Racismo na primeira infância: o que você tem a ver com isso?
Por Janaina Bernardino, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
A primeira infância é o período entre 0 a 6 anos de idade, momento em que as crianças estão em fase de aprendizagem e de descobrimento. São nos primeiros anos de vida que é constituída uma base, assim como uma casa, para o desenvolvimento de todo o resto: a nossa capacidade de sentir, chorar, explorar, conhecer e aprender. Dessa forma, todo estímulo ou experiência, seja positiva ou negativa, que acontece nessa fase inicial impactará o nosso modo de viver e de se enxergar.
Uma infância afetiva, social, com interação com outras pessoas, brincadeiras lúdicas e momentos nutritivos podem auxiliar no desenvolvimento contínuo e saudável. Por outro lado, falácias sociais e fatores de risco como a violência, falta de acesso à educação, fome e falta de convívio com o outro traz o efeito contrário.
A psicóloga Thayná Ribeiro, especialista em raça e cultura com ênfase no cognitivo comportamental, explica que crianças que têm uma infância saudável e interativa são mais curiosas, sonhadoras, aventureiras e “donas de si”. “Elas se formam em um contexto positivo, fundamental para o desenvolvimento cognitivo, cerebral e social”. No entanto, crianças que desde a infância têm contato com o racismo têm uma imagem distorcida de si própria, devido aos estereótipos negativos que recaem ao corpo negro, de forma violenta e que também invisibilizam”.
Ainda segundo Thayná, o racismo na primeira infância impacta na autopercepção, autoconfiança, saúde física e mental, construção de idade e acesso a direitos básicos como moradia e alimentação. Para ela, uma infância livre de racismo é possível, mas é preciso a elaboração de políticas públicas que tratem tal problemática de forma contínua.
Algumas ações já estão formadas e na linha de frente para tentar reverter tal problemática, ainda que minimamente. A estratégia Primeira Infância Antirracista (PIA) chama a atenção dos profissionais da educação, da assistência social e da saúde para os efeitos do racismo no desenvolvimento infantil, que leve em consideração as especificidades e interseccionalidade de crianças negras e indígenas. Para que este cenário seja configurado, o racismo institucional e estrutural precisa ser trabalhado de forma combativa por toda a sociedade.
O termo antirracismo vem como um aliado potente e catalisador neste sentido, com o objetivo de enfrentar o racismo presente em todas as estruturas. Entretanto, não enquanto uma luta individual e exclusiva de pessoas negras. Eis que então, questiono, qual o nosso papel frente ao racismo, sobretudo, na primeira infância?
Como combater o racismo na educação infantil?
A artista e educadora Lorena Barbosa Ramos conta que já presenciou casos de racismo das próprias crianças com outras crianças, que falavam sobre o cabelo e as excluíam. Dessa forma, passou a introduzir, de forma lúdica, conteúdos raciais e educativos como um expoente da configuração deste cenário. No entanto, destaca que até os professores ainda não abraçaram as diferenças. “Já presenciei professoras dizendo que não sabiam lidar com o cabelo de uma criança negra”, destaca Lorena.
É o que também compartilha Rafaela Rodrigues Martins, estudante de pedagogia e mãe da pequena Isa, que começou a perceber que as professoras não estavam cuidando do cabelo da Isabella, não lavavam e não faziam penteados como nas outras crianças. “São vivências recorrentes com as crianças negras”, pontua ao analisar que a comunidade escolar não evidencia o racismo presente nas instituições e, portanto, tais casos são silenciados e invisibilizados.
No entanto, apesar da resistência em introduzir tal temática e de aplicar um modelo educacional disruptivo que abrace a diversidade e suas especificidades, a escola enquanto o primeiro contato social das crianças tem um papel fundamental no desenvolvimento pleno do sujeito e tem potencial de ser protagonista cirúrgico no combate às estruturas racistas.
Sendo assim, é uma grande aliada para tratar de situações inerentes à sociedade, seja explorando tal assunto, ao trazer a verdadeira história da África, a que foge da ótica da escassez ou utilizando materiais que tragam uma perspectiva racial afirmativa. “Ninguém nasce racista, isso é algo que se aprende pela simples e também cruel ausência de pessoas negras nos espaços, nas narrativas e tudo o que uma criança já acessa”, pontua a educadora.
Para Lorena, a presença positiva da negritude deve ser naturalizada para todas as crianças, na escola, em casa e em todos os lugares. É preciso construir práticas educativas que evidenciam a importância da negritude, como bem reforça Rafaela, alocadas em políticas públicas que impulsionem o respeito à diversidade como uma ferramenta ao combate a todas as formas de discriminação e opressão. Um movimento arbitrário que deve ser construído por um tripé antirracista, com a participação do Estado, da comunidade escolar e das famílias.
A necessidade de introduzir o antirracismo em sala de aula ainda é gritante, uma vez que discursos negacionistas ainda são presentes e só reforçam o despreparo em massa de quem não tem expertise sobre o assunto. É necessário, acima de tudo, um letramento racial. “É preciso investimento em formação inicial e continuada de qualidade para os professores, para que realmente possamos criar estratégias conscientes para acabar com tal problemática”, aponta Lorena.
