Por Regina Fiore, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

Passei os últimos dias absorvida pela discussão da vez, que ganhou contornos internacionais: Lula foi ou não foi antissemita em sua fala sobre as ofensivas de Israel contra a Faixa de Gaza? Quem, de fato, pode dizer se alguém foi ou não antissemita? Antes, uma digressão rápida: no último domingo, houve a manifestação dos apoiadores do Bolsonaro, na Avenida Paulista, em SP. 

De acordo com os dados oficiais do governo, estiveram presentes 750 mil pessoas. De acordo com números divulgados pela USP, foram 185 mil. O site Poder 360 fez um cálculo baseado na área ocupada pelos manifestantes e na concentração de pessoas média em cada ponto da Avenida Paulista, e chegou a conclusão de que foram 350 mil pessoas presentes no ato. Eu vou nesse número, me parece mais plausível e neutro. 

Entre as milhares de pessoas estavam homens e mulheres se revezando para tirar foto com a bandeira de Israel. Um ser de luz fez esse favor para os brasileiros e filmou, então, uma senhora enrolada na bandeira de Israel e perguntou porque ela estava com o item. A senhora responde: “Porque nós somos cristãos, assim como Israel”. 

Que preciosidade esse exemplar dos apoiadores bolsonaristas, que não faz ideia de que Israel é tudo, menos cristã. Inclusive o judaísmo nem usa o calendário cristão como oficial. A religião judaica, assim como a muçulmana, não faz parte da gama de vertentes que o cristianismo gerou. Em Israel, o aborto é legalizado em mais situações do que no Brasil. Mas acho que é chutar cachorro morto voltar a dizer o quanto essas 350 mil pessoas passam uma impressão ruim sobre a própria capacidade cognitiva – apesar de não podermos ignorar a força que essa parte da população tem para eleger seus “mitos”. 

O presidente Lula estava na Etiópia quando, em seu discurso, disse a seguinte frase: “O que está acontecendo na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”. Depois, em entrevista no Rio de Janeiro, Lula voltou a afirmar ser a favor da criação do Estado da Palestina e classificou os ataques de Israel à Faixa de Gaza como genocídio. 

De fato, depois da declaração de Lula, milhões de comentários antissemitas foram postados nas redes sociais. A fala do presidente inflamou o ódio que muitas pessoas alimentam contra os judeus – e antissemitismo é crime desde o final da Segunda Guerra Mundial, quando a palavra “genocídio” também foi criada para se referir ao extermínio em massa de um grupo de pessoas. Apesar de não ter usado especificamente o termo, Lula fez uma comparação entre o Holocausto e as ofensivas contra os palestinos, feitas por Israel. 

Lula mexeu numa ferida muito dolorosa dos judeus: o assassinato de 6 milhões de seus antepassados em campos de concentração. Vale lembrar que o Holocausto perseguiu e matou também religiosos, negros, pessoas dos grupos romani, homossexuais, pessoas com deficiência, ladrões e prostitutas. “Pimenta no dos outros é refresco”. Uma grande parte da comunidade judaica considerou a fala de Lula antissemita, por comparar o que está acontecendo em Gaza com o Holocausto, afirmando que nada pode ser comparado à maior dor do povo judeu. 

Nazismo é crime, assim como deveria ser crime, com direito à prisão, qualquer manifestação em apoio ao nazismo, uso dos símbolos nazistas e qualquer outro aceno que apoie as práticas de Hitler e do Terceiro Reich – e que os apoiadores do Bolsonaro fizeram aos montes. Lula não fez nada disso, fez uma comparação com o tom (imagino eu) de provocar na comunidade judaica espanto e alguma empatia ao que está acontecendo com o povo palestino. É como se ele dissesse: “Sabem a dor do Holocausto? É a mesma dor que Israel está provocando nas famílias palestinas. Israel está agindo como agiu Hitler, algoz do povo judeu”. Todo mundo sabe: mexer numa ferida profunda (e não tão bem curada) faz quem foi ferido gritar. 

A questão aqui é um pouco mais complexa: como hierarquizar a dor e colocar o genocídio do povo judeu em um degrau superior ao extermínio de tantas populações no mundo? Como disse Emicida: “a dor dos judeus choca; a nossa, gera piada”, na música “Boa Esperança”. Eu não sou negra, usei a palavra “nossa” porque é a palavra que Emicida usa na letra – mas eu consigo perfeitamente traçar o paralelo que o rapper fez entre o Holocausto judeu e o extermínio da população negra no Brasil. 

Pensando, atentamente, sobre esse lugar “intocável e indiscutível” que o genocídio do povo judeu alcançou, enquanto tantos outros são tratados como piada ou indiferença, levando em consideração que Israel é uma das maiores potências militares atuais, já que tem apoio irrestrito dos Estados Unidos, eu cometi o maior erro de principiante que alguém pode cometer em toda a internet: fui comentar uma publicação sobre o assunto. A regra é clara e eu quebrei. É cada oportunidade que Lula e eu perdemos de ficarmos calados…

Uma das respostas ao meu comentário, no entanto, fez meu arrependimento chegar ao nível máximo: “Deixe o lugar de fala para quem tem direito”, escreveu a querida. Honestamente, a pessoa que inventou e, anos mais tarde, as outras que popularizaram a expressão “lugar de fala” não faziam ideia do monstro que estavam criando. De repente, “lugar de fala” virou uma forma de silenciamento, um “cala a boca” geral, como se as pessoas não pudessem ter seus próprios pontos de vista. 

