Por Regina Fiore, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

Se você tem entre 30 e 40 anos, está empregado e trabalha em alguma das empresas mais famosas (ou nem tanto) do Brasil, deve ter ouvido falar ou acessado a Planilha de Empresas Tóxicas do Brasil-il-il, lançada há duas semanas. Basicamente, é uma planilha feita no Google Drive a partir do preenchimento de um formulário anônimo, no qual os participantes escrevem o nome das empresas e os motivos pelos quais eles consideram as companhias péssimos lugares para se trabalhar. 

A planilha não é auditada, então, desde que ficou popular, abriu espaço para a quintabê. Fica nítida a colaboração de algumas pessoas que, com certeza, não trabalham nas empresas tóxicas (ou estão querendo descredibilizar a planilha): estão reclamando do McDonald’s, por não ter trazido o McItália de volta na última Copa do Mundo, da S.E. Palmeiras, por não ter Mundial, e apareceu um defensor exaustivo da superioridade de Minecraft em relação ao GTA. Ignorando a parte de avacalhação, são dez mil respostas nomeando empresas e enumerando diversos motivos para serem consideradas tóxicas. 

Todas as respostas são frutos de experiências pessoais, ou seja, o que a pessoa experimentou, individualmente, dentro da empresa da qual está reclamando. Opinião pessoal não é fato – primeira consideração. Muitos dos participantes foram demitidos das empresas que estão sendo comentadas e se sentem injustiçados. Naturalmente, o sentimento de rancor prevalece, por isso são comentários que nascem amargados pela bile, direto do fígado – segunda consideração. A maioria das reclamações são inerentes ao que conhecemos como “O Fantástico Mundo Corporativo”: a realidade de 99% das empresas brasileiras – terceira consideração. As queixas são intrínsecas aos elementos essenciais do trabalho empresarial: cultura organizacional, diversidade, pagamento de bônus, avaliação de desempenho e liderança – quarta consideração.

Tais considerações invalidam o que as pessoas têm expressado na planilha? Não necessariamente, principalmente se as reclamações se repetem e se estão baseadas em fatos. Por exemplo, se fosse uma planilha sobre os piores restaurantes para jantar, uma pessoa poderia ter escrito: “É nojento comer nesse lugar, fui mal atendida. Os pratos quentes chegam frios e os pratos frios chegam mornos. Encontrei uma larva na salada e, quando fui reclamar, o gerente não me deu atenção”. Tem muita coisa misturada nessa reclamação. Vamos supor que outra pessoa comentasse, sobre o mesmo restaurante: “No geral é bom, mas os pratos chegam frios e a salada parece mal-lavada, melhor optar por outras coisas. Mas é barato e o ambiente é bem aconchegante”. 

Os fatos sobre o tal restaurante: os pratos quentes, de fato, chegam frios e não há muita preocupação com a higiene dos alimentos. Os sentimentos que o tal restaurante despertou nos clientes: raiva (já que as pessoas perderam tempo indo até a planilha e escrevendo sobre o restaurante), falta de atenção com o cliente e aconchego. Ou seja, algumas coisas podem se aproximar mais do que são fatos e outras coisas estão mais no campo emocional de quem escreve. Ainda assim, o fato é que eu, pelo menos, vou evitar escolher para jantar um restaurante que não prioriza a higiene no trato dos alimentos. 

De acordo com relatos, o selo que as empresas deveriam se preocupar em colocar nas redes sociais e no processo de contratação | Imagem: GettyImages

Independente da raiva, da bile, do rancor, dos sentimentos de injustiça que motivam as reclamações, os fatos sobre muitas empresas são repetidos incansavelmente por alguns participantes. Mais do que isso: algumas situações descritas na planilha são crimes – racismo, importunação sexual, fraude, lavagem de dinheiro, contratações irregulares, roubo. Se algum jornalista, ou alguém muito dedicado-stalker-FBI-curioso, investigar essas ações e encontrar provas concretas sobre os assuntos, além dos relatos da planilha, a empresa pode ser processada criminalmente pelo MP. 

