Quem tem medo do mercado?
Por: Marta Dueñas, jornalista
E-mail: marta.duenas@mulheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
É impressionante que o mercado não tenha reagido “mal” ao crime cometido pela corrida do ouro em Terras Indígenas Yanomamis. Não há registro de grandes quedas no valor do metal, tampouco em ações e valores de empresas envolvidas na retirada e compra de ouro ilegal.
Se alguém ainda não entendeu o que isso quer dizer, eu tento explicar (apesar de ser mulher de humanas – contém ironia). Significa que a corrupção, o crime e a morte de pessoas não afetam o mercado. O que afeta o mercado é imaginar que alguns poucos milionários poderão perder dinheiro com alguma ação, especialmente se ela for pública e por parte do governo. O mercado, meu caro, não é para você, mesmo que você tenha lá meia dúzia de tostões investido em algum ativo ou fundo. Vide crime da Braskem em Maceió, resultados negativos das Lojas Americanas ou, pior, os crimes humanitários e ambientais cometidos pelo garimpo em reservas.
Se tem um lobo mal, ele se chama mercado, já que é algo que ronda a fantasia, ganha vida e fala sem ser alguém, não se importa se vai comer criança ou a vovózinha. O mercado se preocupa com os seus e nós, definitivamente, não somos eles. Acorda!
Francamente eu já pensava assim. Nunca acreditei que o mercado existisse assim como acredito que existe sociedade. O mercado, para mim, deveria estar submetido à sociedade, a serviço dela, marcado pelas relações sociais, humanas ou organizacionais que geram renda, resultado e até lucro. Mas que necessariamente gerem valor para as pessoas sem, com isso, submeter a vida e a natureza a qualquer custo. Vai ver quem acredita em lobo mal sou eu.
Enquanto o governo Lula tem manifestado firmemente a defesa de políticas públicas de proteção às pessoas, de combate à fome, de preservação ambiental, secundarizando, digamos assim, o teto fiscal, o mercado continua reagindo negativamente. Mas não reagiu negativamente com a devastação humana e ambiental na Amazônia mesmo a história indicando que o minério extraído de lá é feito com a participação de diversos ativos do mercado em todas as camadas de produção: desde o garimpo, o transporte e distribuição até a compra do metal que vai para o pescoço da elite em forma de joia ou em componentes de alta tecnologia. O mercado, em última análise, é também responsável pelo crime que envergonha o Brasil internacionalmente.
O garimpo nas terras demarcadas envolve milhares de pessoas em diversas funções. O garimpeiro, que fica lá na extração, apesar de ser em número muito grande, é só uma parte dessa rede. Existem pilotos, operadores de rádio, comerciantes, cozinheiros, donos de mercado, distribuidores, motoristas, advogados. Logicamente não se pode dividir a responsabilização em iguais fatias. Há quem tenha sujado sua história diretamente estando in loco e há quem tenha feito isso no conforto de um belo e climatizado escritório em bairro chique de São Paulo, Minas Gerais ou Pará, por exemplo. Fato é que o garimpo, que sempre existiu no Brasil, movimenta um grande número de pessoas, pequenas e médias empresas e exigirá do governo e da sociedade um novo pacto para não gerar ainda mais crises ou soluções inócuas.
O que nós vamos fazer com isso? Ao saber que gigantes da área de joias, tecnologia ou e-commerce figuram a lista de quem compra ouro de origem ilegal, poderemos passar panos quentes? Por falar em quentes, é fato que esquentar o ouro ilegal é tarefa fácil no Brasil e tem apoio de legislação. Mas por que não exigimos, então, que haja rastreabilidade da origem do material? Certificação, comprovação, origem, para pedir o mínimo. Se o mercado é tão importante e fiel da balança a ponto de oscilar, ter taxas de credibilidade, emitir opinião sobre o que diz o Presidente, deveria, pelo menos, zelar pela ética no fluxo das relações de seus entes.
O mercado do ouro é grande, complexo, intenso e destrutivo, ao menos da maneira como tem se apresentado e crescido no Brasil. Somente em terras Yanoamis, o garimpo já destruiu cerca de 2.430 hectares. Entre 2019 e 2020, pelo menos 49 toneladas de ouro ilegal do país foram “esquentadas” e tiveram sua origem acobertada podendo entrar no comercio como produto legal. Essa lavagem do metal gerou um prejuízo socioambiental estimado no valor de R$ 9,8 bilhões para a Amazônia. Esses dados são fruto de estudo da Universidade Federal de Minas Gerais feito a pedido do MPF. Praticamente um terço do ouro comprado no Brasil é de origem ilegal, ou seja, o mercado de ouro brasileiro deveria ter um baixo índice de confiabilidade e derrubar o Ibovespa como derruba a mata, os índios e a vida.
Acho que a sociedade deveria ter um índice diário divulgado e comentado na tevê. Quero ter o prazer em escutar na bancada do principal noticiário televisivo: “as mortes em terra indígena provocadas pelo mercado do ouro causaram queda na bolsa da humanidade pelo terceiro dia consecutivo”. Mas aí também fica um estranhamento meu de quanto à imprensa que ainda reproduz e reverbera questões tão apáticas para a nossa sociedade. Sociedade essa formada pela “dona Maria” como se diz na faculdade de jornalismo ao se referir ao público que vai ler, escutar ou assistir a notícia tendo que entender o que lhe é contado. Eu quero que entrevistem as empresas de mineração. Quero que falem com os segmentos mais ricos do garimpo, pois eles existem, tem jatinho privado, conversam diretamente com a pecuária e são tão pop quanto o agro após terem recebido tapete vermelho do último Governo Federal.
Não para diluir as responsabilidades, como escrevi, não acredito que seja justo, tampouco possível. Mas para deflagrar algo verdadeiro: no mercado, assim como na sociedade, estamos em rede. As ilegalidades se comunicam. Pois façamos a ética fluir no curso com mais intensidade agindo como parte disso que somos. Se nos importa saber diariamente o quanto a bolsa cai quando se aprova um projeto de lei de repasse financeiro para os mais pobres, façamos valer nossa parte nisso nem que seja abrindo mão de comprar, usar ou contribuir para o tecido criminoso que forma parte do mercado.