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Eu me entendi negra nos Estados Unidos”, esse é o relato de uma brasileira que transformou seu intercâmbio em uma experiência para além da universidade

O mercado do turismo mundial é um dos mais fortes, economicamente falando, e que vem crescendo a cada ano. A atividade está à frente do setor de saúde, tecnologia da informação e serviços financeiros. Mas isso não significa que suas ofertas são acessíveis e representativas.

Enquanto dados do IBGE apontam que mais de 50% da população se autodeclara negra, há milhares de pessoas que ainda se deparam e sofrem com o escancarado racismo presente nas diversas facetas do turismo nacional e internacional. Foi isso que motivou o jornalista baiano Antonio Pita e seus sócios a fundarem a Diaspora.Black, uma rede global de pessoas que amam a cultura negra e buscam viver experiências autênticas e que nasceu para derrubar barreiras que o racismo cria e recria todos os dias.

“A gente viveu situações de discriminação nesses ambientes do turismo, tanto em hotéis quanto em alguns roteiros, algumas atividades. Isso é muito mais frequente do que se imagina, e vai desde dificuldade com hospedes/anfitriões no aluguel de casas, no avião, na recepção e segurança de hotéis etc.”, conta Antonio.

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Equipe da Diáspora.black. Foto: Reprodução/Site

O Brasil é um dos países com maior população negra do mundo fora da África. Mais da metade do país se autodeclara negra e, mesmo assim, o mercado, além de não estar preparado para receber e aceitar a turistas negros, não oferece opções de viagens que incluam e valorizem a história afro-brasileira – uma das bases da formação do país.  

Atento à essa necessidade gritante, juntamente com seus sócios, Antonio começou a pensar no Diaspora que ganhou vida e corpo em uma plataforma no ano de 2017, atuando muito no segmento de hospedagem. “Começamos olhando para essa receptividade de anfitriões receberem outras pessoas em casa, gente que se identificasse com esse compromisso com a igualdade, com o respeito pela diversidade. São anfitriões que compartilham quartos ou sua casa inteira mediante a um aluguel por temporada, com esse diferencial que são esses valores associados à sua hospedagem. A possibilidade de ser recebido em condição de igualdade, com respeito, e você poder ser apresentado dentro daquele destino a essas referências da cultura negra naquele território”.

Atualmente a Diaspora está presente em 15 países e mais de 150 cidades, oferecendo não apenas hospedagens com anfitriões, mas também roteiros de viagens com experiencias diferenciadas que contam dentro do território, um pouco da história e da memória da cultura negra. O sócio Antonio explica que são roteiros montados através com uma curadoria especial, de pontos e atrações que contam uma outra narrativa.

No mundo

O processo é construído em busca do fortalecimento da identidade, da identificação do negro com os lugares que frequenta e viaja. Quem passou pela transformação de perspectiva foi a professora de inglês Lara Kimberly. A mineira conta que, em 2015, quando era estudante da UFMG, realizou um intercambio no exterior através do programa Minas Mundi.

“Curiosamente, minha primeira opção era a Califórnia. Todo mundo tem aquele imaginário de Califórnia, perfeição, Hollywood, calçada da fama etc. Eu estava jurando de pé junto que ia passar nessa, e eu acabei passando na minha segunda opção, a universidade de Detroit. Inicialmente, eu fiquei super frustrada, me perguntando o que eu faria nesse lugar. A surpresa de ter de ser Detroit veio depois, com as reflexões e tudo que me gerou”.

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Foto: Arquivo Pessoal/Lara Kimberly

Detroit é a maior cidade do estado do Michigan e sua região metropolitana possui a maior percentagem de negros entre metrópoles do norte estadunidense. Aproximadamente um quarto da população da região metropolitana é negra. E foi nessa despretensiosa viagem que Lara se sentiu conectada a uma história, um passado e uma referência, que provavelmente a badalada cidade da Califórnia não propiciaria. “Eu sempre falo que eu me entendi negra, nos Estados Unidos. Isso parece bobeira, ou parece mentira. Você vai dizer “ah, mas no Brasil é cheio de gente preta”. Sim, mas a questão identitária nos EUA, com a população negra é bem diferente. E a população negra lá já se faz presente em locais que aqui não. Eu tinha professores negros nas universidades, a quantidade de alunos negros na universidade era muito maior do que aqui na UFMG, por exemplo. E mais do que isso, do que perceber que, enquanto pessoa negra, você pode fazer coisas e chegar a lugares, tem a percepção de que você é boa. Foi um reconhecimento das coisas positivas sobre mim, que aqui eu nunca tive tempo ou oportunidade de valorizar”, aponta.

