Uma experiência de traumas, riscos e horror
Por Haline Farias, jornalista
halinefarias@gmail.com
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista
Editora de conteúdo – Site MJ: Beatriz Azevedo, Jornalista
A população infantojuvenil da Ucrânia tem vivenciado dias de muito sofrimento e medo em
razão da guerra
A guerra entre Rússia e Ucrânia vem há mais de dois meses causando grandes perdas. Em um cenário de completa destruição, já são milhares de mortos e feridos, e milhões de refugiados. As pessoas têm vivido em completo desespero, sem moradia, segurança e comida.
A Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou, no dia 24 de março, que, até a data, 1.035 civis morreram e 1.650 ficaram feridos neste conflito. De acordo com a própria organização, os números podem ser sempre maiores, já que existem poucos dados de áreas de difícil acesso. Dentre as vítimas, havia 90 crianças, segundo levantamento do Escritório das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
Uma guerra atinge as crianças e adolescentes de todas as formas que atinge os adultos, mas, além destas, também de diferentes maneiras, uma vez que são indivíduos dependentes, sujeitos a carências e perigos, que necessitam do cuidado, atenção e presença dos adultos. Em tempo de conflitos, os lugares que frequentam são destruídos, seus laços familiares e de amizade são constantemente rompidos, sua integridade física e saúde mental são ameaçadas e afetadas.
Estragos profundos foram feitos aos jovens e às crianças nos últimos oito anos desta batalha entre Rússia e Ucrânia. Atualmente, é ainda mais brutal, a vida de mais de 7 milhões de crianças, segundo a Unicef (Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância), foi impactada de forma devastadora. A organização também relatou, no dia 30 de março, que dois milhões de crianças e adolescentes já tinham sido forçados a fugir da Ucrânia.
A trajetória de vida dos mais novos é significativamente atingida de forma negativa em razão dos impactos de uma guerra. Eles passam muitos anos em condições lamentáveis, esperando que a vida possa retomar ao normal, o que não acontece em grande parte dos casos. Muitos, depois do fim da guerra, não conseguirão atingir o potencial ou conquistar oportunidades que tinham antes.
Além da perda material, as crianças e os jovens testemunham a morte de perto e cercam-se com a falta de esperança frente a tanto horror. Sem ter onde morar e, muitas vezes, com quem, são submetidos a diversos riscos, tipos de violações de direitos e violência, como maior risco de exploração e tráfico, falta de escolas, dificuldade no aprendizado, fome extrema, violência sexual, doenças, entre outros.
Risco de exploração e tráfico
As pessoas que estão saindo do território ucraniano são na maioria mulheres, crianças, adolescentes e idosos. Grupos que são ainda mais vulneráveis a inúmeros riscos, principalmente, neste caso, a tráfico humano e exploração. Um Relatório Global sobre Tráfico de Pessoa, lançado em 2020, pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), indica que mulheres e crianças são as vítimas de tráfico mais frequentes.
De acordo com o mesmo relatório, a exploração sexual foi a forma de tráfico de seres humanos mais identificada. E para cada 10 vítimas detectadas globalmente, cinco são mulheres adultas e duas são meninas.
A Unicef alertou do maior risco que as crianças e adolescentes sofrem de exploração e tráfico de pessoas ao fugirem da guerra na Ucrânia, além da possibilidade de uma crise aguda de proteção infantil. O cenário então é “perfeito” para a operação de redes criminosas de tráfico humano e exploração.
Os movimentos populacionais em meio a uma guerra e em grande escala acabam por expor alvos “fáceis” para os traficantes. Os mais de um milhão de meninos e meninas que fugiram da Ucrânia enfrentam essa ameaça de modo crescente e estão extremamente vulneráveis a serem explorados e traficados, sobretudo por muitos estarem separados da família.
O tráfico e a exploração de pessoas acontecem em todos os países e regiões, porém, infelizmente, é um crime “oculto”, no qual agem na espreita, passando algumas vezes despercebidos. Em meio à guerra, o cenário é ainda mais propício para os criminosos e caótico para a população.
Traumatismo de guerra
Para muito além de testemunhar toda a hostilidade de uma guerra, os jovens e as crianças encaram um desdobramento cheio de prejuízos. São muitos traumas e dor que enfrentam durante e após os conflitos, danos cruéis, tanto psicológicos quanto físicos, como a perda de recursos básicos, uma visão pessimista da vida, normalização da violência e separação familiar.
Crescer em um ambiente agressivo e estressante em meio a um conflito armado e guerra tem sido associado a diversas consequências psicológicas negativas. A Organização Mundial de Saúde (OMS) relata que cerca de 9% das populações afetadas por conflitos têm algum transtorno de saúde mental, de moderado a grave. Quando há um contexto em que a guerra faz parte, é quase que instantâneo pensar nos traumas e transtornos psicológicos como consequências, especialmente o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT).
