Big Brother Brasil: o impacto do reality em meio a pandemia da Covid-19
Por Daniele Haller, Jornalista – Alemanha
daniele.haller@mulheresjornalistas.com
Editora Chefe: Letícia Fagundes, Jornalista
Sem distanciamento físico, sem máscaras e com direito a festas, a casa “mais vigiada do Brasil” oferece o que a maioria das pessoas mais deseja nesse momento: viver normalmente. Apesar daquela realidade estar bem longe do que podemos considerar normal, é através do reality que muitos brasileiros conseguem desligar do mundo pandêmico, pelo menos ilusoriamente
No último ano, próximo à reta final da edição do Big Brother 2020, os participantes da casa receberam a notícia sobre o vírus que assolava o mundo e sobre suas consequências. Com o início da pandemia e uma grande parte da população vivendo em quarentena, o Brasil voltou os olhos para a TV aberta, que tem perdido força nos últimos tempos, e alavancou a audiência do programa, ainda no passado. Diante da experiência inédita e o resultado positivo, a Globo repetiu figurinha em termo de modelo de programa, colocando na 21º edição, novamente celebridades e pessoas anônimas. No entanto, há algo a mais por trás do fenômeno que tem sido o programa: a pandemia.
O programa retornou à Tv brasileira em um momento de colapso do sistema de saúde brasileiro, aumento no número de infecções e a pior fase das estatísticas no número de mortes por dia, ou seja, notícias pesadas, negativas, apesar de fatos, mas exaustivas para qualquer pessoa. Com o BBB, surgia então uma válvula de escape?
A Universidade de São Paulo (USP) realizou uma pesquisa sobre saúde mental na pandemia e, dentre os onze países que foram analisados, o Brasil lidera o ranking da lista com maior índice de depressão e ansiedade, com a Irlanda e EUA em segundo e terceiro lugar, respectivamente. A quarentena, o isolamento social, a sobrecarga de trabalho e questões financeiras são fatores que podem impulsionar o surgimento de sintomas da depressão e ansiedade. Com uma parte da população em quarentena e as privações com relação às atividades físicas ou de entretenimento, o programa tem, agora, um público enorme dentro de suas casas, com sede de normalidade e uma certa necessidade de alívio em tempos difíceis.
Será possível que um programa de televisão tenha a capacidade de nos trazer sentimentos, sensações agradáveis ou de alívio durante um momento tão difícil? Como o psicológico é capaz de despertar no público tais sensações através de conteúdos como estes e por quê? Para responder à estas perguntas, a repórter Daniele Haller, do Instituto Mulheres Jornalistas, entrevistou o Psicanalista Christian Dunker, Professor do Instituto de Psicologia da USP.
MJ- Com o início da transmissão do Big Brother Brasil, em meio a tantas notícias negativas sobre a Covid-19, inúmeros brasileiros acabaram se “envolvendo” com programa, com um misto de sentimentos com relação aos participantes. Levando em consideração o momento que passamos, a edição atual do programa traz para o público um peso maior e um significado diferente das edições anteriores?
Christian Dunker- Sim, essa edição desse Big Brother Brasil tem se caracterizado pela quantidade de colocações afrontosas, de emergência de preconceitos, de uma certa falta de noção das pessoas envolvidas, mas também por mimetizar a condições de todos nós, enquanto confinados. Parece um espelho real demais e isso talvez tenha atrapalhado a nossa percepção e a dos envolvidos nesse programa. Acho que o sentimento de que você não pode sair e que está obrigado a conviver com os outros, ele tinha tudo para fornecer, vamos dizer assim, uma visão catártica, no sentido grego, que você percebe o seu conflito e você se distancia dele, você se purga dele, se purifica, ao vê-lo refletido ali no protagonista e no antagonista. Mas não foi isso que aconteceu, aparentemente, o Big Brother perdeu uma grande oportunidade de atuar como um ponto de pacificação de conflitos, de exploração mais produtiva de conflito.
MJ- A forma como o público tem se envolvido, mergulhado no reality, reflete uma necessidade atual de fuga da realidade que estamos vivendo? Um “sair” um pouco do mundo da pandemia?
Christian Dunker- Sim, a captura que o programa produziu dessa vez, podemos dizer que ela é maior, porque é uma identificação mais fácil com um estatuto de pessoas prisioneiras. Ainda mais, porque isso envolve uma certa disputa para se tornar um prisioneiro, para participar ali da casa, para entrar na brincadeira. Realmente, brincadeiras e provas que a gente via em outros programas, em outras edições, dessa vez, ficaram devendo para o mundo real.
