Por Regina Fiore, Jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista

Depois dos acontecimentos das últimas semanas, certo mesmo é ser homem. Se você é mulher, tenho péssimas notícias: você não tem lugar.

Quando comecei a pensar na coluna dessa quinzena, o assunto que não me saía das reflexões eram os ataques machistas que a juíza que está conduzindo o julgamento do caso do assassinato de Henry Borel tem recebido. Para refrescar a memória, o menino foi morto por espancamento há alguns anos e seu caso está sendo processado agora, em 2022. A juíza Elizabeth Machado Louro, uma mulher em situação de poder que sofreu desobediência na corte, foi chamada de “Rainha de Copas” pela defesa de Jairinho, padrasto do menino, e Monique Medeiros, mãe de Henry – ambos acusados do assassinato do garoto de 4 anos.

Construir o raciocínio sobre o quanto uma mulher à frente de um julgamento famoso, com grande repercussão, sofre ataques machistas de um lado e é deslegitimada por ter o mínimo de empatia com a vítima de outro era uma das minhas questões. Foi postado um vídeo em que a juíza dizia que, quando via seu neto de 3 anos brincando e pulando na cama, se emocionava ao pensar em Henry e estava há dias sem dormir pelo quanto o caso lhe comoveu. Muitas pessoas, ao verem o vídeo, questionaram sua capacidade de conduzir um julgamento imparcial e ético. 

Meu principal questionamento era sobre esse não-lugar da mulher: se a juíza impõe sua autoridade, é comparada a uma tirana desvairada de um desenho animado que grita “Cortem as cabeças!” ao ser minimamente contrariada. Se ela é filmada demonstrando empatia pela criança assassinada, é julgada como incapaz de cumprir seus deveres, ser imparcial e agir dentro da ética que sua profissão exige. Não deu nem tempo de elaborar sobre isso e ficamos horrorizados com o caso da menina de 11 anos de Santa Catarina, que foi vítima de um estupro de vulnerável, engravidou e teve seu direito de aborto legal negado pela juíza Joana Ribeiro Zimmer. 

A menina estava sendo mantida em um abrigo, longe da família, para ser impedida de realizar o aborto de forma legal, direito garantido por lei quando a gravidez é resultado de estupro, quando o feto tem anencefalia ou quando a gestação apresenta risco para a mulher. Alguns dias depois da divulgação dos vídeos da audiência, em que a menina foi exposta a outras violências como o pedido da juíza para que ela “aguentasse mais um pouquinho” a gravidez para aumentar a chance de sobrevivência do feto, o Ministério Público Federal garantiu que o procedimento de aborto fosse realizado em caráter de urgência. 

Mais uma vez, o não-lugar de quem nasce sob o estigma do sexo feminino: seu direito de interrupção da gravidez, resultado de uma violência, lhe é negado. Ainda mais grave nesse caso: a criança foi mantida separada da família, aumentando seu sofrimento. Não pode abortar, a não ser dentro do que é permitido pela lei. Mas se a menina vai atrás de seus direitos, não só tais direitos lhe são negados: ela é obrigada a manter o feto e ficar longe da família, que pode acolhê-la em um momento como esse. 

Tentando elaborar o caso e refletindo sobre a dor infligida à essa menina, repetidas vezes durante todo o processo, e à sua mãe, pensei também no quanto é urgente que educação sexual seja uma pauta no ambiente público e privado, para que crianças e adolescentes saibam identificar sinais de abuso e desenvolvam confiança em si e nos adultos a sua volta para conversar sobre suas dúvidas, anseios e experiências. 

Ainda sem acreditar que a decisão de negar o aborto para a menina tenha vindo de uma mulher, encarregada do destino de tantas outras crianças que passaram por violência e abusos, li a notícia sobre Gabriela Samadello Monteiro de Barros, a procuradora-geral que foi agredida na prefeitura de Registro, no interior de São Paulo, por um colega de trabalho, também procurador e subordinado de Gabriela. 

