Quem mexeu no meu queijo?
Por: Marta Dueñas, jornalista
E-mail: marta.duenas@mulheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
Muitos brasileiros se assustam com a ideia do governo de taxar grandes fortunas. Não é a primeira vez que uma gestão federal tentar implementar tal feito, tampouco a primeira vez que aquele cidadão médio com carro importado esbraveja contra a iniciativa temendo que o leão abocanhe parte do seu holerite. Imagino que nos últimos dias algumas pessoas com SUVs e salários de 3 dígitos ficaram nervosas graças aos planos do Ministério da Fazenda do governo federal sobre a medida provisória que altera regras para a taxação dos chamados fundos de super ricos.
Mas vai um aviso aos navegantes, seu salário de R$ 30 mil, que já é bastante exclusivo para um país de tantas desigualdades como o Brasil, não coloca você neste seleto grupo. Esse não é o seu rolê.
E também não é o caso de transformar o Ministro Haddad num Robin Hood à brasileira como parte da imprensa anda insinuando, já que tributar os super ricos não se trata de roubar dos ricos e passar aos pobres, ainda que ingresso de recursos ao governo possa representar incremento em projetos sociais. Não é um roubo. É uma justiça fiscal. A maioria dos tributos do país são aqueles indiretos, no consumo, que passam a régua em toda a sociedade sem considerar a renda de cada um, fazendo com que, ao consumir, pobres e ricos paguem o mesmo de impostos. Essa é apenas uma das distorções da política tributária nacional. Há também uma desigualdade de descontos e cobrança entre pessoas físicas assalariadas. Salários são taxados, lucros e dividendos não.
Super ricos não vivem necessariamente de salário, mas sim de capital e patrimônio, ou melhor, dos rendimentos que seu patrimônio ou capital. E tal medida vai agir, por enquanto, somente em determinados fundos de investimentos que atualmente são praticamente isentos de taxação. Cerca de 70% da renda dos mais ricos do país tem como origem lucros e dividendos ou resultados de investimentos e não de salários.
Taxar ricos, até o início dos anos 80, era comum no mundo tudo. Aliás, era mais regra do que exceção. Mas a medida que o neoliberalismo se entranhou na cultura social, até mesmo de quem não tem capital, essa história começou a mudar. Governos sem programas sociais estruturais, políticas econômicas e fiscais que privilegiam os mais ricos, quedas de braço em legislativos com sólidas bancadas que defendem o capital diante das pessoas são alguns dos elementos que mantiveram uma política tributária que caminhou para distorções importantes no imposto das pessoas físicas no país. Além disso, como se não bastasse, a construção de uma narrativa alicerçada em argumentos como o de que o Brasil é um dos países com maior carga tributária no mundo, sem detalhar a política tributária nacional; e que taxar ricos pode gerar evasão de recursos e reduzir investimentos em infraestrutura ou atividades econômicas.
É verdade que somos um dos países com maior taxação de impostos sobre bens e serviços, ou seja, em tudo que consumimos. E esse tipo de tributo passa a régua em toda a sociedade sem considerar renda ou patrimônio. Logicamente já que não é possível variar o preço da pasta de dente, por exemplo, para alguém pobre ou alguém rico. Então uma pessoa que ganha salário mínimo é taxada da mesma forma ao consumir do que o dono da maior rede hoteleira do país. Justo? Creio que não.
Já com relação à desaceleração de investimentos do capital privado nacional por conta de impostos também é um argumento que caiu por terra, ou seja, não se demonstra efetivo já que o capital particular navega num fluxo que atende essencialmente interesses individuais, familiares ou privados. E mesmo uma política bastante flexível com os super ricos praticada em outros países, como nos Estados Unidos, não foi eficiente para atrair mais investimentos ou evitar expatriação de riquezas. E o mesmo ocorre no Brasil.
Taxar os super ricos é uma proposta que tem sido debatida intensamente em diversos cenários políticos e econômicos no país. A viabilidade desse tipo de medida depende de vários fatores, incluindo a estrutura tributária atual, as implicações econômicas e sociais, mas principalmente de vontade política.