Para além disso, é preciso descolonizar não só as relações, os modelos educacionais, mas também as práticas. A educadora resgata a Lei 10.639/03 que prevê o Ensino da História e Cultura africana e afro-brasileira em toda educação básica, como uma abertura para a real descolonização do currículo, quando aplicada para além de datas comemorativas. É preciso descolonizar, diariamente, no ato.
E como despertar a consciência racial ainda na primeira infância?
A bancária Juliana Concenza, mãe do Davi e do Arthur, relata que até ser mãe do seu primogênito, racismo não era um tema presente no seu dia a dia. Em um relacionamento interracial há mais de dez anos, Juliana tem um filho negro e outro branco. E apenas recentemente tomou consciência que seus meninos, apesar de serem criados juntos, passam e irão passar por situações distintas.
O tema racismo só foi pautado quando questionamentos começaram a surgir, tanto por parte dos meninos quanto por pessoas de fora. “Eles não entendiam porque um era mais claro que o outro e as pessoas também não conseguiam associá-los como irmãos, mesmo sendo semelhantes. Foi nesse contexto que começou a trabalhar a consciência racial dos meninos e até a sua própria.
Juliana conta que o processo de letramento racial é muito sensível e não poderia ser reduzido apenas ao dia 20 de Novembro, dia da Consciência Negra, quando todos estão se mobilizando. “Afinal, o meu filho é negro o ano inteiro”, diz. Com o auxílio de muitas trocas, Juliana encontrou nos livros infantis um suporte de qualidade para tratar a negritude, não só com Davi, mas também com o caçula Arthur.
“Gosto de destacar que o Davi pode tanto quanto o Arthur. Que ele é lindo, inteligente e que ele não é um garoto moreno, como as pessoas gostam de ressaltar, mas sim um menino negro e ele deve se orgulhar disso. Assim como os seus ancestrais, ele é um rei, o meu rei Davi”, conta Juliana aos risos.
A educadora, que também é contadora de histórias e realiza um trabalho transformador na luta antirracita com o projeto ‘Lô, conta uma estória?’, enfatiza a literatura como excelente recurso para alimentar a consciência racial, com escritos de autores negros como Kiusam de Oliveira, Madu Costa, Joel Rufino dos Santos, Rodrigo França e Carmém Lúcia Campos.
Já Rafaela acredita que não seja possível evitar que a Isa sofra racismo, mas busca construir ferramentas que mostre que pessoas negras são capazes de ser o que quiserem. “Tento mostrar que ela é uma criança bonita, gentil e inteligente, que ela merece ser amada e respeitada”, relata. “Com ela, busco introduzir na nossa rotina mecanismos, de modo que ela possa compreender a importância da nossa existência e resistência”, finaliza.
Apesar da rotina corrida, a construção da autoestima não fica em segundo plano, Rafa sempre destacou a lindeza de sua pele, de seus cabelos crespos e de seus traços. “Assim, acredito que valorizar a beleza das características negroides também é importante para a construção da identidade da Isabela”, pontua.
O que você tem a ver com isso?
É comum ouvirmos que o que dói no outro não é um problema nosso. E isso é real, mas até a página dois. Quando essa dor desumaniza o outro, o mata, o invisibiliza, o aprisiona, enquanto o outro lado se beneficia e faz a manutenção dessa relação de violência, a pergunta que não quer calar é: qual o seu papel na mudança desse cenário?
“Mas, afinal, racismo é uma problemática que diz respeito apenas a pessoas negras? A questão toda é estrutural, o que perpassa por todos nós, mulheres, homens, crianças. Direta ou indiretamente, nós pessoas brancas temos uma dívida imensa. O racismo sempre foi um problema nosso, que possamos então construir linhas de fuga”, reflete Juliana.
Para Rafaela, que não pode deixar de comparar a sua maternidade com à de uma mãe branca, diz que o seu papel é ensinar a Isa a se defender. “Todos os dias, ensino a Isabela a resistir e, apesar de tudo, existir. O meu papel é criar uma criança que saiba a importância da história dos nossos antepassados e das nossas origens”.
Lorena, por sua vez, destaca que, para adotar uma atitude antirracista, é preciso criar consciência de si, empoderar-se enquanto sujeito negro com ancestralidade que remeta a reis e rainhas africanas, e não à escravidão. Portanto, o seu papel é possibilitar uma infância para que crianças negras possam simplesmente ser crianças, Uma infância onde crianças negras sejam humanizadas.
“Também fui uma criança negra um dia e sei como situações de racismo vividas nessa fase afetam nossa vida para sempre. Aliar-se ao antirracismo deve ser responsabilidade de todos e todas, só assim poderemos pensar em uma infância sem racismo, em que crianças negras tenham a chance de viver e se desenvolver plenamente, felizes e conscientes de sua importância para si e para o mundo”, finaliza.