Por Ana Joulie, Psicóloga especializada em patologias graves, fundadora e diretora clínica da Rede Internacional de Acompanhamento Terapêutico (RIAT) 
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Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista  
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista

Desde o fim de 2019, quando soubemos do primeiro caso de infecção por covid-19, na China, todas as comunidades do mundo estão tendo que lidar com a maior emergência de saúde pública dos últimos tempos, a pandemia do novo coronavírus.

Os fenômenos de pandemia trazem consigo não só as preocupações sobre o aspecto físico, mas também inquietações e transtornos em Saúde Mental, pois afeta diretamente nosso aspecto psicológico e social. O que vivemos nesses últimos meses se tornou traumático, devido à potência do vírus e à toda falta de conhecimento a respeito dele. Não tínhamos estrutura para lidar com o caos e, por isso, estivemos vivenciando cenas fortes, como se tivéssemos em um verdadeiro campo de guerra.

Além da população em geral, algumas classes de pessoas foram afetadas diretamente, como os profissionais da saúde e do comércio, de transporte, limpeza e segurança pública. Os riscos e experiências estressoras da população e desses profissionais que foram mais afetados promoveram um aumento no trabalho entre os profissionais de Saúde Mental, especialmente aos psicólogos e psiquiatras. Cuidar da Saúde Mental não é uma questão simples e objetiva, implica muita dedicação e autocontrole, pois lida com os aspectos subjetivos e abstratos de cada pessoa, além das variáveis que os rodeiam.

Como expôs Steven Taylor, em seu artigo sobre a Psicologia da Pandemia, os profissionais que atuam na linha de frente sentem “risco aumentado de ser infectado, adoecer e morrer; possibilidade de inadvertidamente infectar outras pessoas; sobrecarga e fadiga; exposição a mortes em larga escala; frustração por não conseguir salvar vidas, apesar dos esforços; ameaças e agressões propriamente ditas, perpetradas por pessoas que buscam atendimento e não podem ser acolhidas pela limitação de recursos; e afastamento da família e amigos”, por terem de enfrentar toda essa carga emocional, precisam ter atenção psicológica de forma regular.

Diante do cenário de guerra que a população enfrenta, os principais transtornos e sintomas apresentados por médicos e enfermeiros são ansiedade, depressão, estresse, insônia e irritabilidade. Tais demandas psicológicas são tratadas por psicólogos que atuam em distintas áreas, com abordagens teóricas variadas. A população mundial demanda atenção psicológica de forma expressiva, e quem os atende? Quem cuida da pandemia de transtornos psicológicos que surgiu junto com a pandemia da covid-19? Como estão os psicólogos diante dessa pandemia de transtornos mentais? A Saúde Mental dos psicólogos também é afetada e precisa ser assistida, cuidada.

Esses profissionais tiveram significativo aumento de demanda em seus consultórios nos últimos meses, com alta carga de adrenalina e muito trabalho sobre pressão e tensão, considerando a situação emergencial. Neste período, pessoas que já frequentavam consultórios de psicologia, de forma regular, intensificaram o processo de atendimento. Outras, que iniciaram atendimento psicológico neste período, já trouxeram critérios clínicos de alta complexidade, fazendo com que os psicólogos estendessem a carga horária laboral e de estudo.

Profissionais da psicologia utilizam em seu labor, basicamente, a habilidade da escuta, atenção e percepção das funções egóicas da pessoa que é atendida, assim como a empatia, que é a faculdade de compreender emocionalmente. Eles devem direcionar e concentrar toda a atenção ao paciente/cliente, para poder desenvolver um bom trabalho, sempre mantendo as condições éticas. Nesse processo, o profissional, ou seja, a pessoa que é psicóloga, deixa todas as suas questões pessoais fora do setting terapêutico para poder atender de forma correta.

Foto: Pixabay/divulgação RIAT

No processo terapêutico, o psicólogo deixa de sentir suas necessidades pessoais para empatizar e priorizar as necessidades do outro, porém, isso não faz com que eles deixem de sentir. A diferença positiva que existe entre os psicólogos e outros agentes de saúde é que, no aspecto psicológico, eles possuem conhecimento e disciplina para tratar. Dificilmente um psicólogo deixa de fazer sua autoanálise, autopercepção e autocuidado, porque sabe que isso implica diretamente em seu ofício. Além do mais, os psicólogos costumam fazer supervisão clínica (suporte técnico direcionado) e terapia, o que lhes possibilita estabilidade psíquica, dando-lhes condição de desenvolver seu trabalho.

