*Opinião de Regina Fiore Ribeiro, repórter do Mulheres Jornalistas

“Somos 70%”. Você já deve ter visto em alguma rede social essa frase como um grito de guerra, pode até mesmo ter se apropriado dela ou mesmo pode ter sido convidado para fazer parte de grupos de discussões no Facebook com um nome semelhante a esse. Quem “somos 70%”, afinal?

Existem dois caminhos para esta interpretação: primeiro, que apenas 30% dos eleitores foi o bastante para eleger Jair Bolsonaro como presidente da República, já que os outros 70% ficaram divididos entre os outros candidatos, abstenções, votos nulos e votos brancos. Ou ainda que o governo atual é aprovado por 30% dos eleitores brasileiros, sendo que os outros 70% consideram a atual gestão ruim ou péssima, muito por consequência da postura do presidente diante da pandemia do novo coronavírus.

Ou seja, a oposição ao governo, independente de que oposição é essa, equivale ao montante de 70% da população brasileira. O número parece gigantesco e suficiente para que haja articulação da oposição para pressionar o atual governo a mudar suas posturas. Alguns grupos falam até de renúncia ou da abertura do processo de impeachment contra Jair Bolsonaro, lembrando que passamos pelo menos processo há 4 anos, em 2016.

Para quem não vê a hora de assistir ao capítulo final do atual governo, a resposta pode ser simples: se juntarmos os 70% que desaprovam o caminho pelo qual estamos seguindo, podemos mudar a realidade da República e destituir Bolsonaro do cargo de presidente, certo? No entanto, precisamos olhar com mais atenção para quem são os líderes deste grande movimento contra o governo atual.

A primeira questão a se enxergar é exatamente o que muitas lideranças, principalmente as de esquerda e centro-esquerda, destacaram durante as eleições de 2018: Jair Bolsonaro não integrava a velha dicotomia democrática entre PT e seus apoiadores versus PSDB e seus apoiadores, mas ao mesmo tempo não era uma nova alternativa dentro do universo democrático e progressista.

Jair Bolsonaro chegava com um discurso autoritário, racista, homofóbico, machista, baseado em jargões populares e sem um plano de governo que de fato o colocasse dentro de algum espectro das disputas democráticas. Nem aos tradicionais debates ele compareceu. Ainda assim, ou talvez por causa disso, foi eleito para o mais alto cargo do Poder Executivo brasileiro.

Portanto, a percepção de que Bolsonaro não jogava pelas regras do jogo da democracia, conquistadas a duras perdas há menos de 40 anos, já existia, ao menos no espectro da esquerda. Não vamos esquecer que, por mais que hoje sejam inimigos declarados do presidente, João Dória, governador de São Paulo, e Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro, apoiavam a candidatura de Bolsonaro fervorosamente: Bolsodória era uma realidade em todas as propagandas político-partidárias.

Vamos aqui deixar de lado os empresários e líderes que historicamente são a favor da manutenção do status quo de desigualdade brasileiro e analisar apenas o posicionamento de João Dória: neoliberal de carteirinha, durante sua gestão como prefeito da cidade de São Paulo reprimiu manifestações legítimas, distribuiu ração humana para crianças, criminalizou professores e promoveu uma caça às bruxas contra pessoas que mostravam alinhamento com a esquerda, assim como grupos de movimentos sociais, além de ter divulgado fakenews e saído do cargo tendo cumprido menos de 20% de suas promessas de campanha para se candidatar a governador. Ele faz parte dos 70%.

Neste meio, temos também Guilherme Boulos, líder do movimento social chamado de Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que foi candidato à presidência pelo PSOL, partido que já fazia oposição à esquerda ao governo de Dilma Rousseff e defende pautas como a taxação de grandes fortunas, o fim do privilégio dos bancos e a reforma agrária irrestrita no país. Ele também faz parte dos 70%.

Qual o ponto de convergência entre Dórias e Boulos? A oposição ao governo bolsonarista. Será que isto basta para que ambos dialoguem e cheguem de fato a um denominador comum para o que seria melhor para o povo brasileiro? Vamos supor que, sim, os 70% conseguissem tirar Bolsonaro da presidência. E aí? Qual plano de governo iria prevalecer? Será que os Dórias estariam dispostos a invalidar o Ministro da Economia neoliberal Paulo Guedes em favor das pautas dos trabalhadores ou revogar a Reforma Trabalhista?

Será que os Boulos teriam espaço dentro de um governo que, com ou sem Jair Bolsonaro, foi arquitetado para a manutenção dos privilégios de classe dos mais ricos, assumindo o conservadorismo de Damares Alves, ministra da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e do General Augusto Heleno, militar e chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, por exemplo? Isso sem contar pautas como o genocídio da população negra, a demarcação de terras indígenas e quilombolas e a descriminalização do aborto, por exemplo.

Um outro ponto importante para a reflexão: as manifestações de 2013. A pauta principal contra o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus de São Paulo foi rapidamente substituída por uma massa disforme que clamava pelo fim da corrupção, a favor da Educação e da Saúde. Basicamente, uma manifestação a favor do bem e contra todo o mal que aflige o país. Quem eram as pessoas que estavam nestas manifestações?

No meio dos protestos, se uma bandeira de esquerda era levantada, as pessoas clamavam pelo apartidarismo e condenavam as organizações políticas de esquerda que reivindicam pautas ligadas a desigualdade social brasileira há muito anos, desde o início da abertura política em 1985 e que durante a Ditadura Militar foram resistência ao autoritarismo, lutando pela volta da democracia. A memória recente não nos deixa esquecer: depois de manifestações massivas contínuas e apartidárias, a sequência de acontecimentos políticos foi decisiva para o cenário que enfrentamos hoje:

  • Pedido de impeachment de Dilma Rousseff
  • Manifestações verde-amarelas que iam desde o apoio ao impeachment até o clamar pela volta da ditadura militar

  • Disseminação de fakenews e do ódio que depôs contra a democracia brasileira

  • Eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da República.

Benedetto Croce escreveu que “toda história é história do presente”, principalmente a história recente pela qual o país passou. O que aprendemos com tudo isso? Há de se pensar se realmente “somos 70%” e qual o interesse que existe por trás de um movimento político apartidário que clama por quase toda a população.

O diálogo entre opostos faz parte do movimento democrático, mas não se pode confundir diálogo com apagamento de pautas principais e do plano de governo que diferencia Dórias de Boulos porque até mesmo tais diferenças mantêm o sistema democrático em pé. Como escreveu Clarice Lispector: “Até cortar os próprios defeitos [nesse caso, as diferenças] pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”.