Por Regina Fiore, Jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista

Será que Freud é capaz de explicar a surdez psicossomática, a identificação patológica ou o surto coletivo que estamos vivendo?

“Um outro dia, um cabeludo falou: não importam os motivos da guerra, a paz é mais importante do que eles. Muita gente não ouviu porque não quis. Eles estão surdos! A covardia é surda e só ouve o que convém”. Roberto Carlos e Erasmo Carlos lançaram essa música em 1971, no CD self-titled de Roberto. Ele havia saído dos ritmos da jovem-guarda para começar a traçar o caminho do que o tornaria o cantor preferido de todas as tias e tios brasileiros (os mesmos que hoje se informam pelo WhatsApp, Youtube e Facebook). 

Mas até Roberto Carlos tem seu limite: vazou um vídeo do Rei bem nervoso, put* mesmo, irritado porque o filho de uma fã não parava de tentar arranjar um casamento entre a mãe e o cantor no meio do verso “como é grande o meu amor [cala a boca, p*rra] por você”. Nem beijinho na tradicional distribuição de rosas teve aquele dia. Todo mundo chega no seu limite. 

Não sei como vocês estão neste momento, mas eu também cheguei no meu limite. O que dizer de 30 de outubro, essa data que nem aconteceu e eu já desejo com cada fibra do meu corpo que chegue ao fim? Não aguento mais ter todos os meus afetos, desejos, assuntos e pensamentos atravessados pelo Bolsonaro. Estamos no nosso limite, enquanto país, de sermos afetados pelas psicoses do Bolsonaro. 

O relacionamento entre presidente e população está além de tóxico. É o puro chorume do lixo radioativo de Chernobyl. Eu mesma me identifico com Roberto Carlos. “Cala boca, p*rra” virou meu mantra diário, toda vez que uma nova notícia envolvendo Jair Bolsonaro vem a público. Tem um limite. A mente de ninguém está preparada para ouvir tanto lixo durante 4 anos, a psique não aguenta elaborar tanta narrativa sem sentido. 

Temos tentado entender e explorar de diversas formas como Bolsonaro se tornou presidente do Brasil. São muitos livros publicados, muitos programas de análises, podcasts que trazem sua bibliografia, reportagens que tentam entender o que, afinal, fertilizou o terreno para que Bolsonaro se criasse em terras brasileiras. Cada pessoa tem uma teoria que faz muito sentido, mas parece não ser a tese “Eureka”; falta ali alguma coisa.

Também passamos boa parte dos últimos anos escrevendo, falando e analisando para tentar entender sua estratégia de governo e manutenção de privilégios do clã. Já sabemos de suas relações com as milícias do Rio de Janeiro, já sabemos de seu programa de disseminação de fake news. Já ouvimos os depoimentos sobre as rachadinhas, já acharam o Queiroz e ele foi condenado pelo esquema. Já abrimos CPI para apurar as 700 mil mortes que ocorreram porque o governo se recusou a levar a sério a pandemia.

Já entendemos que sua estratégia de narrativa é falar alto, falar grosso e falar chucro. Falar palavrão, gritar ofensas, falar contra todos que o questionam e incentivar seus seguidores (nem sei mais como chamá-los: são seguidores, são fanáticos, são servos, são escravos mentais, são zumbis que sofreram lavagem cerebral, são o que?) a se virarem contra qualquer um que aponte contradições ou problemáticas em suas falas e atitudes. 

Ainda assim, colocando todas as questões de contexto e história, juntando todos os recortes de explicações que dezenas de autores, analistas políticos e jornalistas entregaram nos últimos anos, levando em conta a história complexa e majoritariamente desesperançosa do Brasil, é difícil explicar como Jair Bolsonaro tem se comportado como presidente do país. 

Já deixei também de tentar entender os apoiadores do capitão-cabeça-de-papel. Minhas teorias são de que 1) dar o braço a torcer abre uma ferida muito grande no ego, com a qual 50 milhões de pessoas parecem não conseguir lidar, ou 2) de que existe uma identificação patológica entre os bolsonaristas e o Bolsonaro. E, para existir tal identificação patológica, é preciso que haja uma patologia. 