Demétrius Oliveira Macedo foi filmado dando chutes e socos em Gabriela, enquanto a agredia verbalmente. Três outras mulheres tentaram intervir, mas Macedo estava tomado de ódio e completamente descontrolado, não pode ser contido por elas, que acabaram sendo agredidas também. Gabriela era chefe de Macedo, que agora está afastado e provavelmente será exonerado do cargo público, depois de passar por todos os procedimentos de investigação. De acordo com os depoimentos da vítima, a agressão aconteceu porque Demétrius havia sido agressivo com outra funcionária e Gabriela interviu oficialmente. 

Mais uma vez, o não-lugar que a mulher ocupa sistematicamente: se ela está em um cargo subordinado a um homem, precisa ser submissa, ou então é demitida. Se sofre algum tipo de assédio moral ou sexual e não busca ajuda, é apontada como omissa; deveria ter denunciado. Se busca ajuda de uma outra mulher, que é chefe do acusado e, em teoria, pode tomar providências cabíveis ao seu cargo, ambas sofrem violências. A mulher não tem paz estando em qualquer hierarquia dentro do ambiente de trabalho. 

Pensando sobre o absurdo da agressão e o quanto isso poderia ser incentivado por uma inveja masculina inerente, consciente ou não, imaginei que aquele homem se sentiu no direito de agredir sua chefe tanto pelo poder de gênero do qual ele usufrui quanto por se sentir simbolicamente castrado ao receber ordens ou ser reportado por uma mulher. A fragilidade do masculino provoca reações e leva a violências impensáveis. A mulher não está segura ao ocupar um lugar de poder porque pode estar ferindo a masculinidade de alguém e corre sério risco por isso. Acordei, estava zapeando o Instagram e me deparo com o relato da atriz Klara Castanho.

Klara, de apenas 21 anos, teve sua intimidade exposta contra sua vontade quando dois colunistas e uma apresentadora, candidata à deputada federal, vazaram sua história íntima em programas de auditório e nas redes sociais, em troca de audiência, cliques e likes. Antonia Fontenelle fez uma live na qual não revelava o nome da atriz, mas dizia que ela tinha dado a criança para adoção porque o bebê é negro e chamou o ato de “abandono de incapaz”, sem saber dos fatos do que realmente aconteceu com Klara. Fontenelle é candidata a um cargo público pelo Partido Replicano, conhecido por ser historicamente contra os direitos da mulher. A apresentadora estava tentando se apropriar da pauta para angariar votos de setores mais conservadores entre os eleitores.

Horas depois, a própria Klara Castanho fez um post em seu perfil do Instagram, em forma de texto, relatando que foi vítima de um estupro, sentiu medo de denunciar, meses depois passou mal e descobriu a gravidez semanas antes de dar à luz e, depois do parto, entregou a criança para a adoção direta, de acordo com todos os procedimentos legais obrigatórios. Em sua carta aberta, a atriz deixou explicado que optou pela adoção para que a criança tivesse a oportunidade de ter um lar amoroso, sem precisar conviver com os fantasmas da violência que ela havia sofrido.

Ela ainda desabafou sobre se sentir violentada tanto pelo homem que a estuprou quanto pelas pessoas que estavam julgando suas decisões sem realmente saber o que aconteceu e expondo sua vida íntima sem seu consentimento. Um dos colunista é Leo Dias, que ganhou fama e algum reconhecimento ao expor incessantemente a vida íntima das celebridades. O jornalismo de celebridade sempre existiu e tem audiência para esse tipo de conteúdo. Como o próprio Leo Dias lembrou, Caetano já escreveu “todo mundo quer saber com quem você se deita”. Mas os princípios éticos do jornalismo passam também pela apuração e, principalmente, pelo respeito às pessoas que estão envolvidas no conteúdo.

