Venda de fotos de mulheres nuas e seminuas na internet abre debate
Por Regina Fiore, Jornalista- SP
Editora Chefe: Letícia Fagundes, Jornalista- RS
A pandemia aumentou a comercialização de fotos e vídeos sexuais de mulheres em canais online, práticas já estabelecidas pela indústria pornográfica que trazem sérias consequências tanto para quem faz quanto para quem consome.
A pandemia do novo coronavírus afetou diretamente pessoas que estavam abrindo seus próprios negócios e tentando crescer em empreendimentos pequenos. Muitos deles fecharam, outros tiveram que se reinventar para o ambiente online. No entanto, não são apenas pequenos comércios que sofreram baixa na clientela. As casas de prostituição e as garotas de programa que trabalhavam nas ruas também precisaram buscar outras fontes de renda.
Muitas mulheres jovens que perderam seus empregos ou não conseguiram se reerguer economicamente durante a pandemia também acabaram encontrando como solução vender fotos ou vídeos sexuais pela internet. Um dos maiores fenômenos para esse fim é a rede social Only Fans, onde as pessoas pagam uma mensalidade para ter acesso às fotos e vídeos de outras pessoas, que podem ser celebridades ou não.
As “camgirls”, como são conhecidas as mulheres que usam a câmera do celular ou a webcam para se expor sexualmente mediante ao pagamento, existem desde que a internet possibilitou transmissões ao vivo, principalmente nos Estados Unidos. No entanto, as redes sociais têm facilitado ainda mais tal exposição, que vem ganhando popularidade nos países da América Latina por causa da pandemia.
Muitas prostitutas optam por fazer exibições ao vivo, atendendo aos pedidos dos clientes pagantes ou até mesmo leiloando vídeos de masturbação ou sexo com outras mulheres. No entanto, garotas que não são prostitutas estão fazendo o mesmo movimento, principalmente as adolescentes entre 16 e 20 anos.
Algumas delas não veem a prática como prostituição. Outras enviam apenas partes do corpo, como pés ou mãos para fetichistas. No entanto, comercializar qualquer tipo de material de cunho erótico é considerado trabalho sexual em grande parte do mundo, inclusive no Brasil.
Para falar mais sobre a comercialização da experiência erótica e sexual via internet, entrevistamos a psicanalista Renata Zancan, com experiência em atendimento clínico e participação em grupos de estudos guiados pela linha do psicanalista Jacques Lacan, e a advogada e assessora parlamentar Izabela Forzani, uma das fundadoras do perfil Recuse a Clicar (@recuseaclicar), que se posiciona contra qualquer tipo de exploração sexual: pornografia, prostituição, tráfico sexual.
“A pornografia está presente desde a antiguidade na história da humanidade, porém a internet sem dúvida alguma tornou-se um meio eficaz de veiculação desses conteúdos, onde o usuário encontra facilidade na oferta de estilos específicos e gêneros desse universo, além de uma certa preservação da privacidade e anonimato”, diz Renata, que explica também como a pornografia, consumida majoritariamente por homens no Brasil, pode ser um espaço de libertação tanto do peso da performance da virilidade masculina quanto da possível rejeição do outro.
Por ser uma experiência sexual com o gozo garantido, o uso da pornografia também pode ser encarado como uma forma de libertação de pressões morais impostas. “No cenário pornográfico, a fantasia mais contida pode ser satisfeita em todo seu esplendor. Apesar de não haver o contato físico com o corpo do outro, existe a experiência sexual no próprio corpo, que garante a satisfação sem risco de rechaço”, conta a psicanalista.
Já Izabela traz o ponto de vista do quanto a indústria pornográfica tem afetado as relações inter e intrapessoais. A advogada explica que a indústria pornográfica, tal como conhecemos hoje, iniciou-se na década de 70, tendo como marco o filme Garganta Profunda (1972), com Linda Lovelace. Até os anos 2000, a indústria pornográfica era monopolizada pelas produtoras de pornografia, seja em filmes ou em vídeos. A partir do avanço da internet, a pornografia, que até então era escondida, tomou um outro tipo de proporção.
