Protestos para impedir que menina interrompesse uma gestação fruto de estupro é a ponta do iceberg de uma agenda violenta contra os direitos das mulheres 

Comentarista Melissa Rocha- RJ
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Que vivemos a era do embate entre a razão e a ignorância não há dúvidas. Mas nenhuma pessoa de mente sã estava preparada para o que se passou no país nesta semana: políticos de extrema-direita e fundamentalistas cristãos tentaram impedir que uma menina capixaba, de dez anos de idade, interrompesse uma gestação, decorrente de estupros constantes que sofria por parte do tio. 

Expuseram a identidade da vítima. Pressionaram a avó da menina para que ela coagisse a neta a manter a gestação. Promoveram uma campanha de intimidação na porta do hospital onde ela foi internada para o aborto. Chamaram de “assassino” o médico que realizou o procedimento. Repudiaram a imprensa por cumprir a lei ao não divulgar a identidade do tio agressor, uma vez que isso implicaria na consequente identificação da criança. 

Uma verdadeira barbárie feita “em nome de Deus”, digna do seriado americano The Handmaid’s Tale, que narra a vida nos EUA após uma facção fundamentalista tomar o poder. 

Mas engana-se quem pensa que o caso é a prova de que chegamos ao fundo do poço. Na verdade, ele é a ponta do iceberg e ilustra o avanço de uma onda ultraconservadora iniciada anos atrás. 

É fato que sempre existiram na política brasileira oportunistas que fazem da religião degraus para sua projeção pessoal e usam fiéis como massa de manobra. Exemplos disso são o ex-deputado Eduardo Cunha e o ex-senador Magno Malta. Mas essa tendência se agravou após o pleito eleitoral de 2014, quando a desilusão política, somada ao uso das redes sociais para disseminação de ideias extremistas, resultou na eleição do Congresso mais conservador desde o golpe de 1964. Nos anos e eleições seguintes, o ultraconservadorismo ganhou força e resultou no cenário atual. Seus adeptos são contrários aos avanços conquistados na área de direitos humanos. E entre eles estão os chamados grupos “pró-vida”, que são contrários ao aborto, mesmo em casos em que ele é permitido por lei – risco à vida da gestante, anencefalia ou gravidez decorrente de estupro. 

Esses grupos assediam e intimidam mulheres que têm direito ao aborto legal a manter a gestação. O caso envolvendo a menina de dez anos não é um fato isolado. Em outubro do ano passado, um desses grupos acampou em frente a um hospital em São Paulo, referência no atendimento a vítimas de estupro, para constranger e coagir as mulheres a não abortarem. 

Proponho aqui um exercício de reflexão: imagine ser vítima de estupro, ter de lidar com o trauma físico e psicológico da violência e ainda ouvir de um grupo de desconhecidos que você deveria manter a gestação, como se fosse algo simples, como carregar um urso de pelúcia na bolsa? Ou passar pela dor de saber que seu feto é anencéfalo e sobreviverá apenas por algumas horas após o parto, caso não venha a morrer ainda no útero, e ouvir que você deve dar andamento ao que seria uma gestação do luto? Pois, para esses grupos “pró-vida”, esse é um dever da mulher e a vontade de Deus.  

O alastramento do fundamentalismo faz parte de uma detalhada agenda, traçada pelo governo e liderada pela ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular, ela foi assessora do ex-senador Magno Malta. Logo após ser nomeada, Damares já alertou qual seria sua prioridade: avançar na aprovação do controverso “Estatuto do Nascituro”, que proíbe o aborto sob todas as circunstâncias. Em casos de estupro, o estatuto prevê que o agressor pague uma pensão à vítima. Caso não tenha condições, o governo arcaria com a pensão – proposta que ficou conhecida como “bolsa estupro”. Chama atenção a violência contida na proposta, que, basicamente, trata estuprador e vítima como um casal de namorados que engravidou por acidente e necessita de apoio financeiro para não abortar. 

Diante de tal empenho de Damares contra o aborto legal, infelizmente, é possível que mais casos como o da menina capixaba ocorram pelo país, uma vez que posição da ministra sobre a questão serve de chancela para as ações de grupos “pró-vida”. Prova disso, é um fato que passou despercebido, mas é carregado de significado: embora tenha condenado o vazamento da identidade da menina, Damares não condenou a campanha de intimidação contra ela.