Por Emanuelle Araujo

Mais de 400 relataram terem sofrido algum tipo de violência; 24,39% alegaram assédio e 11,96%, assédio sexual, estupro ou importunação sexual

Um quantitativo de 445 mulheres foram vítimas de algum tipo de violência dentro do ambiente universitário no Estado do Amazonas entre 2017 e 2021. Os dados são da professora Dra. em Serviço Social, Milena Barroso, e serviram de base para as discussões sobre o tema no evento “Saber para resistir, existir e viver”, realizado na última quinta-feira, 7 de março.

O debate inédito abordou sobre o assédio moral e sexual contra a mulher dentro da academia e aconteceu no auditório Rio Solimões do Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (IFCHS), da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

Do total de mais de 400 mulheres violentadas, 24,39% sofreram assédio moral, inclusive em ambiente virtual; 16,11% sofreram humilhação; 11,96% sofreram assédio sexual, estupro ou importunação sexual; e 5,17% foram ameaçadas. A pesquisa foi divulgada em 2021 e rendeu a cartilha “Universidade sem Violência: Um Direito das Mulheres”, além do livro “Violência contra as Mulheres na Universidade”.

“A violência está presente na história das mulheres. A universidade não está isenta dessa realidade. As mulheres estão no fio da navalha da existência. Somos seres sagrados, mas somos ‘matáveis’. Infelizmente este dado não é algo apenas para sensibilizar, é a realidade, mas nem todas se percebem nesse contexto, daí a necessidade de trazermos essa discussão”, afirma a professora Dra Iraildes Caldas Torres, líder do Grupo de Estudo, Pesquisa e Observatório Social: Gênero, Política e Poder (Gepos), que é vinculado à Ufam e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e organizou o evento.

Mesmo habituada a deparar-se com situações de violência contra mulheres, no âmbito da pesquisa, a professora afirma ter ficado “horrorizada” com os relatos e as consequências vivenciadas pelas mulheres dentro de uma instituição de ensino superior. “As estudantes que iniciam na graduação passam por situações que vão desde o medo de serem reprovadas por se negarem a aceitar uma situação de violência até o fato de temerem ser substituídas na bolsa de pesquisa ou não passar na pós-graduação. Algumas relatam receber imagens inadequadas enviadas por professor”.

A pesquisa também indicou uma forte sensação de medo (21,23%) e vergonha das vítimas (18,93%), o que resulta em uma subnotificação de casos de violência: 83% optaram por não denunciar a violência sofrida. Além disso, 16,81% sequer conseguem reconhecer que passaram por um ato de violência. “As mulheres afirmam evitar determinadas rotas dentro da universidade para não terem que se deparar com o agressor”, explica Iraildes.

Para a pesquisa, foram consultadas 1.166 pessoas entre estudantes, técnico(a)s, professore(a)s e funcionário(a)s terceirizado(a)s do Instituto Federal do Amazonas (Ifam), da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). O número de mulheres afetadas por algum tipo de violência corresponde a  38% deste universo. No entanto, quando estimuladas com uma lista de violências não diretas, esse número sobe para 74,82%.

Imagem: divulgação

A mesa com discussão sobre os dados foi conduzida pela doutoranda do Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Rayane de Oliveira Viana, membro do Gepos, com mediação do professor Dr. Adson Bulhões e participação do prof. Dr. Ronaldo Gomes Souza, responsável pela Comissão de Combate ao Assédio Moral e Sexual (Cecam/Ufam).

“Poucas denúncias chegam à comissão. Nem todas conhecem ou reconhecem quando sofrem uma violência. Por isso, queremos fazer um trabalho de prevenção, atuar diretamente nos cursos. Hoje somos responsáveis por fazer o acolhimento da vítima. Conseguimos institucionalizar a comissão no ano passado e o próximo passo é construir políticas de combate. Nossa abordagem de entendimento é que toda a organização é responsável pela situação”, afirmou.

