Por Camily Rocha, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

Pesquisas comprovam a relevância do empreendimento nas periferias, mas a falta de investimentos agrava as dificuldades de ascensão

Pesquisas recentes têm enfatizado a importância do empreendedorismo nas periferias brasileiras como uma forma de empoderamento social, uma vez que esses empreendimentos contribuem significativamente na geração de oportunidades para pessoas em situações de maior vulnerabilidade. No entanto, apesar de seu impacto positivo, a falta de investimentos reais na periferia está tornando cada vez maior o desafio de ascensão desses negócios.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Data Favela, apresentada durante a Expo Favela Innovation Rio 2023, revelou que quase 40% dos moradores de favelas no Rio de Janeiro possuem um negócio próprio, sendo essa a principal fonte de renda para 23% deles. Entre aqueles que ainda não possuem um negócio, 22% têm a intenção de empreender nos próximos 12 meses.

No entanto, o estudo também mostrou que os trabalhadores enfrentam desafios, como a informalidade, que é uma realidade para a maioria: 75% não têm um CNPJ. Além disso, conseguir capital para investir é um obstáculo frequente para 55% dos entrevistados. Outros desafios incluem gestão financeira (25%) e a falta de equipamentos (24%). Nesse sentido, é notável que esse tipo de iniciativa consegue ir além de uma questão de representatividade, se torna também um espaço de resistência contra impasses.

Para muitas pessoas, empreender é frequentemente a única oportunidade de melhorar suas condições de vida durante uma crise. O artigo “ENTRE SONHOS E SOBREVIVÊNCIA: A (Des)incrustação do Neoliberalismo entre Trabalhadores Empreendedores das Periferias de São Paulo produzido por Leonardo Fontes, teve como principal objetivo de pesquisa analisar a crise na visão da periferia somada com a luta pela mobilidade social e, evidenciou que muitas iniciativas de empreendimentos surgiram a partir de uma crise financeira nacional. “Ao longo do estudo, o ‘empreendedorismo’ foi aparecendo como uma das principais estratégias utilizadas por esses moradores para se inserir economicamente no contexto da crise”, diz Fontes.

Desigualdade de investimentos entre periferias e áreas metropolitanas

Desde 2020, o cenário do empreendedorismo em geral tem experimentado crescimento, impulsionado em parte pela pandemia de covid-19. Contudo, ao analisar o atual contexto de desigualdade social no Brasil, constata-se uma diferença marcante nas oportunidades de investimento entre as periferias e as áreas metropolitanas. Essa disparidade é especialmente vista nos estados com maior fluxo de investimentos, como Rio de Janeiro e São Paulo.

Por isso, é observado então que os investimentos em infraestrutura, serviços e capital estejam concentrados nas grandes cidades e nas áreas urbanas mais centrais. Mas quando pensamos em como isso afeta as iniciativas dos empreendimentos nas periferias, esse fator pode acabar resultando em perdas significativas de oportunidades e visibilidade para empreendedores.

Uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) revelou, em 2021, que o investimento inicial de empreendedores na periferia chega a ser 37 vezes menor do que é aplicado em outras regiões e que são as mulheres negras, principalmente, que estão à frente dos desafios na hora de empreender nas comunidades. Isso pode ocorrer por fatores como a invisibilidade da periferia mediante aos grandes centros, a descrença no retorno financeiro de negócios periféricos, ou até mesmo, a desvantagem geográfica.

Desafios velados

De acordo com o grupo de pesquisa ‘nPeriferias’, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, as visões distorcidas sobre as comunidades podem direcionar, de maneira imprecisa, as políticas públicas e os investimentos privados nestes espaços já que, infelizmente, a periferia ainda é vista como um lugar de estereótipos e preconceitos estruturais.

Dialogando com esse fator, um dos principais desafios velados que as periferias ainda enfrentam é essa falta de representação e participação política, uma vez que as decisões que afetam essas regiões muitas vezes são tomadas por pessoas de fora das comunidades, que podem não compreender plenamente o funcionamento local.

Outro fator relevante é que, diferente das aspirações de empreendedores metropolitanos, os empreendedores periféricos, muitas vezes, por necessidade, colocam os projetos para acontecer com pouco tempo de criação, escassez de recursos financeiros e baixa tolerância para erros.

