Por Ana Joulie, Psicóloga especializada em patologias graves, fundadora e diretora clínica da Rede Internacional de Acompanhamento Terapêutico (RIAT)
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Quanto dos pais e da família há no caminho dos filhos? Ninguém chega a algum lugar sozinho

Costumo dizer aos que se tornam meus pacientes de psicoterapia que todos nós somos a junção, a soma, o cruzamento, o entrelaçamento de nossos genitores. Não surgimos no mundo de maneira autônoma, independente e isolada. Inclusive, antes de nos tornarmos conscientes de quem somos, já somos alguém para muitos (pais, família, sociedade etc.). Na maioria das vezes, já possuímos nome e contraímos uma “bagagem” genética e cultural, assim como passamos a compor dados estatísticos em diferentes áreas. Falo sobre isso porque, na maioria dos casos, o processo terapêutico leva o indivíduo à busca por ser autônomo, se encontrar e adquirir uma subjetivação sem cópia, singular. No entanto, durante esse processo de individuação, como diria Jung, temos que compreender o que não é, de fato, nosso.

É curioso quando, ao perceber essa condição, nos deparamos com todo o processo evolutivo que fomos condicionados a viver. Então surgem algumas dúvidas: gosto mesmo disso? Por que tenho que participar de tal convenção social? Por que repito comportamentos de meus familiares? Por que sinto determinadas emoções quando ativo meus sentidos sensoriais? Por aí vai e pode ser desconfortável. Afinal de contas, nos “perdemos” em busca de habitar e adquirir melhores condutas pessoais, nos tornando mais autônomos.

Ser a soma de dois é uma questão exata e sem exceção. Não dá, ainda, para se tornar alguém sem a junção antecipatória de dois elementos. Logo depois de conversar com meus pacientes sobre essa condição de não ser autônomo e estar inserido em um sistema social, explico sobre o processo de crescimento, amadurecimento e independência que advém de uma separação. Mas do estamos falando? Da separação gradual que temos que fazer de nossos referenciais parentais e daqueles que nos criam, sejam pessoas ou instituições. Além, é claro, da questão biológica e psíquica que é muito mais forte no que diz respeito à construção do indivíduo.

Considerando que somos seres biológicos e sociais, já sabemos que temos características físicas e demandas sociais que nos moldam. É muito difícil nos desligarmos delas. Por exemplo, a cor dos olhos, a herança da casa, posicionamentos políticos, religiosos, esportivos etc. E além desses fatores também possuímos a herança psicológica, que não consta nos registros de DNA, mas está em nosso inconsciente e memória, que arma um complexo emocional e que, muitas vezes, se perpetua em várias gerações.

A herança psicológica traz definições que podem ser eternas. Se não houver uma atenção perceptiva, o indivíduo pode repetir padrões disfuncionais do passado (de seus antepassados) e vivenciá-los de maneira natural, desenvolvendo traumas e ansiedades que não lhes correspondem.

Gosto muito dos escritos de René Kaës, psicanalista francês, sobre esse tema. Ele traz uma construção muito bem analisada sobre as relações geracionais, dando ênfase às transmissões psíquicas. Kaës fala de duas modalidades de transmissão psicológica, a sem transformação, conhecida como transgeracional e a com transformação, denominada de intergeracional.  Ambas fazem parte de todos os indivíduos, e no processo terapêutico são igualmente trabalhadas para que ocorra uma separação adequada do indivíduo e seus referentes parentais.

A transmissão transgeracional é dada quando se passam formações psíquicas de um indivíduo para o outro, sem consciência para ser interrompida. Se transmite de forma inconsciente, não falada. Geralmente só ocorre identificação em análises profundas de emoções e comportamentos. Já a transmissão intergeracional, o processo é mais consciente, pode-se trabalhar a interrupção de forma mais fácil, pois ocorre de maneira mais concreta o que é transmitido inconscientemente e o que é herdado. Para ambas as transmissões, atua um mecanismo de defesa chamado identificação, recurso psicológico que todos nós possuímos para lidar com o que nos influencia.

Quando aprendemos que somos um complexo quebra-cabeças, que uma rede de conexões nos envolve, e temos a visão de que somos a soma de influências recebidas, nos tornamos mais empáticos com nós mesmos e com nossos pais, ou referentes parentais.

Nossa família é a primeira construção social que temos, é com eles que aprendemos as primeiras normas e descobrimos nossos primeiros sentimentos e afetos. Nossa formação começa com eles. Por isso, é tão complicado na fase adulta não ter as “pulgas atrás da orelha” quando temos que tomar decisões e definir os ciclos de nossas vidas. Além, é claro, de trazer nossa família junto, para compartilhar essa evolução de crescimento. Os pais sempre estarão como base, seja para ir ou para voltar.

É muito comum visualizar as conexões que temos com nossos pais, ver padrões familiares que são repetidos de geração em geração. Certamente você conhece alguém que construiu sua vida com muita similaridade à vida dos pais, em algum aspecto. Por exemplo, uma pessoa que é médica e que tem seu pai e filho que também são médicos. Alguém que tenha repetido, literalmente, comportamentos de seus pais, como uma família em que a avó se tornou mãe aos 18 anos, a mãe com 19 e pessoa aos 16 anos, e que todas possuem transtorno de humor. Conhecem histórias assim? É muito comum.

Nossa herança psicológica é dada como uma herança material, como a condição biológica também, tem as questões positivas e as negativas. Imagine ganhar de herança uma fortuna de bilhões de dólares, seria fantástico! Mas, e se você ao invés ter uma fortuna herdada, você herda centenas de dívidas, com multas acumuladas? Seria terrível! Assim também ocorre com nossas heranças psicológicas, nem tudo é maravilhoso e desejado e o pior, é dado como surpresa na maioria das vezes.

Como não sabemos o que pode vir e se desenvolver, temos que buscar conhecer e nos habilitar para sermos melhores em aspectos pessoais e interpessoais, só assim vamos poder nos diferenciar de uma forma saudável e consciente.  Quanto mais tivermos informações a respeito de nossa história familiar, momentos e situações vivenciadas entre os membros da família, melhor será nossa construção subjetiva, nosso desenvolvimento humano, quanto mais conhecimento adquirido, mais capacidade de criar uma história nova, assertiva e construtiva.

Construir a subjetividade é uma tarefa muito importante para todas as pessoas, pois permite um avanço pessoal e social. No entanto, nunca conseguiríamos alcançar os 100% de autonomia, pois assim como somos 50% de pai e 50% de mãe, no aspecto biológico, não temos como criar, isoladamente, uma estrutura emocional sem inferências de ambos. Nossa existência é feita de conexões perpétuas, de laços que não se desprendem.

Empatizar com nossa pré-história, história e nossos pais nem sempre é fácil, mas pode-se tornar um bom início para a desvinculação de tudo que não queremos nos identificar e repetir. A psicoterapia é a ferramenta necessária para quem quer entrar nesse processo de construção pessoal, em busca de sua individuação.

Aceitar suas origens, realidades, heranças e querer estar com elas, em buscas constantes de melhorias, é uma ótima prática para obter boa saúde mental e social! Converse com os conteúdos que sua família lhe deu e busque utilizá-las da melhor forma, assim como também reparar e excluir o que não te convém, o que não queres reter.

“Sou uma gota d’água.
Sou um grão de areia.
Você me diz que seus pais não lhe entendem.
Mas você não entende seus pais.
Você culpa seus pais por tudo.
E isso é absurdo.
São crianças como você
O que você vai ser, quando você crescer?”

Compartilho essa canção com vocês, que traz um pouco dessa relação, inevitável, entre pais e filhos.