A falta de transparência precisa acabar
Por: Marta Dueñas, jornalista
E-mail: marta.duenas@mulheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
A era da pós verdade é uma maneira elegante e acadêmica de falar desse momento, que já vem de alguns anos em que reinventar a realidade virou uma estratégia de mercado utilizada por partidos políticos, igrejas e religiões, crime organizado e qualquer agrupamento e pessoas com interesses que secundarizem o bem-estar coletivo. Acredito que o crime se beneficia, e muito, da internet sem regulação. Basta observar a verdadeira militância contra a PL 2630/2020 de autoria do Senador Alessandro Vieira – CIDADANIA/SE .
É impressionante que os grupos políticos de extrema direita, como os partidos de base evangélica conservadores ou o grupo de apoio do ex-presidente, se coloquem contra uma regulação pública comparando regras à censura de maneira argilosa. Logo eles que exerceram censura e perseguição a artistas, espetáculos e manifestações que poderiam colocar em cheque crenças e comportamentos opressores que defendem.
O projeto de lei que ficou conhecido como PL das Fake News defende que as plataformas de comunicação e conteúdo e redes sociais sejam moderadas e reguladas, como qualquer meio que chega na casa das pessoas e geram impacto de comportamento e conhecimento. O governo de qualquer país não pode admitir que empresas privadas sejam veículos para informações que prejudiquem a integridade física da população, interfiram em políticas públicas fundamentais como de educação, saúde e cidadania ou, ainda, sejam um risco à democracia. Simplesmente porque é responsabilidade dos governos zelar por isso.
O que me causa asco é que os mesmos grupos que protestam contra conteúdos em novelas ou em manifestações artísticas se coloquem contra um projeto de lei tão importante na atualidade. É bom lembrar que grupos políticos de base conservadora tem chiliques, para usar um termo que aprendi muito com o ex-presidente, quando uma novela veicula um beijo gay, mas ficam quietos com pedofilia na internet. É disso que se trata e essa é uma verdade.
A internet não pode ser terra de ninguém como tem sido. Que algumas pessoas queiram, eu entendo, afinal, existem cidades e estados brasileiros onde esse comportamento de propagar a ideia de terra sem lei ainda existem. Eu entendo, mas não aceito e luto contra. Portanto, o estado brasileiro tem a obrigação de criar dispositivos de moderação nessas tecnologias capazes de influenciar pessoas e mudar comportamentos especialmente quando usadas de maneira inescrupulosa servindo de atmosfera para mentiras, desserviços e propagação do ódio e preconceitos. É importante demarcar que moderação, controle e regulamentação é completamente diferente de censura. Não se deixem enganar por esse apelo que tenta igualar direito à expressão, a liberdades individuais de expressão e opinião com crime. Meus direitos não podem ser criminosos. Não posso, simplesmente, expressar e vociferar preconceitos e crimes de ódio, raciais ou contra crianças e mulheres tarjando isso de opinião ou liberdade.
É perverso o descaminho que a extrema-direita e os grupos criminosos emaranhados na política promove. Em geral, são grupos autoritários e conservadores que se travestem de liberais. Defendem ditadura e liberdade de expressão que são coisas antagônicas. O período em que os militares tomaram o governo por meio da violência e negociatas pessoas que falavam o que pensavam, mesmo que fossem falas dentro da lei, eram perseguidas e mortas. É o mesmo que ocorre com as igrejas neopentecostais que falam do cristianismo contando moedas em seus cultos. São estes déspotas da pós-modernidade que apontam o dedo ao governo e sua base para os acusarem de ditadores, mas perseguem pessoas que verdadeiramente exercem suas liberdades civis. Os lambe botas da ditadura são os que agora sussurram pela liberdade de expressão. Pois bem, é mais fácil conquistar liberdade de expressão e direitos num governo democrático e com regras. Leis, controle e fiscalização nunca fizeram mal à cidadania; já o contrário …
O Projeto é o primeiro texto para criar uma lei brasileira de liberdade, responsabilidade e transparência na internet. E no texto é destaque que acesso à informação é direito dos usuários das plataformas de informação e deixa claro que nenhuma medida poderá gerar restrição ao livre desenvolvimento individual, à livre expressão, à manifestação artística e intelectual.
Argumentos de que o PL é um ataque à liberdade de expressão, portanto, são completamente descabidos. Não serão suprimidos posts religiosos ou de discordância ao atual (ou qualquer) governo, por exemplo. O modelo de regulação proposto no PL é inspirado no modelo Europeu, bastante democrático. É modelo das democracias liberais como Alemanha, França, Dinamarca e não o modelo da Rússia ou da China, como alguns querem fazer parecer. O dispositivo de regulação não vai agir suprimindo post, a atuação de controle é mais estratégica, faz uma análise do sistema das plataformas, não para postagens específicas.
Então porque alguns grupos são contrários? Acredito que existam muitos motivos, mas o principal deles é o da perda econômica e do medo de responsabilização por crimes e atrocidades que flanam pela internet ainda sem controle. Eu diria que os principais grupos contrários são: as plataformas, os bolsonaristas e a extrema-direita; os extremistas religiosos e grupos de crime cibernético ou demais facções criminosas conectados a segmentos de grande lucratividade como tráfico de drogas e pessoas, entre outros.