É óbvio que eu não posso falar pelo povo judeu, já que nem judia eu sou. Mas isso não significa que eu não possa ter um ponto de vista diante dos fatos. “Lugar de fala” entrou para minha singela lista de expressões, palavras e termos que os milhões de falantes da Língua Portuguesa não aprenderam a usar. Mas sempre há tempo para um Guia Rápido:

  • “Ao invés de”: expressão que significa “o contrário de”. Aplicações em frases: “A noiva, ao invés de chegar de branco, chegou de preto” ou “Ao invés de seguir para a esquerda, fui para a direita” ou ainda “Ao invés de ligar, ele desligou o aparelho” e ainda “Falei, ao invés de ficar calada” (baseado em fatos reais recentes). Em todas as outras situações, onde a ação contrária não foi feita, a expressão correta é “em vez de”. Aplicações em frases: “Em vez de vir para o escritório hoje, ela veio no sábado” ou “Em vez de comprar um carro preto, escolheu um carro vermelho” ou ainda “Em vez de passar a bola, chutou para o gol”.  
  • Literalmente: significa que algo foi feito no sentido literal da palavra. “Literalmente” não é uma expressão de ênfase. Dizer que alguém foi “literalmente fuzilado na reunião” é dizer que uma pessoa da reunião sacou um fuzil no meio da sala e atirou na outra, espalhando sangue e tripas para todo lugar. Falar que alguém “literalmente morreu de rir” significa que a pessoa riu tanto que não está mais viva para ler esse texto. A palavra “literalmente” não é um advérbio de intensidade, foi criada para dizer que algo aconteceu no sentido literal, ou seja, exatamente daquele jeito. Eu, literalmente, não sei como explicar melhor. 
  • Os sinais de aspas: As aspas podem ser usadas para duas coisas, apenas. A primeira delas é reproduzir, dentro de um texto, a fala de outra pessoa (o que ela disse ou escreveu, LITERALMENTE) ou, na mesma linha, citações gerais, por exemplo: semana passada, assisti “Pobres Criaturas” (nome do filme). Outro exemplo: o ditado “quem não tem cão, caça como gato” é muito usado no Brasil (citação da expressão). A segunda delas é indicar que uma palavra ou expressão está sendo usada da forma errada, propositalmente ou ironicamente. Por exemplo, se eu dissesse que conheço alguém que “faz entregas” e, na verdade, essa pessoa fosse traficante de drogas. Ou ainda, se eu fosse da máfia e dissesse que “fui levar o fulano para viajar”, quando, na verdade, fui matar o dito cujo. 
  • Finalmente, “lugar de fala”: a expressão que aterroriza os debates modernos. Todo mundo tem lugar de fala, é só estar em um lugar e saber falar (ou se comunicar, da forma que for). O ponto é que todas as pessoas têm lugar de fala – só que são lugares diferentes. Eu não posso dizer que sei a dor que os judeus sentem ao lembrar do Holocausto – é claro que não sei. Mas eu tenho, sim, lugar de fala sobre o assunto: o meu ponto de vista, embasado ou não. Opinião não é fato, mas ela pode ser baseada em fatos (aliás, deveria ser, mas o ser humano nasceu sem esse “filtro”). Um homem não pode dizer como uma mulher se sente em uma sociedade machista, mas ele tem lugar de fala – ele pode falar do ponto de vista masculino. Isso não quer dizer que eu não possa sentir empatia pelos judeus, pela população negra que sofre extermínio, pelos palestinos, por qualquer outro grupo do qual eu não faça parte. Também não quer dizer que eu não possa ter opiniões sobre os assuntos, ou falar deles, ou questioná-los. E, se tem uma coisa que eu tenho, são opiniões. 

Imagina se a gente usasse “lugar de fala” em, literalmente, todos os assuntos. Os especialistas e pesquisadores não poderiam escrever sobre nada que não se restringe ao universo deles. Uma médica com menos de 65 anos não poderia ser geriatra. Não existiriam homens ginecologistas. Não existiriam psiquiatras. Não existiria democracia representativa. Ter uma perspectiva sobre um determinado assunto não é roubar o lugar de ninguém. O limite está em você reconhecer seu lugar dentro (ou fora) daquele assunto, seus próprios limites dentro do tema e falar sobre a sua perspectiva. 

Você pode ter critérios para admitir a opinião de alguém sobre um assunto. Nesse caso, por exemplo: quem está opinando sobre a polêmica da fala do Lula sabe o que foi o Holocausto? Conhece, minimamente, a história de Israel e as perseguições que os judeus enfrentaram? Tem alguma mínima noção do que é antissemitismo e sionismo? Sabe dizer quem é o Hamas e como o grupo age? Leu a entrevista que Lula deu sobre o caso? Sabe localizar a Faixa de Gaza em um mapa mundi? 

Eu mesma não admito a opinião de um homem sobre o aborto se ele não conseguir responder quatro perguntas básicas: O que é menstruação? O que é DIU? O que é TPM? Qual a diferença entre vulva e vagina? Eu não posso dizer o que uma mulher sente durante a dor do parto, eu nunca pari ninguém. Mas posso dizer o que acho sobre as políticas em relação ao parto humanizado ou sobre a exclusão das mães no mercado de trabalho.

Meu combinado é: vamos continuar, livremente, a usar as expressões “literalmente” e “ao invés de” em desacordo com a norma formal da Língua Portuguesa. Continuemos, sem medo, a usar as aspas indiscriminadamente. Mas, por favor, vamos parar de acabar com qualquer conversa ou debate apelando pelo inexistente “lugar de fala”. Pode ser?