“A ampliação do acesso a rede aumentou a abrangência do consumo da pornografia, tornando-se bem mais fácil acessar qualquer conteúdo pornográfico de qualquer celular com acesso a rede. Mas não só isso, houve também a ‘democratização’ da própria produção da pornografia, que tirou o monopólio das grandes produtoras. Hoje, os sites de streaming de pornografia estão entre os mais acessados do mundo”, conta Izabela.
A partir desta democratização, muitas mulheres encontraram no streaming a possibilidade de fazer parte da indústria pornográfica online sem precisar sair de casa ou se associar a uma produtora, muitas vezes vendendo suas exibições em vídeos ou em fotos. As mulheres mais jovens, que têm tido contato com alguns termos do feminismo recentemente, enxergam a venda de fotos e vídeos como uma forma de empoderamento, seguindo a máxima “meu corpo, minhas regras”.
No entanto, é preciso entender que a objetificação do corpo das mulheres, ou seja, enxergar o corpo da mulher apenas como um objeto de satisfação sexual, está diretamente ligada ao machismo e à misoginia, ainda que seja para atender o fetiche de alguns homens em relação a partes do corpo que não são tradicionalmente consideradas eróticas.
Renata aponta que, de acordo com especialistas da psicanálise – entre eles o próprio Freud, o fetichista é aquele que substitui a satisfação por um objeto ou pela superestimação exclusiva de uma parte do corpo fetichizada. “Para o fetichista encontrar prazer e atingir o gozo, a fantasia e o desejo pelo outro não basta. O elemento de prazer precisa estar presente no sexo”.
Para a advogada Izabela, no entanto, a relação que se dá entre essas mulheres e a venda de vídeos ou fotos passa por nuances mais complexas: “para começar, é importante ressaltar que o debate sobre pornografia tem que levar em consideração três viéses básicos: o lado do consumidor, da indústria que a produz (aqui sendo bem generalista porque como o dito, a indústria hoje é bem variada) e da sociedade”.
A advogada ressalta que, do ponto de vista do consumidor ou consumidora, toda pornografia é capaz de gerar vícios, independente do rótulo ser feminista, ética ou qualquer abordagem que se pretende mais inclusiva. Ou seja, de acordo com Izabela, toda pornografia tem o potencial de adoecer quem a consome.
“Do ponto de vista da indústria, é importante ressaltar que essa é uma atividade que provoca perigos reais para as pessoas (majoritariamente mulheres) envolvidas nela. Há inúmeros relatos de mulheres que faziam esse tipo de conteúdo que foram perseguidas, ameaçadas ou agredidas. Além disso, é importante lembrar que a própria atividade em si é perigosa. As lacerações na região do ânus e vagina são bem comuns. Recentemente, tivemos alguns casos de mortes acidentais de mulheres ao realizar atos de enforcamento durante a filmagem”, explica Izabela.
A questão social pode ser ainda mais complexa. Toda uma geração de meninos tem sido criada partindo-se da ideia de que as mulheres estão ali apenas para lhes dar prazer, como se o sexo fosse um direito masculino pré-existente. “A pornografia também – há variadas pesquisas científicas nesse sentido – favorece a violência contra a mulher ao tornar as agressões algo erotizado, além de naturalizar posturas de submissão e passividade diante da violência sofrida por mulheres”, conta a advogada.
A relação entre as partes
Mas como fica a relação dessas mulheres com os homens para quem elas se expõem? “Um dos princípios da prostituição é o de não criar um vínculo afetivo com o parceiro sexual, mas sabemos que só a regra não é garantia para que o vínculo não se estabeleça. A história está repleta de exemplos de pessoas que acabam se envolvendo emocionalmente, já que cada um se relaciona de forma única com o outro”, conta a psicanalista.
Para Izabela, a relação entre pornografia e prostituição causa grandes dificuldades de relacionamento e socialização. “Não falo somente em relacionamentos românticos, mas sobretudo no relacionamento com nós mesmos. A pornografia cria expectativas irreais do que é o sexo, expectativas que a realidade simplesmente não consegue suprir. A realidade, portanto, se torna sinônimo de frustração”.
