Quem tem medo do estatuto do desarmamento?
Por: Marta Dueñas, jornalista
E-mail: marta.duenas@mulheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
O Brasil está armado até os dentes e isso não é uma piada do Rambo brasileiro. Estamos vivendo outro momento histórico, o país que era, até então, colorido e gentil, agora é bélico. Nunca na história brasileira foram registradas tantas armas em circulação na sociedade. Nunca houve uma predileção tão grande pela estética bélica, militar e da arma. Além da arminha de dedos e arminha na mão, as pessoas estão se camuflando, atirando, treinando e caçando. O sonho americano pousou no coração do Brasil ou esse era um sonho próprio?
Não vou discorrer sobre a relação armamento, patriarcado e falocentrismo uma vez que já superamos essa etapa. Os milhares de brasileiros que se tornaram Caçadores, Atiradores e Colecionadores (os CACs) tem inúmeras razões por tê-lo feito. E segundo os próprios é o direito à segurança. Falemos disso. Não houve redução da violência. Não houve redução de homicídios. Não houve aumento da segurança e isso é fato. O que pudemos assistir durante esse ano foram ataques, mortes, atentados em igrejas e escolas. Crimes que popularmente classificávamos como crimes estado-unidenses.
Qual a sustentação para o desejo tão aumentado de uso de arma? Seria a falta de confiança nas polícias e no exército? Fico confusa, pois boa parte dos Cacs parece ter uma predileção pela alma belicosa nacional. Não acredito numa causa única para o aumento do registro de armas por parte da população. Superficialmente, eu diria que está sendo feito uso politico da arma aproveitando uma atmosfera de medo que, para além de real, já que os dados de violência no Brasil não deixam mentir, é também uma ferramenta de mercado. O medo é uma mola impulsionadora de diversos produtos urbanos. E não me refiro a armas. Morar em condomínios fechados, comprar em shoppings e sair da rua. O medo é um dispositivo muito valioso para o mercado. Então, nada mais inescrupuloso do que um governo que, diante de uma população com medo, sugere que todos se armem. Nas palavras do próprio presidente: “Quero todo mundo armado”.
Pois bem, quase chegamos a realizar este desejo de Bolsonaro. Atualmente, o número de armas registradas no país para caçadores e colecionadores chegou a 1 milhão. Somente nos últimos três anos, desde a eleição de Bolsonaro, o número de armas em circulação no País triplicou. O sistema de controle da Policia Federal registra que cidadãos comuns têm quase o dobro de armas que todo o efetivo das polícias, sejam elas federais, estaduais, rodoviárias e guardas municipais. Era esse o desejo?
Para chegar a esse cenário aterrorizante, o atual governo tomou diversas iniciativas que facilitaram o acesso a armas, munição e circulação, inclusive. E mesmo assim, não tivemos melhoria no cenário da segurança, repito. Especialistas apontam, inclusive, que o aumento da violência tem relação direta com o crescimento do número de pessoas com acesso a pistolas, revólveres e fuzis. Alguém duvida?
Enquanto alguns ainda acreditam que a nova política nacional de incentivo a armas protege o cidadão que pode comprar mais facilmente seu fuzil, a realidade mostra que armas legais que ficam em casa são usadas por maridos contra suas esposas, filhos contra desafetos e vizinhos por brigas e desavenças. Sem contar as que acabam na mão de outros criminosos. Afinal, essa mesma política facilita o aumento da artilharia das facções e do crime organizado, uma vez que o controle da PF é pífio. Para se ter uma ideia, apenas 2,68% dos CACS foram fiscalizados por parte do exército. Outro dado alarmante que corrobora com a ideia de que parte desse armamento todo está nas mãos do crime organizado é o número de armas roubadas. Em 2015, cerca de 31 armas eram roubadas ou furtadas por dia e esse número sobe para 112 armas/dia, em 2022. Esses dados são da ONGs Sou da Paz, que também informa que em 2021 foram desviadas cerca de 840 armas dos CACs.
Não há controle, não há estratégia e não há inteligência sobre a atual política armamentista.
De acordo com a nova legislação, um Caçador ou Colecionador pode comprar até 60 armas, sendo que até 30 de uso restrito são fuzis, por exemplo. Anualmente, podem comprar 180 mil balas. Comprar legalmente e de maneira facilitada e mais barata é muito vantajoso para quem antes comprava por meio de desvios, roubos ou quadrilhas internacionais especializadas em tráfico de armas. O negócio então é usar os CACS como laranjas, cooptados ou vítimas. A facilitação na aquisição de armas passou a ser um novo nicho de oportunidade para as quadrilhas.
Nas últimas semanas, foram registradas cerca de 2 mil novas armas nos CACS e a tendência é de crescimento até o final do ano e também final de mandato do atual governo federal. É assustador e esse será mais um desafio hercúleo para a nova gestão, já que o arsenal privado é muito maior do que o do Estado.
Será preciso recadastrar CACs e clubes de tiro, coibir o trânsito de armas com munição que é uma anomalia que pudemos assistir, inclusive, com ações completamente criminosas cometidas por autoridades como Carla Zambeli e Roberto Jefferson, que até o momento não foram presos.
Espero que o novo governo possa modernizar o sistema de controle e fiscalização de CACs, criar um banco de dados unificado, regularizar e fiscalizar clubes de tiros e CACs. É urgente que se retirem armas em circulação com medidas objetivas e que seja reduzida a quantidade de armas autorizadas, calibres e munição. Civil nenhum poderia ter um fuzil, em minha opinião.
Eu não tenho medo de desarmar o país. Eu não acredito em cidadão de bem, mas acredito nas nossas instituições e polícias. A equação: redução da atuação do Estado e liberdade irrestrita ao cidadão que agora é armado não é promissora. O caminho para a mudança do país já foi escolhido e está em curso, me assusta poder ser surpreendida por um patriota patético que clama socorro em frente a um quartel podendo ter um fuzil e usá-lo para que a democracia e as soluções que almejamos não avancem.