Alguns comentários citaram nominalmente as pessoas com práticas inadequadas – o que poderia render processo civil, de ambos os lados. Outros comentários são desabafos sinceros e denúncias graves, que só a proteção do sigilo e do anonimato é capaz de incentivar: “só tem doido nessa empresa”, “o dono é megalomaníaco”, “meu chefe me obrigava a rir das piadas dele”, “empresa arr*mbada”, “diretor careca”, “parece um culto ou uma seita”, “o diretor é uma piada”, “suga sua alma”, “diretora do Jurídico teve um caso com CEO”, “pura ideologia socialista”, “o convênio médico é bom, porque você vai precisar usar”, “desenvolvi uma hérnia no meu s*co, de tanto carregar peso”, “feudalismo disfarçado”, “só falta o chicote”, “os donos da empresa estão sempre em pé de guerra porque são divorciados”, “empresa gerida por um bando de imb*cis”, “cria psicopatas e doentes”, “diretor maluco e incoveniente”, “bando de fofoqueiros de m*rda”, “o dono é lunático”, “pagamento em dinheiro, em pleno 2024”, “meu maior arrependimento”, “empresa mão-de-vaquista”, “Notebooks mais velhos que meu avô”, “c*garam no canto do escritório porque vigiam as idas ao banheiro”, “é obrigado a fazer tudo em equipe”, “pessoas toscas, que acham que são blogueiras”, “Socorro! Me tirem daqui!”, “cultura da gritaria”, “nos obrigam a tomar aquele café horroroso em reuniões de venda”, “empresa faz lavagem cerebral”, “RH extremamente debochado”, “demite pelo WhatsApp”, “tem um demônio na empresa”, “essa casa é um hospício”, “o chefe é maluco, pinel, mas gente boa na cachaça”, “mais tóxica que Chernobyl”, “Imagem a série The Office”, “já fui ameaçado de morte”, “o diretor acha que a galera é a turma do Scooby-Doo, para ficar resolvendo mistérios”, “a definição de caos”, “a mulher do dono come a comida dos funcionários”, “ser contratado é assinar seu óbito”, “Jesus, socorro”, “fornecem marmitas com comidas azedas para os funcionários”, “quem está aqui é porque não conseguiu lugar melhor”, “teto da empresa caindo amianto”, “não gosto do bigode do meu chefe”, “gestor pede dinheiro emprestado para colaboradores”, “obrigaram uma funcionária a fazer aborto”. 

O criador dessa planilha, instaurador do caos, cavaleiro do apocalipse moderno, organizador da maior terapia em grupo assíncrona dos dias atuais, expôs o que muita gente já sabe, mas também revelou outros dados interessantes, que confirmam muitas das desconfianças que temos: grande parte das empresas com maior número de reclamações estão nos setores financeiro e de tecnologia. A maioria das companhias com numerosas queixas se posiciona para o mercado como empresas “cool”, com ambiente descontraído e flexível, day off de aniversário, que valorizam a diversidade e a inclusão, prezam pela saúde mental dos funcionários e oferecem crescimento rápido.

“Na cultura empresarial, é mais importante como você é percebida do que as suas entregas” – eu mesma já ouvi isso algumas vezes. Por isso, muitas pessoas relatam que só os “amigos do CEO”, “a panelinha da gestão” ou “os queridinhos das lideranças” são promovidos. Esqueça sua excelência técnica, criativa e propositiva: você precisa ser visto, percebido e julgado como um colaborador que atende às expectativas da empresa. Veio aí o sentimento de “acho que não me encaixo nesse ambiente, não vou me dar bem por aqui, não tenho competência para isso”? Você não está sozinho. Parece que “O Fantástico Mundo Corporativo” não mudou – e nem vai mudar, mas com certeza as pessoas estão mudando suas expectativas sobre o que avaliam ser um lugar saudável para trabalhar e construir carreira. Estamos exaustos (não sei bem do que, mas estamos). 