No livro Overcoming Trauma and PTSD: A Workbook Integrating Skills from ACT, DBT, and CBT(2012), a psicóloga Sheela Raja indica que, em relação ao TEPT, uma grande associação com a exposição à guerra se dá, possivelmente, ao fato de situações de ameaça altamente violentas, imprevisíveis e deliberadas à integridade física e à vida do próprio e de outros.
O TEPT é um transtorno que se manifesta em pessoas de qualquer idade depois de vivenciar eventos traumáticos, em que há muito medo, desamparo e crise, como uma guerra. Alguns dos sintomas são: revivência do trauma, por meio de sonhos vívidos, flashbacks, pesadelos e pensamentos ou sentimentos incontroláveis; mudanças de humor; insônia e irritabilidade.
As crianças e os adolescentes da Ucrânia têm vivenciado dias terríveis sob grande pressão. São submetidos a ataques, ficam sem lar, perdem ou são separados de algum familiar ou amigo. Diante dessa situação, é evidente o possível desencadeamento de traumas muito grandes, assim como o desenvolvimento do TEPT ou outros transtornos.
Durante a guerra, a população infantojuvenil encara, em diferentes níveis, a exposição a eventos traumáticos repentinos e prolongados. O resultado disso são efeitos psicológicos de curto e longo prazo, como angústia, transtornos comportamentais, ansiedade, medo, raiva e depressão. Os traumas e transtornos vão agravar ou amenizar conforme como a vida seguirá. Dependendo então se irá continuar sujeito a um contexto de risco, do país que irá se refugiar, se terá ajuda de profissionais da área de saúde mental, entre outros fatores.
Educação e aprendizado
A educação é direito fundamental de toda criança. No entanto, segundo a instituição War Child, mais de 32 milhões de crianças em todo o mundo nunca tiveram a chance de ter um professor por conta de conflitos armados. Milhões de crianças e adolescentes têm seu direito à educação negado ou negligenciado, prejudicando, consequentemente, a chance de um futuro melhor.
A característica duradoura dos conflitos atuais vem afetando o futuro de gerações inteiras de crianças e jovens, afirma a Unicef. Uma geração que não tem acesso à educação, vivendo em conflitos e sem a oportunidade de crescer, adquirir habilidades e aprender. A educação tornou-se ainda mais perigosa para aqueles que vivem em zonas de guerra e conflitos, segundo a Unicef.
A frequência escolar e a qualidade da educação podem diminuir em ambientes de violência e medo. O Relatório de Monitoramento Global de EPT da UNESCO mostra que metade dos 57 milhões de crianças fora da escola vivem em países afetados por conflitos. Além disso, o relatório afirma que é necessária uma ação urgente para que seja possível levar educação aos 28,5 milhões de crianças em idade escolar primária fora da escola que estão nas zonas de conflito do mundo.
A professora e economista Cláudia Costin conta como uma guerra dificulta a infância, interrompendo fases e excluindo direitos. “É uma geração que está sendo gravemente afetada pela guerra na Ucrânia. Criança precisa ser criança e ter seus direitos. Aprender é direito. Educação e estudar é direito. Brincar também é direito! Em situação de conflito e refúgio, elas acabam por perder esses e tantos outros direitos”.
Cláudia Costin também avalia como a barreira da língua afeta o desenvolvimento e aprendizagem de crianças e adolescentes refugiados. Ao chegarem em outro país em um momento de tensão, pressão e medo, é muito mais difícil o processo de adaptação e compreensão da língua local. Essas diferenças no idioma prejudicam a vida de modo geral, especialmente, o aprendizado, a comunicação e os estudos.
Quando visualiza-se os danos ocasionados por guerras, raramente os prejuízos à educação são lembrados. Quase que instantaneamente a mente é levada às imagens de sofrimento, destruição e morte. Porém, a maneira como a educação é atingida e repercutida a longo prazo é um dos legados duradouros da violência. Não só a infraestrutura escolar é destruída, mas também todos os sonhos, expectativas e oportunidades de aprender e crescer de milhares de jovens e crianças.
Exército de órfãos
Cláudia Costin explica que a população infantojuvenil se vê, inesperadamente, sem casa, sem aula, sem familiares, muitas vezes, se deslocando para outro país com traficantes de refugiados.
“Tudo que eles têm é repentinamente afetado ou destruído. Momentos assim já são difíceis para adultos, imagine para uma criança ou um jovem, é ainda mais desafiador. Eles dependem de terceiros, pais ou responsáveis, então se percebem perdidos em meio a uma guerra, principalmente se ficaram órfãos”.
