Dossiê contra opositores e tentativa de Bolsonaro de invadir o STF não geraram a repercussão merecida na opinião pública, que parece em estado de torpor 

Comentarista Melissa Rocha- RJ
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Agradeça todos os dias por viver em um país onde a liberdade de pensamento e expressão é um direito garantido pela Constituição. Por todas as conversas entre amigos, em bares ou cafés, nas quais você pôde expor e defender seu ponto de vista sobre qualquer assunto, sem ter de se preocupar se havia alguém à espreita, monitorando seu grupo e suas ideias. Agradeça, também, por cada postagem que pôde fazer em suas redes sociais defendendo sua posição política, seja ela qual for. 

Agradeça, mas fique alerta: essa liberdade, que tanto prezamos e tomamos como garantida, hoje caminha em corda bamba. E essa não é a única má notícia. Há outra mais alarmante: o cerceamento das liberdades individuais ocorre aos olhos de uma sociedade apática, que parece já não se importar diante dos arroubos autoritários em curso no governo atual. 

Esse torpor foi constatado diante de duas graves revelações que vieram à tona nos últimos dias, e foram recebidas pela opinião pública com um silêncio perturbador. A primeira envolve um dossiê elaborado secretamente pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça, que coletou informações sobre 579 servidores públicos, que se identificam como antifascistas. A maioria dos investigados eram agentes de segurança pública que integram o movimento “Policiais Antifascismo”, mas o dossiê também mirou professores universitários. Há um forte temor de que o dossiê seja usado para perseguir servidores que se opõem à ideologia do governo federal. 

A segunda notícia, foi a reportagem da revista Piauí, que trouxe a estarrecedora revelação de que o presidente da República, em maio deste ano, se reuniu com três ministros militares no Palácio do Planalto para discutir o envio tropas para invadir o Supremo Tribunal Federal, destituir seus ministros e ocupar a Corte por tempo indeterminado. Segundo a reportagem, em meio a palavrões, Bolsonaro bradou mais de uma vez: “Vou intervir!”. O afã ditatorial foi arrefecido pelo ministro Augusto Heleno, que dissuadiu o presidente afirmando que “não é o momento para isso”. O argumento, no entanto, é perturbador, pois sugere que a intervenção não é uma carta fora do baralho para a alta cúpula do governo. 

As duas revelações comprovam que o governo Bolsonaro segue a pleno vapor em seu plano de perseguir e calar qualquer oposição ao seu governo e sua ideologia – algo que o aproxima em muito do venezuelano Nicolás Maduro. Isso é grave, uma vez que nos priva do direito de discordar e atenta contra as liberdades listadas no início deste artigo. 

Porém, em vez de despertar revolta na opinião pública, as duas notícias caíram em ouvidos surdos, sem gerar a merecida repercussão. Isso se explica porque uma parte da população se acostumou ao flerte do presidente com o autoritarismo. Suas investidas contra a democracia, como se diz na gíria, hoje chocam um zero de pessoas. Essa parcela também parece ocupada em se fragmentar, disparando um “fogo amigo” que contribui apenas para pavimentar o caminho para uma nova vitória da extrema-direita em 2022. 

Já outra parcela da população – essa cada vez menor – concorda com a intervenção militar e expressa isso em atos e postagens, exortando o acionamento do famigerado Artigo 142, sem se dar conta do paradoxo que é usar a liberdade de expressão para pedir o fim da liberdade de expressão. Porque em um regime ditatorial não há espaço para críticas. 

Atravessamos um momento atípico da política brasileira e temos o direito de estarmos confusos. Desde que a crise política se agravou, em 2016, a impressão que se tem é que não há um período de paz em Brasília, nem por uma semana sequer. E esse bombardeio de informações nos torna apáticos e indiferentes. Mas devemos nos manter alertas, pois cada vez que ignoramos um arroubo autoritário do governo, abrimos uma brecha para a perda de nossas liberdades. Dando um novo significado ao argumento de Heleno: não podemos recuar na defesa da democracia. Não é o momento para isso.