Uma das empresas, com um número considerável de reclamações, aguçou minha curiosidade: Vaticano Crematório e Cemitério Sedes Paraná e Santa Catarina. Quando li o nome, quem voltou para a quintabê fui eu. Obviamente, é uma empresa como outra qualquer, portanto tem os mesmos problemas que várias das empresas da planilha têm. Mas eu jamais imaginei os funcionários de um cemitério participando de algo parecido. Achei muito engraçado a cultura organizacional de um cemitério ser ruim. Óbvio que eu sei também que existem dezenas de funções administrativas em um cemitério, para além dos vigias noturnos e dos coveiros. Desconsiderando o bom-senso, deixei a imaginação da quintabê fluir. Não li os relatos reais, substituí a maioria deles por frases como:

“Horrível, os espíritos ficam soltos à noite e ninguém faz nada”.

“Não há saúde mental que sobreviva a tantas aparições”.

“Já pedimos para chamar um exorcista e o RH nunca fez nada”

“Exigiram a volta para o presencial de todos, inclusive das almas-penadas”

“Estão todos tão mal que não sei mais diferenciar quem são os clientes vivos ou mortos – e os gestores são mortos-vivos”.

“Eu vejo gente morta com a mesma frequência que o menino do Sexto Sentido”.

“Pagam bônus de acordo com o peso das cinzas dos falecidos cremados, mas eu sempre dou azar de fazer a cremação dos magrinhos”.

“No onboarding, recebemos um cartão que diz ‘Nós, que aqui estamos, por vós esperamos’ junto com o notebook”.

“Não tem Wi-fi entre os mausoléus”. 

“Não recebi PLR porque não bati a meta de engavetamento de ossos”.

“O CEO já morreu, mas consegue continuar fazendo microgerenciamento porque está enterrado lá”.

“O único benefício que temos é o funeral grátis – no pacote básico e com caixão mais simples”.

“Não aceitaram o atestado de afastamento pela morte do meu avô porque o velório dele foi lá”.

“O RH obriga os colaboradores a dançarem Thriller, filma e posta no TikTok, para mostrar que a empresa é descolada”.

Me desculpem, funcionários da Vaticano Crematório e Cemitério Sedes Paraná e Santa Catarina. Vocês têm todo direito de expressar suas insatisfações corporativas – e elas devem ser consideradas, como em qualquer outra empresa, mas eu não consegui controlar meus pensamentos e evitar a infâmia. Depois de me confrontar com a tal planilha – e refletir muito sobre ela, repensei a frase do Seu Madruga, personagem de “Chaves”, que eu gosto tanto de repetir: “Nenhum trabalho é ruim. O ruim é ter que trabalhar”. Parafraseando, pelo menos se levarmos em conta os relatos da planilha: “Todo trabalho é ruim. Ter que trabalhar é pior ainda”. 

Do lado oposto da Lua, ouvi uma entrevista recente do podcast RivoNews com o cientista Miguel Nicolelis – um dos maiores pesquisadores da atualidade. Nicolelis contou que decidiu ser médico quando, em um livro de ficção dado pela sua avó, se deparou com a seguinte descrição de cena: um médico cientista estava começando seu primeiro dia em um novo centro de pesquisa, ao se deparar com um aviso na parede que dizia: “Proibido Fumar”. Ele encarou a placa, tirou do bolso seu maço de cigarro, acendeu e assim seguiu pelos próximos 30 anos, trabalhando no mesmo local, que o tal médico transformou em centro de referência em inovação, pesquisas promissoras e descobertas científicas que revolucionaram o campo da medicina. Nicolelis, ainda criança, leu esse trecho e pensou: “É isso que eu quero fazer. Quero questionar as regras e quebrar paradigmas até que possamos construir novos paradigmas para a medicina”. A ficção é tão poderosa quanto a realidade que, por sua vez, parece mais estranha que a ficção. 

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