Invisível e estruturante

O discurso dominante por meio da língua, a arte e a religião são estruturas simbólicas de reprodução e estruturação de uma violência invisível contra mulheres. Essa é a conclusão feita pela professora Elisiane Andrade, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, que abriu a mesa de discussão na parte da tarde.

“Qual é o discurso predominante? O de que a mulher é o sexo frágil, inferior ao homem, sensível; uma mulher que é criada para o lar. Há uma divisão biológica e, nesse contexto, o discurso fica no inconsciente. Essa é a violência simbólica: invisível, sem a percepção de quem sofre, acontece de forma suave, ancorada nos sistemas simbólicos que servem como sistema de dominação. É legitimada pelas estruturas sociais”.

O reflexo aparece nos números representativos: nos 26 estados da federação e mais o Distrito Federal, apenas duas mulheres exercem o cargo de governadora no Brasil. Além disso, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral, 18,2% das mulheres foram eleitas em 2022, apesar de representarem 52,65% das pessoas aptas a votar no País.

“Isso nos diz o quanto uma sociedade que é estruturada na superioridade masculina, afeta a vida das mulheres. Precisamos desconstruir isso, diariamente, em todas as instituições. A violência simbólica tem raízes sólidas. Essa violência é o caminho para todas as outras formas de violência dentro de uma estrutura”, afirmou a pesquisadora.

A jornalista Paula Litaiff, mestranda em Sociedade e Cultura da Amazônia, que mediou o debate, lembrou as violências sofridas ao longo da carreira, principalmente como colunista de política e que essa realidade atinge todas as profissões. Quando traduzida em dados por meio de pesquisa acadêmica, começa a fazer a diferença para a sociedade.

“Informações repassadas pela Comissão da Mulher na OAB/AM apontaram que os estudos elaborados pelas Ciências Sociais têm ajudado na argumentação das peças protocoladas por vítimas de assédio moral e sexual. Essas composições aumentam em até 50% das denúncias serem aceitas”, afirmou.

A discursividade presente no ideal do amor romântico é um dos aspectos que ajudam a mascarar a visão que a mulher pode ter de si mesma na sociedade enquanto ser relacional. O tema foi abordado pela pesquisadora Alice Ponce de Leão, profª Dra adjunta do curso de Serviço Social da UFAM. “Essa é uma ideia nociva e perniciosa. O amor romântico é uma fábula, um mito porque ninguém se realiza pelo outro. Só você mesmo. Os iguais não se sustentam. O problema do amor romântico é que ele é violento, traduz a ideia de que existem mulheres para casar e mulheres para se divertir”, afirmou.

O tema “É possível novas formas de amar?”, abordado pelo mestrando Gabriel Machado, também trouxe discussões relacionadas à ideia de posse e de construção social do conceito de relacionamentos.

A MSc. Sofia Oliveira, uma das mediadoras do evento, trouxe a provocação do conto do Barba Azul, produzido originalmente por Charles Perrault e adaptado pela Dra Clarissa Pinkola Estés, no livro ‘Mulheres que correm com os lobos’. A abordagem trata da figura do predador e como a mulher lida com isso durante a vida em todos os ambientes em que circula, desde o universitário até nos relacionamentos conjugais, por conta do mito do amor romântico.

O evento recebeu ainda a exibição do documentário “Dona Maria, cadê tua poesia?”, produzido pelo coletivo Poetisa-te, que conta a história de muitas marias, mulheres da periferia de Manaus, que voltaram a estudar depois de idosas, na busca de entender melhor o contexto, o mundo em que estavam inseridas.

LEIA TAMBÉM:

Mulheres no Automobilismo: Pilotas brasileiras buscam espaço no esporte

Protocolo “Não é Não” entra em vigor para combater violência contra mulheres

Uma em cada cinco notícias sobre violência de gênero justifica a agressão, diz pesquisa