos impacta diretamente os níveis de desmatamento da Floresta Amazônica, já que povos indígenas têm historicamente conservado esse bioma.

Cerca de 13% do território brasileiro é composto pelo que o governo federal considera como terras indígenas. São mais de 400 áreas protegidas, muitas delas na Amazônia Legal, que conta também com mais de 100 áreas demarcadas para a atividade seringueira e outras formas de atuação que não danificam o meio ambiente. A maioria dessas reservas foram aprovadas no período de 2003 a 2010, sob o mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Lula oficializou um total de 87 reservas indígenas, sendo que sua sucessora, a ex-presidente Dilma Rousseff, decretou 21 reservas no período de 2011 a 2016. Dessa data até 2018, o ex-presidente Michel Temer oficializou apenas 1 reserva e, de lá pra cá, mais nenhum território indígena foi reconhecido pelo Estado.

Além disso, os anos de 2019 e 2020 viram o aumento expressivo de invasões ilegais em terras indígenas. Apenas no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, foram registrados mais de 250 casos de invasão, aumento de 135% em relação a 2018. Muitas dessas invasões tiveram como objetivo a tomada de terras para a sua transformação em pasto.

O enfraquecimento dos órgãos que combatem o desmatamento ilegal e das políticas que protegem os povos indígenas brasileiros (responsáveis pela preservação de uma porção considerável do bioma natural amazônico) parecem fazer parte de estratégias de um governo federal que se alinha mais aos interesses do agronegócio do que com a ideia de desenvolvimento econômico sustentável. Apesar de o presidente negar que o ano de 2019 viu o aumento substancial de incêndios florestais criminosos em estados como Pará e Amazonas, é fato que o início de seu governo foi marcado pelo agravamento dessa conjuntura.

Congresso desfavorável

O Projeto de Lei (PL) 2.633/2020, conhecido como “PL da Grilagem”, foi um dos projetos que ganharam tração em meio a esse novo panorama. Em agosto deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou o PL, que agora segue para o Senado. Concebido para facilitar a obtenção de titularidade por parte de produtores estabelecidos há anos em terras públicas, o projeto é acusado de estimular a grilagem e o desmatamento, por ampliar a possibilidade de regularização de propriedade de terras públicas por autodeclaração. Assim, a lei, se aprovada, poderá ser usada mais em favor de criminosos ambientais e grileiros do que para atender o anseio justo dos pequenos produtores rurais que chegam a passar décadas aguardando a entrega do título de propriedade da terra na qual produzem.

A conjuntura que vem se instaurando no Congresso brasileiro nas últimas duas décadas parece ser também uma facilitadora para o provável aumento nos níveis de desmatamento que os brasileiros, infelizmente, seguirão vendo nos próximos anos. O fortalecimento da chamada Bancada Ruralista, porção do Congresso que possui fortes laços com o agronegócio, tem se mostrado um fator dificultador para a preservação e instauração de novas políticas de proteção à Amazônia. Se no passado a Bancada fez pressão para o afrouxamento das imposições do Código Florestal e para cortes no orçamento do IBAMA, hoje é graças a ela que PLs como o da Grilagem ganham força na Câmara dos Deputados e no Senado. Segundo uma análise da Stratfor, a porcentagem de assentos Ruralistas no Congresso subiu de 17% em 2003 para 44% em 2018. O aumento é expressivo e, pelo que indicam os dados, tende a se intensificar.

Somando-se a isso o fato de que o Serviço Florestal foi realocado do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura em 2018, com a eleição de Bolsonaro, não é incorreto afirmar que o futuro da Amazônia Legal segue ameaçado, e que as metas da COP26 parecem mais distantes hoje do que há uma década atrás.