Uma visão interna da realidade

O Instituto Mulheres Jornalistas conversou com Michelle Fernandes, moradora do Capão Redondo, bairro periférico de São Paulo, fundadora do “Boutique de Krioula”, empreendimento no ramo de acessórios femininos.

MJ: Quando e como surgiu a ideia para iniciar o seu empreendimento?

Michelle Fernandes | Imagem: divulgação

Michelle Fernandes: A Boutique nasceu em 2012. Eu tinha sido demitida do trabalho que já estava há 4 anos. Eu usava o turbante como um acessório para me ajudar na transição capilar. Vi que no mercado não tinham lojas especializadas em turbantes, nem moda afro que conversasse com essa mulher que eu estava resgatando através do cabelo. E aí o meu esposo na época trabalhava numa rua têxtil aqui em São Paulo e começou a trazer uns retalhos de tecido para casa para eu fazer meus primeiros turbantes. Investi R$ 150,00 e comprei meus primeiros tecidos de turbantes. Vi que a necessidade de ter uma loja especializada em moda afro não era só minha, mas também das minhas amigas.

MJ: Quais impactos seu negócio sofreu durante e após a pandemia de covid-19?

Michelle Fernandes: Eu lembro que na época eu ouvi a seguinte frase de uma cliente: “A gente não sabe nem se vai comprar arroz, como que a gente vai pensar em turbante?”, aquilo mexeu bastante comigo. Eu fiquei com bastante medo na época. Mas quando chegou o momento que tava todo mundo fechando as portas e se transformando digital, a gente já fazia isso. Depois que passou a pandemia, no próximo ano, começamos a sentir os impactos da economia. Muita gente desempregada, muita gente sem dinheiro e muitos negócios se reestruturando, o aluguel subiu. Tivemos que sair de um local que a gente tinha mais centralizado aqui no Capão Redondo, para vir um pouco mais para dentro da periferia, para um lugar menor. Tive que desligar alguns funcionários que estavam comigo. Isso se reverbera até hoje. Eu ainda continuo num espaço menor. Hoje eu não tenho funcionário fixo, eu só tenho funcionário sob demanda.

MJ: Como seu empreendimento é originário da periferia, você percebe alguma diferença no nível de apoio que recebe, seja financeiro ou social, em comparação com empreendedores de outras regiões?

Michelle Fernandes: Ah, com certeza. Quando a gente é da periferia, a gente tem muita dificuldade de acesso ao crédito. A gente tem dificuldade em provar que nosso negócio é um negócio que vende, que tem faturamento. Dificuldade de provar que a gente pode enviar para todos os cantos do país, mesmo estando na periferia. Então, uma pessoa que não é daqui e que começa um trabalho ali, de dobradura de papel, consegue escalar um negócio, consegue vender milhões por ano, consegue um aporte, consegue benefícios do banco, consegue várias vantagens que eu ainda aqui na periferia, por mais que eu tenha mais de dez anos de negócio, ainda tô correndo atrás. Então dificulta por ser mulher, negra e por estar na periferia.

MJ: Você sente que há barreiras ou desvantagens específicas associadas a sua localização geográfica?

Michelle Fernandes: Nossa, com certeza. Desde o começo a gente sempre sofreu com essa essa problemática de ser do Capão Redondo. O Correio não retirava na minha residência. Havia as empresas de frete fácil, mais barato, que também não atendiam a minha região, porque era periferia de São Paulo. Fornecedores nunca estão aqui no Capão Redondo. Eu tenho um fornecedor aqui de tecidos, pago um pouco mais caro por ele ser aqui do Capão Redondo, mas se eu quiser comprar alguma coisa em grande quantidade, eu preciso ir mais para o centro. Cada movimento que fazemos, a gente paga e como não estamos perto do centro, acabamos pagando mais para poder ter o que precisamos.

MJ: E como você costuma lidar com essas barreiras?

Michelle Fernandes: Eu acho que nascer na periferia, estar aqui, me torna muito resiliente, me torna uma pessoa que acredita que dá para melhorar. A gente já mandou para todo o Brasil, já mandou para outros países. Não é um trabalho fácil. Brigar com o algoritmo de redes sociais, com o correio que demora para entregar sua encomenda e até mesmo para entregar aqui. São várias problemáticas, várias coisas que nos afastam do sucesso que a gente quer. Mas a gente continua. A gente continua resistindo, sendo resiliente e acreditando que um futuro melhor está vindo.

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