Um partido que tem em seu estatuto de criação ‘a defesa da liberdade e dos direitos fundamentais da pessoa humana’ não pode deixar um caso de assédio passar impune

Comentarista Melissa Rocha- RJ
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A importunação sexual não tem partido nem ideologia. Diariamente, milhões de mulheres, adolescentes e mesmo meninas são alvo de assédio, que pode ocorrer a qualquer hora do dia ou da noite, no trajeto para a escola, no trabalho, dentro de transportes públicos.   

A banalização desse tipo de crime está tão enraizada na sociedade que nem mesmo uma sessão parlamentar cheia na Alesp, com câmeras em vários pontos, foi capaz de inibir o deputado estadual paulista Fernando Cury (Cidadania) de praticar assédio contra uma colega de outro partido, a deputada Isa Penna (Psol), apalpando o seio direito dela. 

Segundo relatos de testemunhas, o assédio foi precedido de um fervoroso debate entre Cury e outros deputados sobre um vídeo postado por Isa Penna nas redes sociais, no qual ela aparece dançando funk. Antes de apalpar a deputada, Fernando Cury cochichou com colegas, parecendo fazer algum tipo de aposta. A cena repete uma situação já vivida por milhões de brasileiras, que geralmente se passa da seguinte forma: “Olha que calça apertada ela está usando hoje. Quer ver como eu passo e roço atrás dela?”. Esse tipo de postura asquerosa e retrógrada, inclusive, já foi alvo de debate nesta coluna. Trata-se da lógica do primata inimputável: uma mentalidade que impõe às mulheres a tarefa de se policiar constantemente, ao mesmo tempo que concede aos homens o direito de romper com o contrato social e se portar como um primata inimputável a qualquer momento. No caso em questão, o “estopim” foi o vídeo com a dança.  

Fernando Cury compartilha dessa mentalidade retrógrada, por isso acredita que o vídeo de alguma forma chancelou o assédio. Isso explica por que ele não se arrepende do feito. Ao contrário, ele alegou que não fez nada de errado e disse que o que fez foi apenas “abraçar e estar próximo, como faço com diversas colegas aqui na casa”. A justificativa é falha: o assédio é visível e está gravado. E mesmo que ele não tivesse apalpado Isa Penna, ele violou o espaço pessoal da deputada – a área invisível que existe no entorno do corpo e que não ultrapassamos por respeito ao próximo. Qualquer pessoa razoável entende que não se chega por trás e se encosta em alguém, como fez Cury, a não ser que haja um forte grau de intimidade com a pessoa – o que claramente não era o caso. 

O que a explicação de Fernando Cury faz é naturalizar o assédio contra a mulher. E sem uma punição rigorosa, casos como esse servem como um estímulo negativo que, em efeito cascata, afeta toda a sociedade e se reflete em episódios como o recentemente ocorrido em uma estação de metrô do Distrito Federal, quando um bombeiro de 52 anos, chamado Guilherme Marques Filho, se achou no direito de passar a mão nas costas e cabelos de uma passageira. Repreendido por um jovem que presenciou o assédio, ele se sentiu ultrajado, sacou um revólver e o agrediu. 

Casos como esse se repetem por todo o país e fazem do espaço público um lugar perigoso para mulheres. Não deveria ser assim, e a boa notícia é que houve avanços nos últimos anos no combate à importunação sexual. Sancionada em 2018, a Lei 13.718 foi fruto de anos de esforço de parlamentares, de diferentes vertentes políticas, que entendem que o combate à importunação sexual é uma luta de todas e todos. A lei alterou o Decreto-Lei nº 2.848, do Código Penal, para tipificar o crime de importunação sexual. Antes da sanção da lei, a importunação sexual era considerada apenas uma contravenção de ofensa ao pudor, não passível de prisão. Agora, é tipificada como crime e a punição vai de um a cinco anos de prisão. 

Esse avanço mostra que a tentativa de partidarizar o caso envolvendo o assédio praticado por Cury é uma tática inútil, que não vai desviar a atenção da gravidade do fato. Isso porque nenhuma deputada ou senadora aprova a violação de seu corpo e espaço pessoal, independentemente da ideologia política que carregue. E isso se estende também a parlamentares homens que entendem que a importunação sexual é um flagelo a ser combatido, uma violência passível de afetar sua filha, irmã ou amiga.   

Por fim, resta saber qual será a decisão do partido Cidadania, ao qual Fernando Cury é filiado, em relação ao episódio. O partido afastou o deputado e concedeu a ele oito dias para se defender das acusações. Há o temor de que o caso não resulte em punição. Porém, um partido que tem em seu estatuto de criação “a defesa da liberdade e dos demais direitos fundamentais da pessoa humana” não pode deixar um episódio como esse passar impune. A conferir se o que está escrito no estatuto irá valer na prática.