Conversando sobre isso durante um jantar, percebi que, muitas vezes, nós tratamos a política apenas pelo aspecto racional e estratégico, onde as pessoas buscam olhar pela lente da objetividade e, estando em uma democracia, pela lente da coletividade. Julgamos os políticos olhando muito mais para a máquina de governo, para a estrutura das instituições. Na verdade, a política (e os políticos) é muito mais atravessada pelo subconsciente, pela emoção, pelas neuroses. Política é feita de pessoas e as pessoas são a junção complexa de tudo isso.

Existe uma teoria do Freud que diz que o casal “feito um para o outro” (coloco entre aspas porque na verdade seria um casal bem problemático, mas que se encaixa muito bem em termos de neuroses) não é o sadista (o que sente prazer em causar dor) com o masoquista (aquele que sente prazer em sentir dor), porque eles se machucariam até a morte. O casal “feito um para o outro” é composto pela histérica e pela obsessiva, porque a primeira vai fazer de tudo para romper o relacionamento e a segunda vai mover céus e terras para manter aquela relação, por pior que seja.

A teoria diz que quem sofre da neurose histérica sobrevive da falta daquilo que deseja, já quem sofre da neurose obsessiva vive de tentar preencher essa falta de alguma forma. Explicando de uma forma bem rasa e bem tosca (já me aproveitando dos tempos que estamos vivendo, em que “asfaltozinho” vira “assaltozinho” em áudio de aplicativo de mensagem): quanto mais a histérica causa dor psíquica e angústia na obsessiva, para levá-la ao término e assim ter seu desejo de falta atendido, mais a obsessiva vai se sentir atraída pela histérica e mais esforço ela vai fazer para ficar com ela – e ainda menores são as chances de deixá-la. 

Se você perguntar para a histérica porque ela está fazendo aquilo, ela vai negar veementemente que quer que a obsessiva a deixe. Vai dizer que a ama e não consegue viver sem ela. Se você perguntar para a obsessiva porque ela continua naquela relação que só lhe causa dor e sofrimento, ela vai dizer que você está errada, que a relação não lhe faz mal. Vai dizer que existe muito amor. Basicamente, são duas pessoas brincando de cabo de guerra, com as mãos já sangrando, mas que não se soltam porque alimentam a fantasia de que não conseguem sobreviver fora daquela brincadeira. É, de fato, patológico. 

Mas existe um agravante ainda maior: a histérica, além de buscar constantemente motivos para que a deixem, pode ser perversa também, e agir com propósito de causar dor, de forma não tão inconsciente assim. Ou seja, ela pode sentir prazer (muito próximo, se não igual, ao sexual) em ser o motivo de sofrimento da obsessiva (perversão e perversidade são palavras-irmãs) e, assim, testemunhar sua insistência em continuar ali, permanecendo naquela relação e se mostrando cada vez mais dependente. 

Em relações entre histéricos e obsessivos, a dependência se aprofunda na mesma proporção em que a relação se torna dolorida e cheia de sofrimento / Imagem: reprodução/Google

Eu vejo uma clara relação histérica-perversa-obsessiva entre a população brasileira (pelo menos metade dela) e o Bolsonaro. Ouvi durante esses dias, em vários podcasts, a análise de que nós subestimamos o antipetismo, por causa dos resultados na eleição para o Congresso e o Senado. A explicação, a princípio, me parece correta. Vejo um pouco de arrogância em subestimar o antipetismo, inclusive, que também é um dos fatores que levou Bolsonaro ao cargo que ocupa hoje. Mas não acho que seja apenas isso. Acho que nós subestimamos muito mais a influência psicanalítica que a política exerce sobre as pessoas.

O antipetismo é uma desculpa que talvez faça as pessoas conseguirem lidar com essa identificação. O antipetismo é uma mentira contada mil vezes para elaborar de forma mais racional essa devoção obsessiva ao presidente. Subestimamos a capacidade das pessoas que estão neste relacionamento extremamente abusivo e tóxico com o Bolsonaro de usar o antipetismo como justificativa para se manterem nele. Só isso explica metade da população não estar absolutamente enojada com alguém que fez lives zombando de gente morrendo sufocada e ainda vai ao debate mentir que não comprou vacina porque não tinha. 

A memória do Brasil, como país e como população, costuma ser curta. Mas, nesse caso, até a Dori do filme da Disney ficaria chocada ao ver a falta de lembrança diante do desastre que foi a administração da pandemia pelo governo federal. Aliás, a pandemia é um capítulo à parte. Bolsonaro estava eleito há um ano, ainda estava em lua-de-mel com a cadeira presidencial (para usar um universo de referências muito caro para o presidente – o casamento) e se viu atropelado pela pandemia. 

