Por Marta Dueñas, Jornalista 
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A retirada das tropas militares dos EUA abriu caminho para o avanço do talibã

Após 20 anos de sua expulsão de Cabul pelos Estados Unidos, o grupo extremista talibã volta ao poder numa jornada de violência com a tomada de cidades e províncias. O avanço talibã parece coordenado com a retirada das tropas estadunidenses de seu território, resultado de um acordo de paz tramitado ainda no governo Trump cujas cláusulas, ao que tudo indica, não foram lidas pela organização. Parece mentira que, após o pesadelo do Estado Islâmico, tenhamos a volta do Talibã.

Desde o último domingo (15), a população afegã vive momentos de horror e o mundo assiste cenas desumanas de milhares de pessoas desesperadas tentando deixar o país. No aeroporto da capital, a população aterrorizada amontoa-se em aviões e, agarrados pelo lado de fora da aeronave, tentam fugir. Uma cena me congelou: a queda de uma pessoa de um avião em pleno voo. Enquanto eu assistia, pela televisão, aquele corpo caindo outra queda se costurava: um homem que se jogou do World Trade Center antes que as torres viessem abaixo. Era como uma continuidade da cena, sem saber qual vinha antes e qual depois. Corpos que caem amarrando relações desde antes de 2001, ano que marcou o ataque aos EUA.

A relação do império com grupos extremistas não é de hoje, enquanto ocorrem disputas, negociações e desacordos, corpos caem. Horas o governo norte-americano se veste de vítima, outras de herói. A democracia dança com o extremismo. Quem puxa essa dança?

Neste novo e nefasto capítulo, as tropas extremistas foram tomando cidades e províncias avançando em direção à capital numa sucessão de movimentos táticos aparentemente óbvios. Talibãs avançam, tropas norte-americanas – seguidas de inglesas e outras – são retiradas em virtude do acordo assinado, presidente deixa o Afeganistão e o exército local não age. Foram 20 anos de ocupação dos Estados Unidos. O que foi feito nesse tempo? Como pode um território ficar ocupado por tropas militares internacionais por duas décadas e não estar, digamos assim, preparado para resistir a um ataque como esse? Que termos faltaram no acordo de paz? Em se tratando dos Talibãs, nem tudo que está escrito pode ser lido, em se tratando dos EUA, também.

O Talibã reaparece com ares de mudança, mesmo diante da desconfiança internacional. Por meio de seu porta-voz, o movimento procurou garantir que não haverá perseguição política e tampouco violação dos direitos das mulheres. Enquanto entoam um discurso mais suave, a imprensa internacional libera imagens de membros de tropas talibãs brincando em carrinhos, se divertindo em aparelhos de academia. Uma atmosfera diferente da truculência do passado, mas com baixíssima credibilidade. Enquanto batem de porta em porta para mapear cidadãos e estimular que voltem ao trabalho, professores se despedem de alunas, mulheres apavoradas deixam escolas, universidades e protestam em Cabul. A cena, para mim, tem uma sinopse: os homens brincam, as mulheres sofrem. E o pior segue: mulheres solteiras e meninas são obrigadas a serem entregues ao grupo.

O parlamento inglês critica o primeiro-ministro Boris Johnson em uma tardia retirada de todos os afegãos que auxiliarem as tropas e ONGs estrangeiras este tempo todo, como intérpretes e informantes e agora abandonados, simplesmente deixados para trás, são caçados pelo extremismo.

O discurso de mudança não ganhou a confiança da população.  Vale lembrar como surgiu o Talibã: um movimento insurgente financiado pelos Estados Unidos a fim de terminar com a dominação soviética no Afeganistão nos anos 70. Inicialmente, o movimento tinha simpatia por parte da população afegã já que defendiam agendas desejadas pela comunidade como reorganização do país, retomada da paz e do crescimento e combate à corrupção e ao crime. No curso dessa agenda, os extremistas promoviam perseguições sociais, suprimiam direitos civis, faziam execuções ou torturas em praça pública e aplicavam penas implacáveis a quem julgavam criminosos, especialmente às mulheres.

Toda essa agenda programática inicial, de moralização do país, se converteu num duríssimo sistema que definiu, inclusive, a estética, os hábitos e, principalmente, os direitos da população. Em nome da paz e da “limpeza” no país, o Afeganistão comprou um regime totalitário e perverso, especialmente para as mulheres.

Nos anos 90, durante o regime Talibã, as mulheres eram proibidas de estudar e trabalhar. Marginalizadas, elas foram também censuradas, silenciadas e invisibilizadas. Outra lembrança vem à tona, de Malala Yousafzai, paquistanesa que sobreviveu a um atentado pelo mesmo grupo, enquanto ia à escola. E agora, como será? Porta vozes do regime asseguram que os direitos das mulheres serão respeitados e que não haverá perseguição a apoiadores do antigo governo. A população não acredita, algumas universidades e escolas já estão fechadas e muitas mulheres já deixaram seus trabalhos com medo de represálias violentas.

A combinação do estado com religião e militarismo é parte do terror que a população vai enfrentar por meio do regime talibã. O discurso ufanista, as ideias conservadoras e a visão machista emolduram seus ideais. Mas não se engane, a religião é uma das bandeiras, mas não é o que sustenta o talibã. O Afeganistão tem uma localização estratégica, riqueza mineral, domínio da produção de ópio no mundo – o que financiou o grupo e colocou os Estados Unidos no centro de outro escândalo (não deixem de assistir ao documentário O crime do século, da HBO). A China sabe disso, a Rússia sabe disso, os EUA sabem e os talibãs também. Parece cena de filme outra vez, em uma coincidência ou anagrama, de Bin Laden a Joe Biden, o terrorismo segue vencendo e as mulheres sofrendo, enquanto o mundo assiste.