Ainda não existem pesquisas científicas e validadas específicas sobre a condição da Saúde Mental dos psicólogos, como já existem sobre a Saúde Mental de médicos e enfermeiros que, durante a pandemia, estão ou estiveram na linha de frente. No entanto, de forma empírica, posso afirmar que os psicólogos também foram e estão sendo afetados com toda a demanda pandêmica.

Recentemente, por curiosidade, usei minha rede social para fazer algumas enquetes com amigos e colegas de profissão, e é com base nessa pequena pesquisa no meu grupo social que quero expor o quanto os psicólogos foram e são afetados durante a pandemia, desde uma posição empírica.

Dentro da minha amostra, havia cerca de 28 pessoas, todos psicólogos, que atuam em distintas áreas da psicologia, e estão espalhados por três estados do Brasil: Amazonas, Paraná e São Paulo. Pude realizar 18 perguntas, que me serviram para expor as seguintes questões:

Mais de 80% das pessoas estiveram ativas em seus consultórios durante os últimos meses. Destas pessoas, 95% tiveram aumento no número de pacientes/clientes, com aumento de mais de 50% da carga horária que tinham, para algumas este índice chegou a 80%. Perguntei se elas tiveram que “rejeitar” pacientes/clientes por falta de espaço na agenda, e 45% delas disseram que sim. Perguntei também se sentiram que não dariam conta de suportar tanta demanda e 89% afirmaram que tiveram esse sentimento. Indaguei se eles sentiram sua Saúde Mental afetada e 80% foram positivos. Perguntei também se tiveram a sensação de impotência, se sentiram estresse e ansiedade, e as respostas foram afirmativas, respectivamente, nos percentuais de 56%, 80% e 100%.

Abri um espaço de diálogo perguntando se tiveram algum tipo de sintoma físico ou psicológico devido ao estresse e ansiedade, e obtive respostas como “insônia”, “aumento de peso”, “irritabilidade”, “dores de cabeça e nos ombros”, “cansaço” e “perda de cabelo”. Direcionei algumas perguntas mais específicas sobre a covid-19 e 27% deles foram contaminados, 91% tiveram algum familiar próximo contaminado, 73% tiveram perda de familiares, 100% tiveram perda de pessoas próximas. Perguntei sobre a forma como realizaram seus atendimentos nos últimos meses, e 63% mantiveram atendimento presencial e 37% passaram a atender de forma virtual – neste caso, ainda, enfrentando a novidade de “entrar” no ambiente do paciente e o paciente no seu. A penúltima pergunta foi sobre a demanda de atenção profissional em ambiente familiar, e 90% disseram que tiveram que dar suporte profissional a familiares. A última pergunta foi sobre cuidado com a própria Saúde Mental, perguntei diretamente se tiveram assistência psicológica e 89% afirmaram que sim.

Certamente, a amostra coletada por mim não traz significância no âmbito científico, tampouco é digna de relevância no aspecto quantitativo e ambiental, porém, nos serve para pensar e direcionar mais atenção aos aspectos psicológicos da população em geral, assim como aos nossos profissionais da psicologia, que também estiveram e estão submersos ao caos da pandemia. Assim como qualquer pessoa, os psicólogos padecem de efeitos psicológicos e por isso também requerem de cuidado e atenção.

Existe um fenômeno chamado “traumatização vicária”, que se dá através do processo de contratransferência entre terapeutas e pacientes. Desde a formação acadêmica, os psicólogos já são preparados para exercer habilidades técnicas para cuidar dos aspectos transferenciais. No entanto, as técnicas são ferramentas de uso, cada um compõe sua necessidade e prática. O tratamento de pessoas traumatizadas é potencialmente uma fonte de sofrimento psíquico também para os terapeutas, devido à grande carga emocional envolvida, bem como pelas chances de evocar fortes reações contratransferenciais.

Como disse anteriormente, os psicólogos devem ter, de maneira regular, supervisão clínica e terapia. Os fenômenos transferenciais são evidenciados através desses dois pilares, assim se evita um processo terapêutico falido para ambos. Um melhor entendimento acerca da Saúde Mental dos psicólogos e do processo de “traumatização vicária” contribuirá decisivamente para os resultados de tratamentos psicológicos, além de possibilitar a proteção e a prevenção da Saúde Mental dos terapeutas. Sejamos empáticos com estes profissionais também.

Cuidar da saúde mental é fundamental e cuidar da saúde mental de psicólogos é importantíssimo. Como diz o dito popular, “de perto ninguém é normal”, ninguém está imune de padecer de transtornos e doenças mentais, nem mesmo psicólogos. Então, queridos colegas da psicologia, se cuidem porque muitos precisam de nosso lindo trabalho!

 

Foto de capa: Reprodução Freepik