Não conseguiu, de forma nenhuma, lidar com o baque de ter sua fantasia de poder interrompida pela realidade. Fez o que? Começou a negá-la. A negação é uma fase importante do luto – a dor de perder a onipotência diante da pandemia. Na imaturidade de lidar com os desafios que um estadista precisa lidar, colocou a vida de todos os brasileiros em risco e ainda lavou as mãos (quer dizer, não lavou as mãos, não usou máscara, não cumpriu nenhum protocolo estabelecido) diante do que estava acontecendo.

Bolsonaro é o valentão da escola, que machuca todos os amigos e ainda assim, é com quem os meninos querem passar o recreio, em quem todos os meninos se espelham de alguma forma, porque também querem se sentir poderosos como ele. Seus seguidores se alimentam das violências que ele pratica contra os outros e contra os seus e, ao mesmo tempo, o ego frágil do próprio Bolsonaro se sustenta a partir do apoio dos seus seguidores. É uma retroalimentação tóxica. Uma relação parasitária.

Por que outro motivo ele puxaria o coro de “imbroxável” para si mesmo, na frente dos apoiadores? Para quem estuda psicanálise, não é tão difícil: só verbalizamos para nos afirmarmos em determinada característica quando de fato não temos certeza sobre nós mesmos. Precisamos ouvir do externo o que duvidamos internamente. Um homem que precisa puxar este coro de “imbroxável” e ouvir outros homens acompanhando sua fala só pode ter inúmeras dúvidas sobre a própria virilidade, de forma literal e figurada. 

“A covardia é surda e só ouve o que convém”. Bolsonaro é um bebezão que não rompeu a ferida narcísica da primeira infância. Um bebê que se sente perseguido, que acha que todos estão intervindo em sua vida para separá-lo do “peito da mamãe”. Um bebezão que alimenta sua paranóia e ainda convence outros de que toda aquela fantasia paranóide é real. Até outro dia, essas mesmas pessoas que estão bradando que sofrem censura do TSE estavam pedindo intervenção militar, volta da ditadura, volta do AI-5. 

Lembro que, no primeiro ano de faculdade, um dos professores contou a história sobre a transmissão da Guerra dos Mundos, de Orson Welles, pelas rádios, em 1938. A população americana ficou apavorada dentro de suas casas ao ouvirem o livro de ficção sendo relatado no rádio. Nós ouvimos a tal transmissão em sala de aula e rimos por imaginar que todos realmente acreditaram na história de que o mundo estava sendo invadido por alienígenas. Rimos do que? É exatamente o que está acontecendo hoje, em 2022, no Brasil. 

No dia seguinte à transmissão da Guerra dos Mundos pelo rádio, os jornais relataram o pânico da população. Fake news muito bem feita / Imagem: reprodução/Google

Bolsonaro está gritando em sua live semanal que estamos sendo invadidos por comunistas e as pessoas não se dão ao trabalho de olhar pela janela e checar se é verdade ou não. Ele coloca 100 anos de sigilo sobre suas ações e seus apoiadores acham normal. Ele diz que não tem nada a ver com o Orçamento Secreto e seus seguidores se esquecem que foi ele quem aprovou o decreto. 

Todos estão surdos, mas parece que todos estão transtornados também. Porque se você não faz parte das pessoas que estabeleceram essa relação tóxica com o atual presidente, você fica completamente desesperado de presenciar esse surto coletivo. Você surta também. Eu surto. Bolsonaro deveria ter saído preso do Congresso no dia da votação pelo seguimento do impeachment da Dilma, em 2016, quando homenageou dentro da Casa do Povo o torturador Carlos Brilhante Ustra. 

Pode ser que o surto coletivo acabe no próximo dia 30 de outubro. Pode ser que só piore. O que sabemos, com certeza, é que o final de 2022 e o ano todo de 2023 serão bem difíceis, independente do resultado das eleições. Para quem é do esoterismo, Saturno vai pegar pesado com o Brasil. Ainda assim, acredito no trecho da música do início desta coluna que deixei de fora: “O amor é importante. Esta frase vive nos cabelos encaracolados das cucas maravilhosas”. Contamos com elas: as cucas maravilhosas.

PS: “Todos estão Surdos”, escrita por Roberto e Erasmo Carlos, é a música que cito e uso como referência nesta coluna.