Do ponto de vista econômico, taxar os super ricos pode gerar uma fonte adicional de receita para financiar programas sociais, investimentos em infraestrutura e outros projetos que beneficiem a população em geral. Claro que taxar excessivamente ou sem estratégia por desencorajar investimento, inovação e criação de empregos, mas o governo não pode se colocar num cabo de guerra com capital pessoal de um grupo tão restrito de pessoas. As políticas de desenvolvimento nacional não podem ser essencialmente dependentes do mercado e de seu capital.
Politicamente, a implementação de uma taxa sobre as grandes fortunas pode ser desafiadora devido a interesses diversos e à resistência de setores mais poderosos, mas o resultado dessa mudança pode ser extremamente positivo como uma das estratégias de redução da desigualdade social e do ajuste da política tributária nacional que vem privilegiando o acumulo de capital para quem mais tem.
A MP apresentada ao Congresso no inicio do mês pode ser o início dessa reforma tributária, mas por hora foca em fundos exclusivos que com a nova medida ficariam submetidos a uma tributação periódica de cerca de 15% além do recolhimento de Imposto de Renda (IR) no momento do resgate de valores caso ocorra antes da data da tributação periódica. Os fundos exclusivos são aqueles em que há um único cotista; eles são personalizados e geridos por profissionais. Atualmente, esses fundos só são taxados pelo IR no momento do resgate, que pode levar muito tempo, às vezes, anos.
De acordo com projeções do governo, a MP tem potencial de arrecadação da ordem de R$ 3,21 bilhões para 2023 e de R$ 13,28 bilhões para 2024. Paralelamente, o Ministério da Fazenda também enviou ao Congresso um Projeto de Lei para taxar fundos internacionais conhecidos por Offshore. Essas são aplicações financeiras de brasileiros em países com tributação zero, ou seja, paraísos fiscais que podem ficar anos, décadas, parados com reservas de capital privado que nem geram tributos ou investimentos ao país de origem.
Mundialmente, tem sido desafiador taxar grandes fortunas ou super ricos. São questões políticas, interesses de blocos poderosos, mas no ponto de vista pragmático o desafio é da eficácia da aplicação de leis e dispositivos, já que a lógica de acúmulo de capital mudou. Se antes era mais tangível e facilmente rastreável com propriedades, terras, por exemplo, agora a manutenção da riqueza é maior de forma financeira, ou seja, móvel, permitindo que famílias bilionárias possam recorrer a novos arranjos e investimentos que ofereçam saídas tributárias vantajosas a seus interesses privados. Então, de fato, como dizem, o resultado dessa taxação pode ser pontual e até frustrante, considerando o valor estimado a ser incrementado que é em torno de R$ 10 bilhões, mas este não pode ser um argumento para não levar a cabo as novas iniciativas. Seria o mesmo que considerar flexibilizar a CLT com relação à lei seca, quando lançada, pressupondo que as pessoas com vida noturna e que dirigem não ia deixar o carro em casa ou não beber numa sexta-feira à noite. Todo regramento que parece restringir “liberdades” é um processo, uma construção. Sem dúvida esse avanço não pode sucumbir. A taxação é uma vitória real da Fazenda no atual governo, já que colocou o tema em pauta e já está tramitando com uma das propostas. Haverá incremento da arrecadação, mesmo que possa parecer limitado ao que se espera e por fim, e muito importante, é uma sinalização política nacional que avança na direção da equidade no país em busca de justiça social e distribuição de renda. É um movimento nessa direção.
Um dos grandes desafios das novas medidas é impedir que essa pequena e privilegiada camada de brasileiros transfira suas riquezas para outra jurisdição, ou seja, que tire do país. E agora é marcar passo nesse suposto cabo de guerra para que o “dilema” se tributar eu tiro o dinheiro do Brasil não continue a acanhar governos. Além dessas medidas, é importante criar sinergia entre iniciativas de revisão tributária aprofundando ações na camada dos mais ricos taxando heranças e doações, por exemplo, e quem sabe uma reforça tributária de empresas e do sistema produtivo.
Taxar os ricos não é uma medida de vingança, como fantasiam algumas pessoas da extrema direita. É uma ferramenta importante e tem um efeito muito positivo na economia que é corrigir a distorção do acumulo de riqueza.
À propósito, o nome ou apelido desses investimentos internacionais chamados offshore vem de uma expressão pirata que escondiam ouro mercadorias provenientes de roubos a embarcações em lugares longe da costa “off shore”. Bem simbólico.