MJ- De que forma o programa age em nosso psicológico? Me refiro sobre como ele é capaz de nos trazer uma ligeira sensação de alívio e esquecimento do mundo aqui fora?
Christian Dunker- Uma característica do Big Brother, especialmente nas edições mais recentes, é que ele faculta você descansar do cotidiano parasitando o cotidiano de outra pessoa. Então, o mesmo sentimento de tédio, as mesmas coisas comezinhas, as pequenas decisões, isso tudo vai tornando cada um de nós um herói, porque cada protagonista do BBB, aquele que sobrevive, e no fundo essa moral que vai se infiltrando na gente é a moral da eliminação. É um jogo para ver quem sobrevive e como você faz para excluir outros. Então, ele tem uma finidade com a lógica neoliberal, a lógica do trabalho. No trabalho, a gente vê essa ideia de quem vai ser o último a ser excluído, estamos no mesmo lugar, mas estamos concorrendo uns com os outros, as situações são erráticas, as que se apresentam, as leis mudam de uma hora pra outra, você tem provas, você tem coisas inesperadas. Então, o Big Brother consegue reproduzir com uma curacidade conflitos muito presentes no nosso alvo de produção e consumo. Também as festas, os exageros, o consumo de uma certa sexualidade fora de si, sexualidade que é quase um tratamento para angústia , para a solidão, que é furtivamente mostrada, ou seja, que tem o seu centro de gravidade fora de si mesma, isso tudo o BBB consegue captar e fazer. A metáfora e alegoria da nossa época.
MJ- Esse ano, o programa trouxe participantes que foram vistos como representantes de alguns movimentos, como o movimento negro, feminista e LGBT. A presença dessas pessoas levantou um sentimento de representatividade por parte do público, mas, no decorrer do programa, os mesmos participantes acabaram não agindo de acordo com a bandeira que levantavam, causando uma certa revolta e onda de cancelamento aqui fora. A pandemia, o fato de as pessoas estarem exaustas com todas as medidas já há um ano, pode ter contribuído para que esse cancelamento, o sentimento negativo, com relação a alguns participantes, fosse mais agressivo que o normal?
Christian Dunker- Penso que essa edição tematizou sim a lógica do cancelamento. Tanto porque ela parece ter dado, na escolha dos personagens, privilégios e acentuado pessoas que são, ao mesmo tempo, representativas e expressivas de modalidades de sofrimento na nossa cultura. Então, se esperava uma atitude em que essas diferenças fossem colocadas politicamente, eticamente ou em confronto, ou em uma espécie de adversidade produtiva, mas aí a gente consegue também perceber os perigos de um apego, vamos dizer assim, narcísico, uma instrumentalização narcísica de condições de desvantagem. Então, sob certo ângulo, a gente pode dizer “Olha, essa pessoa é uma pessoa negra”, sob outro ângulo, ela se torna uma pessoa famosa, não é? Qual dos dois traços vai determinar a nossa posição de recepção? Sob determinado ângulo, essa pessoa é um jovem negro de periferia, sob outro ângulo, é um homem que está sendo oprimido por uma mulher. Então, a gente pode dizer assim, a nossa tendência de escuta, de forma a suturar e a desfazer essas desvantagens e desigualdades históricas, ela entrou num certo curto-circuito de complexidade, isso talvez tenha sido um resultado, apesar de um tanto trágico, interessante para a gente repensar a função da identidade na política. De onde a gente fala, quando a gente fala? É só a partir daquele predicado que a gente representa ou estamos também numa conflitiva, cada indivíduo, em que várias vozes estão falando ali ao mesmo tempo, muitas vezes em contrariedade entre si, criando inversão de expectativas, violação de expectativas, como a gente viu principalmente no procedimento da Karol com K.
MJ- Antes de entrarem na casa BBB, todos os participantes já realizavam ou deveriam estar realizando o confinamento aqui fora, agora vivem outro confinamento dentro do programa. Essa situação pode acentuar a pressão psicológica daqueles que estão na casa?
