Por Marta Dueñas, Jornalista

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Chefe de reportagem: Juliana Monaco

Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes

Além do gado, do desmatamento na Amazônia, do projeto de genocídio, a arquitetura da destruição também passa pela porteira aberta por Bolsonaro.

O pós-pandemia tem inúmeros desdobramentos. O primeiro deles é uma pandemia que não finda, apesar da flexibilização de regras sanitárias no país. O segundo, não por ordem cientifica, lógica ou jornalística, mas que me toca profundamente, é a imensa crise e a fome como cardápio de 20% das famílias brasileiras. Apesar dessa gente que insiste em ser pobre, outro reflexo bastante notório é o deslocamento de recursos para fora dos grandes centros urbanos e o consequente boom imobiliário no litoral e no interior do país.

O segmento vem colhendo frutos: segundo a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias, os lançamentos imobiliários cresceram 39% e as vendas de imóveis, 21% entre 2020 e 2021. E boa parte dessa euforia tem endereço certo: ar livre, praia, natureza e paraísos. O Brasil tropical é fetiche muito valioso. De ponta a ponta, no país, o litoral valorizou e aumentou construção, vendas, aluguel e financiamento imobiliário. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o litoral norte sinalizou aumento de 50% nas buscas por imóveis e estados como Santa Catarina, Sergipe, Ceara, Alagoas, São Paulo e Bahia também “celebram” o bom momento.

Como será o after dessa festa toda? Ainda não sabemos, mas enquanto arrumam o salão, alguns sinais dão alerta. Desde a abertura de porteiras inaugurada no atual governo federal, não podemos nos envergonhar apenas pelo desmatamento na Amazônia e do assassinato de povos indígenas. Graças ao desmonte de políticas ambientais e órgãos de fiscalização, já estamos no podium com o maior desastre urbano causado pela mineração, secas na região Sul e enchentes na região nordeste. Bahia, Rio de Janeiro, Recife, Minas Gerais embaixo da água com mortes e desabrigados. Mesmo assim, o Brasil natural é uma festa: e a urbanização de áreas de proteção ambiental, zonas verdes, manguezais e praias desertas formam a reserva premium das construtoras. O peixe-boi, pasme, será mascotinho do playground kids do novo Brasil.

Progresso? Alguns dirão que sim, afinal, ambientalistas, veganos, índios, quilombolas e “tudo que não presta”, nas palavras de um bem votado deputado, atrasam as vias do desenvolvimento. Que Brasil é esse que pode ser em Miami? Um país cuja marca cultural orgânica é tão intensa e diversa que assusta dirigentes de baixa fruição e, por isso, é programaticamente combatido.

É inevitável ler o crescimento imobiliário no litoral, especialmente na região nordeste e destinos paradisíacos descolado de um projeto de higienização e gentrificação. A tal Arquitetura da Destruição, citando o documentário de Coehn. Primeiro pelo óbvio: linhas retas, concreto, blocos, caixas. Um padrão hermético, um cinza predominante. Signos e formas que desconsideram o outro, fechados em si mesmos. Projetos que celebram o único, o privado, o ego. Construções que não desaparecem no harmonioso e completo da natureza. Edificações que se impõem, como que uma nova jornada da estética que mata tudo em sua volta em busca de uma padronização dominante.

Os novos produtos imobiliários não respeitam o CEP, não digerem temperos, pasteurizam nomes. Qualquer lugar é Tulum, Gamboa, Riviera. Você pode estar nas Maldivas sem sair do litoral gaúcho e até mesmo no Caribe, desde a terra do cuscuz. Essa é a promessa. Embora pareça algo novo, trata-se da morte daquilo que era original dali. O Caribean Tower, impronunciável nome de condomínio fictício é agora um novo equipamento da “Praia Coquinhos” de um lugar qualquer que acabo de inventar. Conheci pelas redes sociais e aluguei via plataformas de hospedagem. Não sei bem onde fica, mas não importa, contanto que faça sol, tenha mar e seja seguro.

Turismo também se utiliza dessa higienização local. O turismo de experiência, real, verdadeiro, não é para qualquer um, portanto, não massifica, não rentabiliza, não se torna exponencial. Para ser de massa, a atividade turística acaba no senso comum. Nem muito quente, nem muito fria. O imobiliário turístico que acompanha o crescimento das construções pós-pandemia se vende amparado na tríade: segurança, lazer e natureza e acaba por ofertar o “paraíso dos outros” para ser seu. Quase customizável: você na natureza com ar condicionado.

A desconstrução da naturalidade da região, seja ela por meio da derrubada de mata nativa, desvio de fluxos de água ou da construção de edificações luxuosas comunica, diretamente, a morte. A função da arquitetura nestes casos é formar um padrão estético que se impõe sobre a particularidade das paisagens, tornando natureza um bem a ser consumido ou mais um item de condomínio.

Imagine você num vasto litoral brasileiro, a instalação de condomínio de luxo com segurança 24h, estrutura completa e acesso privativo a uma praia paradisíaca e deserta? Só pode ser a salvação dos problemas de quem tem que enfrentar cotidianamente moradores locais, ou, também, formas de vidas inferiores. Os panfletos imobiliários vendem isso, só não revelam o que ficará por trás dos muros desse oásis que pode ser financiado. Esse gigante econômico que nem sempre passa pela sabatina das leis ambientais (como Estudo de Impacto Ambiental, aprovações com participação social) constrói sobre memórias, identidades e histórias. O pescador vira peça de decoração.

Mas como vamos nos proteger das inconstâncias da natureza? Como vamos relaxar em meio a bichos, insetos ou até mesmo o mal tempo. Não raras vezes, turistas reclamam nas recepções de hotel seu direito ao sol. A chuva que não venha se não recebeu cachê!

A especulação imobiliária não foi inventada no atual governo, mas o tipo de turismo e relação com ambiente em voga nesse momento é hermética, limpa, cimentada, murada e higienista. Há outra maneira de explicar isso, mas prefiro me conter. O turismo promovido atualmente não tem espaço para a fruição. A ordem é usar e entreter: pesca, caça, jet ski, festas e tudo com muro e segurança afinal, o mundo lá fora é selvagem. Isso é desdobramento de uma política fascista e isso é obra do governo Bolsonaro.

Estética, às vezes, se converte numa força motora de limpeza e segregação. O padrão e a imponência de formas urbanas entram em cena para dar fim às casinhas de taipa, eliminando essas dimensões imperfeitas e inacabadas que revelam a cultura e história de uma região. O imobiliário turístico que avança pela porteira aberta elimina as pessoas indesejadas (pobres) e a complexidade de um horizonte vivo e colorido. O cinza, o quadrado, o lustroso ou o simulacro do rústico é a morte pelo impecável, afinal cores vivas não combinam com a moda minimalista e a natureza, às vezes, atrapalha. A linha condutora do novo turismo se baseia no velho de forma quase poética: a chegada dos brancos ao litoral. O começo do fim com festa, drinks, som e muita selfie. Coloca seu #.