Elza Soares foi dura na queda!
Por Silvana Cardoso, Jornalista- RJ
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Elza Soares costumava dizer que antigamente as mulheres apanhavam caladas. Mesmo que em muitos lugares a mulher ainda seja oprimida e inferiorizada, o legado da cantora pela luta em favor dos direitos das mulheres reverbera por todos os cantos, por onde sua voz ecoou e ainda vai ecoar para as futuras gerações de que não se curvarão para uma vida indigna. “Sou mulher preta, pobre e favelada”, costumava dizer com orgulho de sua incrível história de vida, que merecidamente é um exemplo de superação, já que com apenas 16 anos (foi mãe aos 13 anos) já sabia a dor da perda de dois filhos e do marido.
Também costumava relatar o diálogo com Ary Barroso, quando foi ao programa do compositor na Rádio Tupi, no Rio de Janeiro. Pretendia ganhar o prêmio acumulado do concurso de calouros: “Descobri que cantava e fui tentar ganhar o concurso para salvar meu filho João Carlos, que estava morrendo e não queria perder mais um”. Com 32kg, pegou um vestido da mãe que pesava 60kg, colocou alfinetes para ajustar, uma sandália rasteira e foi ouvir de Ary Barroso a pergunta: “De que planeta você veio?”. O que ela respondeu: “Do mesmo que o seu, Seu Ary. O Planeta da Fome”. Elza ganhou o prêmio, salvou o filho e nunca mais calaram sua voz, que tinha “fome de cultura, de dignidade, de educação, de igualdade”. Ensinava que a fome só muda de cara, mas não tem fim.
Reconhecida pela Rádio BBC de Londres como a voz brasileira do milênio, na virada de 1999 para o ano 2000, Elza Soares se calou com um suspiro, em casa, junto aos seus, de morte natural, no meio da tarde desta quinta-feira, dia 20 de janeiro. Mas morreu de vida, daquela que transbordou em seus posicionamentos autênticos e corajosos diante da crueza do mundo ou das suas tragédias pessoais. E estamos falando da mulher independente, da cantora que após aquele programa de auditório, para salvar o filho que lhe restava, gravou o primeiro álbum alguns anos depois. Uma cantora de samba, com suingue, uma voz rouca que se relacionava com o jazz. Se aproximou da MPB e da Bossa Nova, foi reconhecida por compositores como Caetano Veloso e Chico Buarque. Mas o início da década de 1980 foi mais que um desafio para a mulher guerreira, com a separação do grande amor da vida, o jogador de futebol Garrincha. Por causa dele, a mulher Elza foi humilhada publicamente por ele ser casado quando se conheceram. Por Mané (como ela chamava o craque da seleção brasileira), Elza foi embora do Brasil com o jogador e lhe deu um filho.
Viveu ao lado de um homem que se perdeu no alcoolismo e, como mulher, desistiu. Mas com a morte de Garrincha um ano após a separação e a morte do pequeno Garrinchinha aos nove anos em um acidente, a mulher do fim do mundo, como costumava se auto-intitular, sucumbiu e mergulhou na depressão e nas drogas. Mas, uma mulher como Elza renasce todos os dias. De volta mais uma vez, pediu aos autores Marcelo Yuca, Seu Jorge e Wilson Cappelletti para regravar a música “A Carne” ao seu estilo. Do repertório do seu álbum “Do Cóccix Até o Pescoço”, lançado em 2002 pela Maianga Discos (e relançado em 2018 pela Dubas), o novo retorno de Elza trazia “A Carne” como um pedido de socorro, quando quase aos gritos jogava suas poderosas cordas vocais em versos como “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Em sua biografia, escrita por Zeca Camargo, Elza afirmou sobre a canção: ‘A carne’ é forte, mas não tinha tido grande repercussão. Eu não achava que era música só para um grupo de pessoas ouvir. Era pra todo mundo abrir bem o ouvido e me escutar gritando que a carne mais barata do mercado era a carne negra.”
No repertório do álbum que foi vendido nas bancas de jornal, músicas de Chico Buarque, Caetano Veloso, Carlinhos Brown, Luiz Melodia, Arnaldo Antunes, Arnaldo Nazareth e Jose Miguel Wisnik, este último assina a direção artística, enquanto a produção do álbum ficou a cargo de Alê Siqueira. Considerado um dos principais álbuns da sua extensa carreira, desde 1958, quando Elza Soares foi lançada com gravações em disco de 78 rotações por minuto. Sua discografia com 35 álbuns, em mais de 60 anos de carreira, deixa mais que uma contribuição inestimável para a música brasileira, deixa para as gerações com as quais ela se misturou nas duas últimas décadas – com o rap, do hip hop, do funk e com a música eletrônica, algo que ela fez com maestria ao misturar o samba com o jazz no início da carreira. E esses músicos sabem seu valor, como o rapper Flávio Renegado, que, em julho de 2020, nos primeiros meses do isolamento social pela pandemia da covid-19, esteve com Elza em diversas lives, com encontros intitulados “Negão Negra”, que comemorou os 90 anos da cantora.
Elza Soares se despede do Brasil, desta vida, mas jamais será esquecida pelos brasileiros, seus fãs ou não, deixou como artista e mulher a certeza de uma pessoa à frente do seu tempo, nestes tempos tão díspares. E como queria, cantou até o fim, quando deixou gravados um álbum de inéditas e um DVD. Este último realizado no Theatro Municipal de São Paulo, sem a presença de público ou imprensa, sem alarde, na segunda e terça-feira, dois dias antes de partir com um suspiro, no mesmo dia que morreu o seu amor Mané Garrincha, há 39 anos.
A mulher do fim do mundo, a voz do milênio, que cantou até o fim, merece agora a poesia da letra de Chico Buarque, que diz: Mas a mulher Dura na queda / O Sol ensolará a estrada dela / A Lua alumiará o mar / A vida é bela / O Sol, estrada amarela /E as ondas, as ondas, as ondas, as ondas.