É direito de toda criança crescer em um ambiente familiar de apoio e seguro, mas, infelizmente, essa não é a realidade de milhões de crianças. De acordo com o Relatório sobre os Órfãos do Mundo 2021 da IHH (Humanitarian Relief Foundation), existem no mundo pelo menos 140 milhões de órfãos. A Unicef estima que, em todo o mundo, 2,7 milhões de crianças vivem em instituições de cuidados – sendo o número real provavelmente muito maior. Por diferentes razões, crianças podem ser separadas dos pais ou responsáveis e colocadas em cuidados alternativos. Quando uma criança perde um de seus pais ou ambos, ou seu responsável, ela enfrenta problemas em questões econômicas, de aprendizado e mentais.
A orfandade é um dos retratos imediatos, assim como também uma consequência, dos conflitos armados. Em 2019, de acordo com a fundação turca IHH, cerca de 800 mil crianças sírias refugiadas ficaram órfãs em razão da guerra. No Relatório sobre os Órfãos do Mundo 2021, a IHH indica que guerras ou conflitos estão entre uma das principais causas de orfandade. Somente em 2018, quase 100.000 pessoas morreram em confrontos armados, e então dezenas de milhares de crianças tornaram-se órfãos ou foram privados dos cuidados dos pais no processo.
A professora Cláudia Costin aponta a questão da separação familiar e de crianças e jovens órfãos como uma das grandes tragédias para estes grupos em meio à guerra. E ainda aponta que, muitas vezes, devido à falta de assistência, as crianças órfãs em razão da guerra tornam-se moradoras de rua. Ela exemplifica ao contar sobre o grande número de órfãos na guerra em Angola. “Muitas crianças perderam os pais neste conflito. Acabaram, além de órfãos, indo morar na rua, sem nenhum amparo. […] Em meio e após guerras, exércitos de crianças órfãs se encontram em situação de rua”.
Um olhar para o futuro
As consequências de uma guerra são, sem dúvidas, graves e dolorosas para qualquer pessoa que a vivencia. Na Ucrânia, a situação não é diferente, o resultado da guerra, seja ele imediato ou a longo prazo, é desastroso e triste. Cláudia Costin diz que o desfecho não é outro, senão um país destruído.
“Fica um país com feridas profundas, onde vidas raramente voltam ao normal. Uma vez em situação de refúgio, mesmo que o país melhore, as pessoas temem voltar ou não têm pra onde voltar. Elas perdem suas identidades, suas histórias.”
A guerra na Ucrânia levou ao deslocamento de mais da metade da população infantil, que é estimada em 7,5 milhões no país, de acordo com a Unicef, incluindo mais de 1,8 milhão de crianças que cruzaram a fronteira como refugiadas para países vizinhos e 2,5 milhões que estão deslocadas internamente na Ucrânia.
Tratando-se de uma população tão vulnerável como a das crianças e adolescentes, os danos podem afetar de maneira ainda mais brutal e, até irreversível. É lamentável observar como são involuntariamente envolvidos na violência, sofrendo em meio aos conflitos armados, sendo grandes vítimas. As circunstâncias e os ambientes que uma criança enfrenta e vivência no início da vida determinam suas expectativas na vida adulta, e tem sérias implicações para a saúde mental dela e da sociedade como um todo.
Muito precisa ser feito para proteger os jovens e as crianças vítimas de guerras. São muitas as questões a serem pensadas e resolvidas, por exemplo, como tornar menos prejudicial e dolorosa a experiência de estar em uma zona de guerra; e como reabilitar os já afetados. Mas, muito além disso, ao tentar ter dimensão e pensar no nível de dor dessa parcela da população, surge uma reflexão: como seria possível “resolver” e acabar com o que gera tudo isso: a própria guerra? Como não só idealizar, mas também realizar a substituição por um sistema de paz?
Existe muito empenho em minimizar os danos e ajudar as crianças e adolescentes que experienciam uma guerra, e isso é algo importante e de extrema necessidade. Mas, ainda assim, é preciso considerar como beira o absurdo encontrar estratégias para “tornar mais tolerável uma guerra”. É como se fosse algo intrínseco às nossas vidas, a violência e os conflitos são vistos como coisas que estarão sempre conosco, fazendo parte da experiência humana.
É de certa inocência propor que a diminuição ou exclusão total de guerras seja algo de fácil alcance. Porém, não é cabível aceitar que a violência e todos os danos que ela causa sejam coisas inevitáveis da vida humana. Existem muitas instituições, redes de apoio e organizações que visam implementar a paz como algo natural a nossas vidas, focados em eliminar a guerra e amparar os indivíduos já afetados por conflitos, como a Unicef, International Physicians for the Prevention of Nuclear War (IPPNW) e a ONU. Faz-se necessária uma mudança cultural, na comunicação e resolução de problemas, não visando a violência como resposta, muito menos a entender como algo natural, mas sim conhecer, apoiar e implementar a paz neste processo.