Ela conta ainda que frequentou lugares como a Motown, a maior gravadora norte-americana dedicada a artistas negros, que deu destaque à música negra do soul, do rhythm and blues, do gospel e do pop, e que teve grandes artistas, como Michael Jackson. Ao visitar Bedford-Stuyvesant (também conhecido como Bed-Stuy), bairro central do Brooklyn em Nova York, Lara se ligou à referência da série Todo Mundo Odeia o Chris, que foi filmada no local e que conta a história de uma família negra americana.

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Foto: Arquivo Pessoal/Lara Kimberly

Esse processo de descoberta e identidade vivenciado pela Lara é exatamente o que o proprietário da Diaspora defende: “é importante trazer outras referências para as nossas viagens. Além dos cartões postais, existem várias outras atrações, várias outras vivencias e símbolos para a gente se conectar. Você pode ir a Londres ou Paris, que são as cidades com as maiores comunidades africanas, com restaurantes, com clubes de músicas, produções de arte etc. Então você pode se conectar com essas outras referências”.

Quando se trata de um turismo internacional, além de oferecer um olhar diferenciado para locais extremamente turísticos, a empresa também busca incentivar o turismo para regiões pouco mencionados, como a África. “O trabalho é tornar o turismo mais diverso, tanto de pessoas que frequentam, como de atrações. A gente dá visibilidade para atrativos culturais e turísticos que talvez não estivessem nos cardápios principais das operadoras. A gente leva também para os roteiros principais, essa ponderação, mostrando que ali tem outras histórias a serem contadas”, ressalta Antonio.

No Brasil

O Brasil é marcado pelo colonialismo e período escravocrata e são diversos os importantes locais simbólicos para a preservação da cultura e história da população negra, que também são espaços de resistência contra o racismo e a intolerância religiosa que ainda predominam em todos os estados. 

Mas se apropriar dessa história brasileira ainda é um processo pouco explorado e incentivado. São pedaços esquecidos da história do Brasil que precisam ser resgatados. É o caso, por exemplo, da cidade de São Paulo. Quando se ouve sobre a Liberdade, rapidamente somos transportados para a cultura japonesa e oriental, marca do bairro.

Mas o local é, originalmente, um bairro negro. Portanto, o nome do bairro vem dessa origem: ali tem uma igreja onde aconteciam os enforcamentos no período colonial das pessoas consideradas marginais. E os considerados marginais naquela época eram os escravos ou descendentes dos libertos. Em uma das ocasiões, uma pessoa foi condenada à forca, mas no entorno, por uma série de razões, havia outras pessoas gritando “liberdade” para o preso. Assim surgiu o nome, porque nesse fato as pessoas foram se solidarizar com o condenado.

Antonio Pita conta essa história lembrando ainda que, na região, há também o cemitério dos escravizados, por baixo do que hoje é conhecido como o bairro mais oriental da cidade. “Um bairro extremamente turístico, e que as pessoas não conhecem essas histórias. Não é questão de qual história é mais importante que a outra, porque a ocupação oriental é presente, ela é real e trouxe muitos legados positivos para a cidade. Mas é que uma coisa não se sobrepõe e nem apaga a outra. A ocupação oriental tem 60 anos. A história da origem do bairro tem 200 anos”, finaliza.

O proprietário da Diaspora avalia que o turismo comercial ainda é muito branco, muito padronizado, no sentido até limitador para a própria indústria. Ele aponta que nos próprios comerciais não se vê variedade de corpos e cores. “É incomodo, às vezes, você estar em um grupo, excursões ou lugares em que as referências são um pouco diferentes de você. E aí a gente preenche esse papel, dá essa oportunidade de um lugar que é feito para você também. O turismo, o lazer, a viagem dos sonhos é algo que podemos acessar, é parte da gente”.

A empresa oferece pacotes para Maceió (AL), por exemplo, onde a pessoa não se restringe somente às praias, mas também visita o Quilombo dos Palmares. Em Ouro Preto (MG), oferece passeios para conhecer também as narrativas das histórias de resistência e emancipação que aconteceram na região. O roteiro para Fortaleza também te leva conhecer a história do Dragão do Mar que foi um líder jangadeiro, prático-mor e abolicionista, com participação ativa no Movimento Abolicionista no Ceará.

“O olhar sobre a cidade muda, o lugar onde ela vive muda. Espaços onde a gente circula todos os dias. É muito marcante esses comentários, das pessoas muito surpresas e que passam a olhar com mais atenção para os locais, os monumentos etc”, comemora Antonio.

Ressignificar a dor em uma narrativa de superação e orgulho. Esse resgate da história e da cultura do povo negro se converte em uma viagem, possível para todos. O afroturismo vem se consolidando nos últimos dois anos no Brasil e se apresenta como uma forte tendência em tempos nos quais a importância das vidas negras entrou em pauta. Já parou para pensar onde você frequenta quando viaja? Quais seus objetivos e quais lados da história você conhece?