Christian Dunker- Essa questão se assemelha um pouco a uma questão antiga sobre ; se ver imagens violentas, torna a gente mais violento, por imitação, ou nos torna mais prevenidos com relação à violência, na medida que a gente a representa, que a gente a narrativiza, que a gente contextualiza por uma estrutura de ficção. Então acho que as duas forças vão convergir nesse BBB para aumentar a nossa pressão dentro de casa e, de certa forma, como está sendo um Big Brother muito conflitivo e que permite que as pessoas se desloquem dos seus conflitos cotidianos para os conflitos da casa, acho que num balanço ainda, teve resulta positivo.
MJ- Algumas pessoas se dizem viciadas no programa, chegando a passar o dia assistindo através da internet ou Pay- per- view. É realmente possível alguém se viciar em um programa de Tv? Ou isso é apenas um reflexo da necessidade de ver outra realidade além da Pandemia?
Christian Dunker- Sim. É plenamente possível que alguém se torne dependente de uma narrativa, se torne dependente de uma novela, de um livro, de uma série de livros, de uma série de You tube ou de internet, porque entre outras coisas, as séries são feitas por ganchos, por momentos de tensionamento, seguidos de momentos de distensionamento, como a gente vê na casa. Dada a rarefação da nossa escrita do mundo, o jornal, cada vez mais igual, as temáticas que se repetem, apesar dos problemas gravíssimos há um certo olhar de naturalização para as perdas humanas, para o terror que está em curso, para a inépcia. Ou seja, está um clima de anestesiamento geral para o qual o Big Brother acaba concorrendo, ele faz com que o conflito venha e logo em seguida ele seja neutralizado, ainda que seja pela exclusão.
Nos últimos meses, tem sido comum escutar ou ler de colegas, amigos ou parentes assuntos ligados ao BBB. Muitas pessoas certamente irão conhecer alguém que não perde o programa por nada e que está sempre acompanhando, seja por Tv ou celular. Ana Rafaela Brandao é uma daquelas que adoram acompanhar o programa e todas as novidades e, na edição atual, ela contratou o serviço da Globo play para ter acesso ao programa, 24 horas por dia. A assistente social conta que também acompanhou as edições anteriores do BBB, mas afirma que, esse ano, está sendo mais intenso, aproveitando até mesmo as pausas no trabalho para dar uma espiada no que está acontecendo na casa.
Questionada sobre o que a atrai no reality, ela conta que as provas, as conversas, discussões entre os participantes e das vezes que eles parecem esquecer que estão no programa, como se fosse uma “novela real”. Ana Rafaela conta que tem seus participantes preferidos, como Juliette e Camila, e que se sente muito representada pela paraibana: “Juliete por ser nordestina e representar muitas vezes eu mesma, por ser tão falante e, algumas vezes, mal interpretada, mesmo querendo o bem. Ela vem se mostrando muito batalhadora e esforçada, me identifiquei bastante. A Camila por ser amiga por tentar ajudar, por ser leal e carismática”, comenta. Ela conta que o programa tem ajudado, de certa forma, a aliviar o momento que o mundo vive: “Por eu ser Assistente Social, vejo as mazelas referentes as questões sociais em geral. No meu serviço, assistimos 93 famílias de extrema vulnerabilidade e vejo o quanto a pandemia trouxe sofrimento e miséria a muitos desempregados, quando leio sobre isso ou vejo, sinto um misto de sofrimento também pelos outros, não só na saúde como na economia, além do aumento da pobreza extrema. O vírus é devastador, uma angústia a cada dia e, para mim, assistir ao programa é uma forma de esquecer um pouco o sofrimento que estamos vivendo e que permeia os meus dias”, conclui.
Enquanto os expectadores acompanham e aguardam todas as novidades da casa, do outro lado, nos bastidores, o trabalho da equipe do programa vai muito além de realizar festas, provas ou levantar discussões. A edição de 2021 tem sido diferente em diversos âmbitos, na duração do programa, com 100 dias, e o aumento no número de patrocinadores oficiais. Além disso, o número de votações bateu o recorde das edições anteriores, chegando a quase 3 milhões por minuto. Por trás de tudo isso existe um Marketing, uma estratégia minimamente planejada para que esses números e metas fossem alcançados. Por qual motivo a edição exibida no ano da pandemia de Covid-19 tem todo esse diferencial e sucesso? Seria apenas mais um acaso?
A resposta para essa pergunta poderia ser bem simples, levando em consideração o momento que vivemos e que, obviamente, as pessoas têm mais tempo para a tv ou internet, mas existem coisas que vão além do nosso conhecimento ou até mesmo de nossas consciências, os métodos de manipulação utilizados pelo reality. Para conversar a respeito desse tema, convidamos a Professora Lígia Sales, mestre em Semiótica, pesquisadora de Neuromarketing e Consultora de marketing sócia da Ankron Digital.