Mais um vez, a mulher empurrada para o tal não-lugar, onde nossas condutas são todas condenáveis, abomináveis. Se engravida e aborta, transou porque quis e deveria ter tido cuidado para não engravidar. Se uma criança é estuprada e, por lei, tem direito a fazer o aborto, é impedida pela justiça que deveria protegê-la e garantir seus direitos. Se a mulher é estuprada, engravida, tem o bebê e o coloca para adoção, seguindo também todos os parâmetros legais, é desumana porque abandonou o filho. 

Se a mulher está numa situação de poder e cumpre suas obrigações, exigindo respeito enquanto exerce sua profissão, é tirana. Se sente empatia por uma caso que comoveu todos os brasileiros, e cuja cobertura da mídia foi também sensacionalista e exploratória, é emocional demais e não está apta a cumprir seu dever. Se intervém para ajudar outra mulher e impedir uma agressão, é agredida fisicamente dentro do seu local de trabalho. Ataques que aconteceram com poucos dias de diferença entre um e outro. 

Algumas questões importantes: o aborto em caso de estupro é um direito da mulher no Brasil. Não há consenso se a gestação pode ser interrompida até as 20 ou 22 semanas de gravidez. A lei não estipula esse prazo, portanto um hospital não pode se negar a prestar o serviço alegando já ter expirado o tempo em que o procedimento poderia ter sido realizado. Qualquer mulher que engravida e tem a criança pode optar por dar o bebê para adoção, sendo ou não vítima de estupro. É um direito garantido por lei, que estabelece também a proteção da mulher, da criança e o sigilo da identidade de ambos. Toda violência contra mulher deve ser denunciada, seja ela física, moral, sexual, patrimonial, verbal ou psicológica. 

Diante de tantos acontecimentos em um intervalo de tempo tão curto, me questiono se realmente avançamos na questão da igualdade de gênero e da proteção aos direitos das mulheres e das crianças no Brasil. Será que regredimos tanto assim? Simone de Beauvoir já dizia que basta um crise política ou econômica (estamos vivendo ambas) para que os direitos das mulheres sejam questionados e suprimidos, por isso precisamos estar sempre atentas e vigilantes. Proponho a nós a reflexão do não-lugar para onde as mulheres são empurradas, por homens e até por outras mulheres, e é obrigada a permanecer: 

Se a mulher foi estuprada, provocou. 

Se engravida e aborta, é uma assassina.

Se tem o bebê e dá para adoção, é desumana.

Se não quer ter filhos, é egoísta.

Se engravida de um homem rico, é golpista.

Se engravida de um homem pobre, é burra.

Se tem filho e trabalha, é uma péssima mãe.

Se tem filho e fica em casa cuidando da família, é submissa.

Se tem uma postura assertiva, é mandona.

Se tem uma postura empática, é emocional demais.

Se não quer transar, é frígida.

Se transa quando quer, é uma vadia.

Se tem 11 anos, já sabia o que estava fazendo.

Se tem mais de 40, deveria agradecer.

Se está focada na carreira, é gananciosa.

Se está solteira, é mal-amada.

Se diz “não”, na verdade quis dizer “sim”.

Se diz “sim”, é muito fácil, não tem valor.

Se não diz nada, é omissa.

Se reage, é agressiva.

Se fica quieta, é conivente.

Se denuncia, quer aparecer.

Se não denuncia, está mentindo. 

Você, mulher que me lê, precisa entender: você não está certa, independente da sua posição. Na sociedade em que vivemos, nós nunca estamos ocupando o lugar correto. Certo mesmo é ser homem. O que nos resta são os ataques, vindos de todos os lados, e a culpa por não pertencermos a um lugar legítimo dentro do caráter misógino da lógica patriarcal. Se o Mundo Invertido, da série Stranger Things, fosse real, imagino que nem este lugar poderíamos ocupar com tranquilidade. Talvez nos aceitássemos melhor em outro lugar da (não tão) ficção: a República de Gileade, direto de The Handmaid’s Tale.