Suspeito que as Big Techs podem perder muito dinheiro com a aprovação da PL, só não é possível precificar quanto, já que não havendo transparência no processo de veiculação e monetização da informação nas redes, não se pode afirmar nem valores absolutos, tampouco percentuais. O que se sabe é que o grupo Meta movimenta U$ 116 bilhões por ano, o Google, U$ 279 bilhões/ano e que, no Brasil, o mercado de anúncios digitais é de R$ 32 bilhões de reais anuais. Como não há transparência, não se tem ideia do teor desses anúncios e quanto desses valores estão relacionados a conteúdos criminosos como a exploração sexual de crianças, ataques a escolas e violação de direitos e da soberania nacional.
As plataformas digitais avançaram por anos sem regulamentação alguma, talvez pouco investimento tenha sido feito para promover rastreabilidade ou transparência no que é veiculado. Isso significa uma mudança administrativa, tecnológica e de gestão, o que para grupos, disruptivos e colaborativos, como vendem que são, não deveria ser uma grande dificuldade. Sobra pensar que as plataformas têm alguma ideia do tamanho da perda financeira que podem ter ao dificultar ou coibir a tramitação de conteúdos criminosos. O grande negócio dessas plataformas é publicidade e não apenas conteúdo.
Google, Facebook, Instagram, Tiktok, Telegram, Brasil Paralelo, para citar alguns dos grande críticos ao PL, terão que investir pesadamente em dispositivos de transparência para que, em caso de consulta, esses conteúdos e valores sejam abertos e rastreáveis. Então existem duas premissas básicas, resumindo muito, para o desinteresse das plataformas: grandes perdas de anunciantes e investimento em áreas de auditoria e controle que elas nunca fizeram. Há muito tempo, essas big techs deixaram de ser iniciativas de pessoas para pessoas cujo valor central seria valorizar o pequeno criador de conteúdo que não tem espaço nas mídias tradicionais. Isso até existe ainda, porém foi também por esse viés que grandes grupos criminosos perceberam a oportunidade de ouro para fazer sua escalada digital disseminando ideias e articulando ações ilegais. São trilhões de anúncios. Anúncios de fraude, anúncios de criminosos e não se sabe quantos são. Não há regramento como na publicidade, que obedece ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).
Creio que o apelido do PL associado a Fake News pode ser um dos causadores de confusão e de mau uso para fazer parecer que é uma lei que vai piorar a internet. Por um lado, grupos bolsonaristas utilizam o nome para dizer que o Governo atual vai criar um Ministério da Verdade determinando o que é falso ou mentira; por outro, pessoas desinformadas podem achar que é uma espécie de censura à opinião pública. Nem uma coisa, nem outra. O Governo não vai determinar o que é falso ou verdadeiro. Conteúdos não serão retirados da internet sorrateiramente. Essa PL não trata de fake news, ela trata muito mais de transparência e direito à informação. O conteúdo produzido pela imprensa, pelas empresas jornalísticas e pela publicidade é regulado por decretos e tem dispositivos de controle e de responsabilização, como já tratado em Coluna no Instituto Mulheres Jornalistas. No entanto, nenhum desses regramentos se aplica às plataformas digitais e é essa discussão que está causando tanta tormenta. Tormenta essa que atinge, no meu entender, exatamente os grupos que tanto se beneficiam pelo obscurantismo que essas novas tecnologias promovem.
Alexandre Gibotti, Diretor Executiva da Associação Brasileira de Agências de Publicidade (ABAP), manifestou-se favorável ao PL e disse ainda que é um dos documentos mais modernos do mundo, colocando o Brasil numa posição de protagonismo no tema. Octávio Costa, Presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), defendeu a importância do projeto das Fake News para combater à divulgação de informações falsas, manifesto da entidade favorável à aprovação do projeto. A Federação Nacional dos Jornalistas, Fenaj, favorável ao PL, manifestou que o artigo que trata da remuneração de conteúdo jornalístico pelas plataformas digitais deve ser suprimido. Segundo a presidente da Fenaj, Samira de Castro, a remuneração é justa e necessária “mas não deve ser tratada no âmbito do referido PL, que visa instituir a ‘Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet’”.
Sabemos que uma boa propaganda pode não parecer propaganda, aliás, às vezes um tanto melhor. É a lógica da recomendação, do endosso. Antigamente, era o Silvio Santos falando de alguma marca, depois o seu vizinho, até que vieram os influencers. O seu vizinho, que nada ganha com isso, continua sendo o melhor indicativo de que um produto é bom, mas isso não quer dizer que é bom para você, já que a experiência e a necessidade são muito singulares. A recomendação social (ou validação social) foi levado tão a sério pelas plataformas que há um movimento que funde publicidade, jornalismo e conteúdo. Esse mix é simplesmente uma bomba e ela já está explodindo na sociedade. Logicamente, estratégias que tornam a publicidade genial, gostosa e eficiente podem e devem ser utilizadas desde que não estejam alicerçadas no crime e na falta de ética.
Também por isso a aprovação do PL é urgente e necessária.