MJ- A 21 edição do Big Brother Brasil é diferente das anteriores? Ela traz uma carga de significado maior?
Lígia Sales- Sim, esta edição é marcante porque, de certa forma, já estávamos todos confinados desde o ano passado e a necessidade de alívio e doses de dopamina para suportarmos o caos que temos vivido na pandemia se tornou imprescindível. O supérfluo nunca foi tão necessário. Esse envolvimento aconteceu por uma questão de sanidade mental. É doloroso demais saber que o genocídio que temos vivido no país poderia ter sido evitado e não foi. Saber que mesmo morrendo mais de 4 mil pessoas por dia, a maioria de nós terá que se arriscar porque precisa pôr comida na mesa e estamos abandonados pelo próprio governo. É triste demais, por isso, ter algumas horas de alívio e descanso mental se faz necessário.
MJ- A maneira como os telespectadores têm se concentrado no programa pode ser considerada como uma forma de fugir da realidade?
Lígia Sales- Eu não chamaria de fuga, mas estratégia de sobrevivência. A dopamina é um hormônio de motivação e prazer, o que se torna importante num momento como este. Aliás, esta capacidade de resiliência que o povo brasileiro tem, de encontrar motivos para sorrir e se reinventar mesmo em meio ao caos é algo bonito de se ver.
MJ- De que forma o programa pode usar o contexto da pandemia para atrair e manter o público envolvido? Você acredita que o programa tem moldado uma estratégia de marketing se utilizando da situação atual?
Lígia Sales- Sem dúvida nenhuma, o programa sabe que o público necessita deste tipo de entretenimento e usa do neuromarketing para manter essa relação de consumo ativa. A dopamina, como expliquei, é um hormônio do prazer, mas também do vício, porque ela dispara no corpo doses de euforia que logo irão acabar. Sendo assim, o consumidor vai em busca de mais doses para se manter motivado. Sabendo disso, o programa usa de situações que exploram o gatilho de produção hormonal: músicas de narrativas românticas, a construção de super-heróis ou super-heroínas e situações de conflitos. Tudo isso alimenta a relação de dependência do consumidor com o programa. As marcas, sabendo disso, apostam alto para estar presente em toda essa narrativa.
MJ- De que forma as empresas que patrocinam o programa ganham com isso?
Lígia Sales- Elas aparecem no contexto criado e a memória afetiva dos telespectadores se encarrega de associar as marcas aos sentimentos de prazer evocados no programa. O programa ultrapassou a marca de 200 milhões de investimento de patrocinadores. Quando as marcas aparecem nas brincadeiras e provas, inevitavelmente o nome delas, dos produtos e das características dos produtos são repetidas diversas vezes. Faz parte do próprio jogo ter que mencionar os atributos da marca ou do produto. Com isso, sem perceber, os participantes estão emprestando a própria voz para fazer um merchandising.
MJ- Pelo fato de todos os olhares estarem voltados , mais do que nunca, para o programa, além do cansaço com relação à pandemia, os participantes do reality estão mais propensos a serem alvos de cancelamento do que nas outras edições?
Lígia Sales- A questão do cancelamento é intensa, porém breve. Basta observar os números de engajamento de outros participantes como a Karol com K, que foi cancelada, mas hoje já volta a fechar grandes contratos publicitários. O público brasileiro esquece rapidamente o que fizeram, em quem votaram… e como vivemos numa sociedade do efêmero, isto não poderia ser diferente aqui.
MJ- Podemos comparar o público do BBB de 2021 com o público das edições anteriores? Quem é o público de hoje? Mudou algo?
Lígia Sales- O público desta edição é maior que o do ano passado, mas ambos possuem o mesmo perfil. Formado por pessoas que são ativas nas redes sociais, conhecedoras em sua maioria dos gatilhos de envolvimento e marketing e que se veem como coautoras do programa.
MJ- Por que a edição do BBB de 2021 deixou de ser pauta apenas de entretenimento e foi discutida no meio cultural, político, entre outros?
Lígia Sales- Porque as pessoas estão num momento de reclusão e de necessidade de olhar para dentro, para as próprias necessidades. Sendo assim, as questões políticas que envolvem e sempre envolveram o programa (porque afinal tudo é político) tornam-se maiores.