A advogada ainda explica que o vício em pornografia leva muitos relacionamentos a terminarem, em todas as faixas etárias. “Temos grupos no Facebook e recebemos muitos relatos nas mensagens privadas. É chocante a quantidade de gente que nos procuram para pedir ajuda ou mesmo uma palavra de conforto. A pornografia não apenas dificulta a criação de laços interpessoais, como destrói aqueles que o indivíduo já possui”.
É consenso entre especialistas da saúde, comportamentais e sexuais que o uso da pornografia em excesso pode trazer frustração para o parceiro ou parceira de carne e osso. A maioria das fantasias vividas no universo virtual não são realizadas na vida real, já que o sexo entre duas pessoas reais conta com os desejos, fantasias e limites do outro. Por outro lado, Renata Zancan levanta o ponto de que o aumento do consumo da pornografia por mulheres pode indicar um avanço em relação a liberdade da sexualidade feminina, tão historicamente reprimida.
Outro ponto importante é o quanto a pornografia e venda de fotos e vídeos pornográficos contribuem para outras questões como pedofilia, exploração sexual ou pornografia de revanche. Por atuar no sistema de recompensa do cérebro, a pornografia funciona como uma droga, onde o indivíduo que a consome precisa de quantidades maiores de doses para se sentir satisfeito ao longo do tempo. Em algum momento, aquele estímulo sexual para de ter os efeitos desejados e o indivíduo precisará de um novo estímulo.
“No caso da pornografia, os usuários passam a alterar os etímulos. Começam por consumir a pornografia mainstream, que já bastante violenta contra as mulheres, e depois passam por cenas mais violentas ou até mesmo criminosas: necrofilia, zoofilia e até mesmo pornografia infantil. Há um estudo nos EUA que mostra que apenas 30% dos predadores infantis são pedófilos clinicamente. Os outros 70% se interessaram por crianças por algum outro motivo e um deles com certeza é a pornografia, que a todo tempo erotiza a infância”, relata Izabela.
Para a psicanalista Renata, o mais importante é o acordo entre as pessoas envolvidas. “Se a exposição e o comércio se derem somente entre adultos, não há porque temer a pedofilia, por exemplo. Mas cada participante deste jogo precisa estar ciente de que está correndo outros riscos além daqueles a que se propôs”, explica. A especialista ressalta que geralmente não existe espaço para o afeto e amor romântico neste tipo de relação, o que, de acordo com ela, não é necessariamente nocivo.
A psicanalista chama atenção ainda para consequências como a exploração sexual ou a pornografia de revange, que podem se tornar realidade já que a pessoa que fornece o conteúdo acaba ficando à mercê do desejo de quem compra e sobre isso não dá para ter garantia ou controle. Além disso, Renata ressalta que o isolamento social que estamos vivendo também têm aumentado a busca por sites de pornografia e sexo virtual. “É uma alternativa para lidar com a angústia e a solidão porque garantem a satisfação sexual, que se tornou rara nos tempos atuais”, conclui a psicanalista.
Izabela aponta que existem inúmeras pesquisas relatando que o consumo de pornografia teve aumento de mais 50% no Brasil e no mundo desde o início da pandemia. “É importante lembrar que isso se deu não apenas porque as pessoas estão mais em casa. Como a pornografia é uma válvula de escape, como o álcool e outras drogas, ela acaba sendo mais consumida em situações que causam mais ansiedade, como a atual”.
O aumento do consumo de conteúdos pornográficos também pode agravar consequências negativas que a própria pandemia está causando nas pessoas: depressão, baixa auto estima, ansiedade e outros problemas psicológicos. Em homens, é bem comum a dificuldade de ereção, a dificuldade de manter a ereção e alterações em relação à ejaculação. Nas mulheres, o relato mais comum passa pela dificuldade de alcançar o orgasmo.
“Para as mulheres que vendem seus conteúdos, produzem vídeos ou fotos de cunho pornográfico, há uma infinidade de relatos de abusos físicos, psicológicos e sexuais. Além de ser bem comum o incentivo de álcool e drogas, que funcionam como um analgésico mental e físico, porque muitos dos atos praticados são dolorosos”, conclui a advogada. Dessa forma, mesmo que consentida, a exibição ou venda de materiais pornográficos, ainda que sejam de fetiches como fotos de mães ou pés, pode causar malefícios permanentes tanto para quem vende quanto para quem compra ou consome.